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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 2 - Parte 1

Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, miserrimo Raposo, não podia escapar. D'um lado estava elle, enorme. Do outro o topo do corredor, maciço.

Vagarosamente, calado, com methodo, o Hercules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu rugi: «bruto!» Elle ciciou: «silencio!» E outra vez, tendo-me alli acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nadegas, canellas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquillamente, apanhou o seu castiçal.

Então eu, livido, em ceroulas, disse-lhe com immensa dignidade: --Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do tumulo do

Senhor, e eu não querer dar escandalos por causa de minha tia... Mas se estivessemos em Lisboa, fóra de portas, n'um sitio que eu cá sei, comia-lhe os figados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os figados!

E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções d'arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.

Ao outro dia cedo o profundo Topsius foi peregrinar ao monte das

Oliveiras, á fonte clara de Siloé. Eu, dorido, não podendo montar a cavallo, fiquei no sofá de riscadinho com o Homem dos tres calções. E até para evitar o affrontoso barbaças não desci ao refeitorio, pretextando tristeza e langor. Mas ao mergulhar o sol no mar de

Tyro--estava restabelecido e vivaz: Potte preparára para essa noite uma festividade sensual em casa da Fatmé, matrona bem acolhedoura, que tinha no Bairro dos Armenios um dôce pombal de pombas: e nós iamos lá contemplar a gloriosa bailadeira da Palestina, a Flôr de Jerichó, a saracotear essa dansa da Abelha, que esbrazêa os mais frios e deprava os mais puros...

A recatada portinha da Fatmé, ornada d'um pé de vinha secca, abria-se ao canto d'um muro negro junto á Torre de David. Fatmé esperava-nos, magestosa e obesa, envolta em véos brancos, com fios de coraes entre as tranças, os braços nús--tendo cada um a cicatriz escura de um bubão de peste. Tomou-me submissamente a mão, levou-a á testa oleosa, levou-a aos labios empastados d'escarlate, e conduziu-me em ceremonia defronte d'uma cortina preta, franjada d'ouro como o pano d'um esquife. E eu estremeci, ao penetrar emfim nos segredos deslumbradores d'um serralho mudo e cheirando a rosa.

Era uma sala caiada de fresco, com sanefas de algodão vermelho encimando a gelosia; e ao longo das paredes corria um divan amassado, revestido de sêda amarella, com remendos de sêda mais clara. N'um bocado de tapete da

Persia pousava um brazeiro de latão, apagado, sob o montão de cinzas; ahi ficára esquecido um pantufo de velludo, estrellado de lentejoulas.

Do tecto de madeira alvadia, onde se alastrava uma nodoa de humidade, pendia de duas correntes enfeitadas de borlas um candieiro de petroline.

Um bandolim dormia a um canto, entre almofadas. No ar morno errava um cheiro adocicado e molle a mofo e a benjoim. Pelos ladrilhos, por baixo dos poaiaes da gelosia, corriam carochas.

Sentei-me sisudamente ao lado do historiador dos Herodes. Uma negra de

Dongola, encamisada de escarlate, com braceletes de prata a tilintar nos braços, veio offerecer-nos um café aromatico: e quasi immediatamente

Topsius appareceu, descorçoado, dizendo que não podiamos saborear a famosa dansa da Abelha! A Rosa de Jerichó fôra bailar diante de um principe de Allemanha, chegado n'essa manhã a Sião, a adorar o tumulo do

Senhor. E Fatmé apertava com humildade o coração, invocava Allah, dizia-se nossa escrava! Mas era uma fatalidade! A Rosa de Jerichó fôra para o principe louro que viera, com cavallos e com plumas, do paiz dos

Germanos!...

Eu, despeitado, observei que não era um principe: mas minha tia tinha luzidas riquezas: os Raposos primavam pelo sangue no fidalgo Alemtejo.

Se Flôr de Jerichó estava ajustada para regosijar meus olhos catholicos, era uma desconsideração tel-a cedido ao romeiro couraçado que viera da hereje Allemanha...

O erudito Topsius resmungou, alçando o bico com petulancia, que a

Allemanha era a mãi espiritual dos povos...

--O brilho que sae do capacete allemão, D. Raposo, é a luz que guia a humanidade!

--Sebo para o capacete! A mim ninguem me guia! Eu sou Raposo, dos

Raposos do Alemtejo!... Ninguem me guia senão Nosso Senhor Jesus

Christo... E em Portugal ha grandes homens! Ha Affonso Henriques, ha o

Herculano... Sebo!

Ergui-me, medonho. O sapientissimo Topsius tremia, encolhido. Potte acudiu: --Paz, christãos e amigos, paz!

Topsius e eu reencruzámo-nos logo no divan--tendo apertado as mãos, galhardamente e com honra.

Fatmé, no emtanto, jurava que Allah era grande e que ella era a nossa escrava. E, se nós a quizessemos mimosear com sete piastras d'ouro, ella em compensação da Rosa de Jerichó offerecia-nos uma joia inapreciavel, uma Circassiana, mais branca que a lua cheia, mais airosa que os lirios que nascem em Galgalá.

--Venha a Circassiana! gritei, excitado. Caramba, eu vim aos Santos

Lugares para me refocilar... Venha a Circassiana! Larga as piastras,

Potte! Irra! Quero regalar a carne!

Fatmé sahiu, recuando: o festivo Potte reclinou-se entre nós, abrindo a sua bolsa perfumada de tabaco de Alepo. Então, uma portinha branca, sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve: e uma figura entrou, velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de sêda carmesim tufavam com languidez, desde a sua cinta ondeante até aos tornozêlos, onde franziam, fixos por uma liga d'ouro; os seus pésinhos mal pousavam, alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarello; e através do véo de gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços--brilhavam recamos d'ouro, scentelhas de joias, e as duas estrellas negras dos seus olhos. Espreguicei-me, tumido de desejo.

Por traz d'ella Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véo devagar, devagar--e d'entre a nuvem de gaze surgiu um carão côr de gesso, escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que negrejavam no langor nescio do sorriso... Potte pulou do divan, injuriando Fatmé: ella gritava por Allah, batendo nos seios, que soavam mollemente como odres mal cheios.

E desappareceram, assanhados, levados n'uma rajada de ira. A

Circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso putrido, veio estender-nos a mão suja, a pedir «presentinhos» n'um tom rouco d'aguardente. Repelli-a com nojo. Ella coçou um braço, depois a ilharga; apanhou tranquillamente o seu véo, e sahiu arrastando as chinelas.

--Oh Topsius! rosnei eu. Isto parece-me uma grande infamia!

O sabio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ella é sempre enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma entristece...

--Qual alma! não ha alma! O que ha é um eminentissimo desaforo! Na rua do Arco do Bandeira, esta Fatmé tinha já dois murros na bochecha...

Irra!

Sentia-me feroz, com desejos de escavacar o bandolim... Mas Potte reappareceu, cofiando os bigodões, dizendo que por mais nove piastras d'ouro Fatmé consentia em mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem das margens do Nilo, da alta Nubia, bella como a noite mais bella do

Oriente. E elle vira-a, afiançava-a, valia o tributo d'uma fertil provincia.

Fragil e liberal, cedi. Uma a uma, as nove piastras d'ouro tiniram na mão gordufa de Fatmé.

De novo a porta caiada rangeu, ficou, cerrada--e, sobre o tom alvaiado, destacou, na sua nudez côr de bronze, uma esplendida femea, feita como uma Venus. Durante um momento parou, muda, assustada pela luz o pelos homens, roçando os joelhos lentamente. Uma tanga branca cobria-lhe os flancos possantes e ageis: os cabellos hirsutos, lustrosos d'oleo, com sequins d'ouro entreleçados, cahiam-lhe sobre o dorso, como uma juba selvagem; um fio solto de contas de vidro azul enroscava-se-lhe em torno do pescoço e vinha escorregar por entre o rego dos seios rijos, perfeitos e de ebano. De repente soltou convulsamente, repicando a lingua, uma ululação desolada: Lu! lu! lu! lu! lu! Atirou-se de bruços para o divan: e estirada, na attitude d'uma Esphinge, ficou dardejando sobre nós, séria e immovel, os seus grandes olhos tenebrosos.

--Hein? dizia Potte, acotovelando-me. Veja-lhe o corpo... Olhe, os braços! Olhe a espinha como arqueia! É uma panthera!

E Fatmé, de olhos em alvo, chilreava beijos na ponta dos dedos--exprimindo os deleites transcendentes que devia dar o amor d'aquella Nubia... Certo, pela persistencia do seu olhar, que as minhas barbas fortes a tinham captivado, desenrosquei-me do divan, fui-me acercando, devagar, como para uma preza certa. Os seus olhos alargavam-se, inquietos e faiscantes. Gentilmente, chamando-lhe «minha lindinha», acariciei-lhe o hombro frio: e logo ao contacto da minha pelle branca a Nubia recuou, arripiada, com um grito abafado de gazella ferida. Não gostei. Mas quiz ser amavel. Disse-lhe paternalmente: --Ah! se tu conhecesses a minha patria!... E olha que sou capaz de te levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dáfundo, cêa-se no Silva... Isto aqui é uma choldra! E as raparigas como tu são bem tratadas, dá-se-lhes consideração, os jornaes fallam d'ellas, casam com proprietarios...

Murmurava-lhe ainda outras coisas profundas e dôces. Ella não comprehendia o meu fallar: e nos seus olhos esgazeados fluctuava a longa saudade da sua aldêa da Nubia, dos rebanhos de bufalos que dormem á sombra das tamareiras, do grande rio que corre eterno e sereno entre as ruinas das Religiões e os tumulos das Dynastias...

Imaginando então despertar o seu coração com a chamma do meu, puxei-a para mim lascivamente. Ella fugiu; encolheu-se toda a um canto, a tremer; e deixando cahir a cabeça entre as mãos começou a chorar, longamente.

--Olha que massada! gritei, embaçado.

E agarrei o capacete, abalei, esgaçando quasi no meu furor o pano preto franjado d'ouro. Parámos n'uma cella ladrilhada onde cheirava mal. E ahi bruscamente foi entre Potte e a nedia matrona uma bulha ferina sobre a paga d'aquella radiante festa do Oriente: ella reclamava mais sete piastras d'ouro: Potte, de bigode erriçado, cuspia-lhe injurias em arabe, rudes e chocando-se como calhaus que se despenham n'um valle. E sahimos d'aquelle lugar de deleite perseguidos pelos gritos de Fatmé, que se babava de furor, agitava os braços marcados da peste e nos amaldiçoava, e a nossos paes, e aos ossos de nossos avós, e a terra que nos gerára, e o pão que comiamos, e as sombras que nos cobrissem! Depois na rua negra dois cães seguiram-nos muito tempo, ladrando lugubremente.

Entrei no Hotel do Mediterraneo, afogado em saudades da minha terra risonha: os gozos de que me via privado n'esta lobrega, inimiga Sião, faziam-me anciar mais inflammadamente pelos que me daria a facil, amoravel Lisboa, quando, morta a titi, eu herdasse a bolsa sonora de sêda verde!... Lá não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! Lá nenhum corpo barbaro fugiria, com lagrimas, á caricia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da titi, o meu amor não seria jámais ultrajado, nem a minha concupiscencia jámais repellida. Ah! meu

Deus! Assim eu lograsse pela minha santidade captivar a titi!...--E logo, abancando, escrevi á hedionda senhora esta carta ternissima: «Querida titi do meu coração! Cada vez me sinto com mais virtude. E attribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao seu santo tumulo. De dia e de noite passo o tempo a meditar a sua divina

Paixão e a pensar na titi. Agora mesmo venho da Via-Dolorosa. Ai, que enternecedora que estava! É uma rua tão benta, tão benta, que até tenho escrupulo de a pisar com os botins; e n'outro dia não me contive, agachei-me, beijei-lhe as ricas pedrinhas! Esta noite passei-a quasi toda a rezar á Senhora do Patrocinio que todo o mundo aqui em Jerusalem respeita muitissimo. Tem um altar muito lindo; ainda que a este respeito bem razão tinha a minha boa tia (como tem razão em tudo) quando dizia que lá para festas e procissões não ha como os nossos portuguezes. Pois esta noite, assim que ajoelhei deante da capella da Senhora, depois de seis Salve-Rainhas, voltei-me para a bella imagem e disse-lhe:--Ai, quem me dera saber como está minha tia Patrocinio!--E quer a titi acreditar?

Pois olhe, a Senhora com a sua divina bocca disse-me, palavras textuaes, que até, para não me esquecerem, as escrevi no punho da camisa:--A minha querida afilhada vai bem, Raposo, e espera fazer-te feliz!--E isto não é milagre extraordinario, porque me contam aqui todas as familias respeitaveis com quem vou tomar chá que a Senhora e seu divino Filho dirigem sempre algumas palavras bonitas a quem os vem visitar. Saberá que já lhe obtive certas reliquias, uma palhinha do presepio, e uma taboinha aplainada por S. José. O meu companheiro allemão, que, como mencionei á titi na minha carta de Alexandria, é de muita religião e muito sabio, consultou os livros que traz e affirmou-me que a taboinha era das mesmas que, segundo está provado, S. José costumava aplainar nas horas vagas. Emquanto á grande reliquia, aquella que lhe quero levar para a curar de todos os seus males e dar a salvação á sua alma e pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, essa espero em breve obtel-a. Mas por ora não posso dizer nada... Recados aos nossos amigos em quem penso muito e por quem tenho rezado constantemente; sobretudo ao nosso virtuoso Casimiro. E a titi deite a sua benção ao seu sobrinho fiel e que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua saude--Theodorico.--P.S. Ai, titi, que asco que me fez hoje a casa de

Pilatos! Até lhe escarrei! E cá disse á Santa Veronica que a titi tinha muita devoção com ella. Pareceu-me que a senhora santa ficou muito regalada... É o que eu digo aqui a todos estes ecclesiasticos e aos patriarchas:--É necessario conhecer-se a titi para se saber o que é virtude!»

Antes de me despir, fui escutar, collada a orelha ao tabique de ramagens. A ingleza dormia serena, insensivel: eu resmunguei brandindo para lá o punho fechado: --Besta!

Depois abri o guarda-roupa, tirei o dilecto embrulho da camisinha da

Mary, depuz n'elle o meu beijo repenicado e grato.

Cedo, ao alvorar do outro dia, partimos para o devoto Jordão.

* * * * *

Fastidiosa, modorrenta, foi a nossa marcha entre as collinas de Judá!

Ellas succedem-se, lividas, redondas como craneos, resequidas, escalvadas por um vento de maldição: só a espaços n'alguma encosta rasteja um tojo escasso, que na vibração inexoravel da luz parece de longe um bolor de velhice e de abandono. O chão faisca, côr de cal. O silencio radiante entristece como o que cae da aboboda de um jazigo. No fulgor duro do céo rondava em torno a nós, lento e negro, um abutre...

Ao declinar do sol erguemos as nossas tendas nas ruinas de Jericó.

Saboroso foi então descançar sobre macios tapetes, bebendo devagar limonada, na doçura da tarde. A frescura de um riacho alegre, que chalrava junto ao nosso acampamento por entre arbustos silvestres, misturava-se ao aroma da flôr que elles davam, amarella como a da giesta; adiante verdejava um prado de hervas altas, avivado pela brancura de vaidosos, languidos lirios; junto d'agua passeavam aos pares pensativas cegonhas. Do lado de Judá erguia-se o monte da Quarentena, torvo, fusco na sua tristeza de eterna penitencia; e para as bandas de

Moab os meus olhos perdiam-se na velha, sagrada terra de Canaan, areal cinzento e desolado que se estende, como a alva mortalha d'uma raça esquecida, até ás solidões do Mar Morto.

Fomos, ao alvorecer, com os alforges fornidos, fazer essa votiva romaria. Era então em dezembro; esse inverno da Syria ia transparentemente dôce; e trotando pela areia fina ao meu lado, o erudito Topsius contava-me como esta planicie de Canaan fôra outr'ora toda coberta de rumorosas cidades, de brancos caminhos entre vinhedos, e d'aguas de rega refrescando os muros das eiras; as mulheres, toucadas d'anemonas, pisavam a uva cantando; o perfume dos jardins era mais grato ao céo que o incenso: e as caravanas que entravam no valle pelo lado de

Segor achavam aqui a abundancia do rico Egypto--e diziam que era este em verdade o vergel do Senhor.

--Depois, acrescentava Topsius sorrindo com infinito sarcasmo, um dia o

Altissimo aborreceu-se e arrazou tudo!

--Mas porquê? porquê?

--Birra; mau humor; ferocidade...

Os cavallos relincharam sentindo a visinhança das aguas malditas:--e bem depressa ellas appareceram, estendidas até ás montanhas de Moab, immoveis, mudas, faiscando solitarias sob o céo solitario. Oh tristeza incomparavel! E comprehende-se que pesa ainda sobre ellas a colera do

Senhor, quando se considera que alli jazem, ha tantos seculos--sem uma recreavel villa como Cascaes; sem claras barracas de lona alinhadas á sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras, meigas e de galochas, lhe recolham poeticamente as conchinas na areia; sem que as alegrem, á hora das estrellas, as rebecas de uma Assembléa toda festiva e com gaz--alli mortas, enterradas entre duras serras como entre as cantarias de um tumulo.

--Além era a cidadella de Makeros, disse gravemente o erudito Topsius, alçado sobre os estribos, alongando o guardasol para a costa azulada do mar. Alli viveu um dos meus Herodes, Antipas, o tetrarcha da Galilêa, filho de Herodes o Grande: alli, D. Raposo, foi degolado o Baptista.

E seguindo a passo para o Jordão (emquanto o alegre Potte nos fazia cigarros do bom tabaco de Aleppo) Topsius contou-me essa lamentavel historia. Makeros, a mais altiva fortaleza da Asia, erguia-se sobre pavorosos rochedos de basalto. As suas muralhas tinham cento e cincoenta covados d'altura; as aguias mal podiam chegar até onde subiam as suas torres. Por fóra era toda negra e soturna: mas dentro resplandecia de marfins, de jaspes, d'alabastros; e nos profundos tectos de cedro os largos broqueis d'ouro suspensos faziam como as constellações d'um céo de verão. No centro da montanha, n'um subterraneo, viviam as duzentas egoas de Herodes, as mais bellas da terta, brancas como o leite, com clinas negras como o ebano, alimentadas a bolos de mel, e tão ligeiras que podiam, correr, sem lhes macular a pureza, por sobre um prado de acuçenas. Depois, mais fundo ainda, n'um carcere, jazia Iokanan--que a

Igreja chama o Baptista.

--Mas então, esclarecido amigo, como foi essa desgraça?

--Pois foi assim, D. Raposo... O meu Herodes conhecera em Roma

Herodiade, sua sobrinha, esposa de seu irmão Filippe, que vivia na

Italia, indolente e esquecido da Judêa, gozando o luxo latino. Era esplendidamente, sombriamente bella. Herodiade!... Antipas Herodes arrebata-a n'uma galera para a Syria; repudia sua mulher, uma moabita nobre, filha do rei Aretas, que governava o deserto e as caravanas; e fecha-se incestuosamente com Herodiade n'essa cidadella de Makeros.

Colera em toda a devota Judêa contra este ultraje á lei do Senhor! E então Antipas Herodes, arteiro, manda buscar o Baptista que prégava no vão do Jordão...

--Mas para quê, Topsius?

--Pois para isto, D. Raposo... A vêr se o rude propheta, acariciado, amimado, amollecido pelo louvor e pelo bom vinho de Sichem, approvava estes negros amores, e pela persuasão da sua voz, dominante em Judêa e

Galilêa, os tornava aos olhos dos fieis brancos como a neve do Carmello.

Mas, desgraçadamente, D. Raposo, o Baptista não tinha originalidade.

Santo respeitavel, sim; mas nenhuma originalidade... O Baptista imitava em tudo servilmente o grande propheta Elias; vivia n'um buraco como

Elias; cobria-se de pelles de feras como Elias; nutria-se do gafanhotos como Elias; repetia as imprecações classicas de Elias:--e como Elias clamára contra o incesto d'Achab, logo o Baptista trovejou contra o incesto de Herodiade. Por imitação, D. Raposo!

--E emmudeceram-no com a masmorra!

--Qual! Rugiu peor, mais terrivelmente! E Herodiade escondia a cabeça no manto para não ouvir esse clamor de maldição, sahido do fundo da montanha.

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