Capítulo 3 - Parte 1
Elle mesmo, uma noite que orava no eirado da sua casa em Silo, sentira por um raro favor do Altissimo essa harmonia, tão penetrante e suave que as lagrimas uma a uma lhe cahiam nas mãos abertas... Ora nos mezes de Kisleu e de
Tebeth os furos das laminas coincidem, e por elles cahem sobre a Terra as gotas das aguas eternas que fazem crescer as searas!
--A chuva? perguntou Topsius, com acatamento.
--A chuva! respondeu Eliezer, com serenidade.
Topsius, mordendo um sorriso, ergueu para Gamaliel os seus oculos d'ouro que faiscavam de sabia ironia: mas o piedoso filho de Simeon conservava sobre a face, emmagrecida no estudo da Lei, uma seriedade impenetravel.
Então o Historiador, remexendo as azeitonas, desejou saber do esclarecido Physico por que tinham os crystaes do céo essa côr azul que enleva a alma...
Eliezer de Silo elucidou-o: --Uma grande montanha azul, invisivel até hoje aos homens, ergue-se a occidente: ora, quando o sol a bate, a sua reverberação banha o crystal do céo e anila-o.
É talvez n'essa montanha que vivem as almas dos justos!...
Gamaliel tossiu brandamente e murmurou: «Bebamos, louvando o Senhor!».
Ergueu uma taça cheia de vinho de Sichem, pronunciou sobre ella uma benção--passou-m'a, chamando a paz sobre o meu coração. Eu rosnei: «Á sua, muitos e felizes!» E Topsius, recebendo a taça com veneração, bebeu--«á prosperidade d'Israel, á sua força, ao seu saber!»
Depois os servos, precedidos pelo homem obeso de tunica amarella, que fazia resoar sobre as lages com pompa a sua vara de marfim, trouxeram a mais devota comida paschal--as hervas amargas.
Era uma travessa repleta de alface, agriões, chicorea, macella, com vinagre e grossas pedras de sal. Gamaliel mastigava-as solemnemente, como cumprindo um rito. Ellas representavam as amarguras de Israel no captiveiro do Egypto. E Eliezer, chupando os dedos, declarou-as deliciosas, fortificadoras e repassadas de alta lição espiritual.
Mas Topsius lembrou, fundado nos auctores gregos, que todos os legumes amollecem no homem a virilidade, lhe descoram a eloquencia, lhe enervam o heroismo: e com torrencial erudição citou logo Theophrasto, Eubulo,
Nicandro na segunda parte do seu Diccionario, Phenias no seu Tratado das Plantas, Dephilo e Epicharmo!...
Gamaliel, seccamente, condemnou a inanidade d'essa sciencia--porque
Hecateus de Mileto, só no primeiro livro da sua Descripção da Asia, encerra cincoenta e tres erros, quatorze blasphemias e cento e nove omissões... Assim dizia o leviano grego que a tamara, maravilhoso dom do
Altissimo, enfraquece o intellecto!...
--Mas, exclamou Topsius com ardor, a mesma doutrina estabelece
Xenophonte no livro segundo do Anabasis! E Xenophonte...
Gamaliel rejeitou a auctoridade de Xenophonte. Então Topsius, vermelho, batendo com uma colhér de ouro na borda da mesa, exaltou a eloquencia de
Xenophonte, a forte nobreza do seu sentimento, a sua terna reverencia por Socrates!... E emquanto eu partia um empadão de Commagenia, os dois facundos doutores, asperamente, romperam debatendo Socrates. Gamaliel affirmava que as vozes secretas ouvidas por Socrates, e que tão divina e puramente o governavam, eram murmurios distantes que lhe chegavam da
Judêa, repercussões miraculosas da voz do Senhor... Topsius pulava, encolhia os hombros, com desesperado sarcasmo. Socrates inspirado por
Jehovah! Ora lérias!
No emtanto era certo (insistia Gamaliel, já livido) que os gentilicos iam emergindo da sua treva, attrahidos pela luz forte e pura que derramava Jerusalem:--porque a reverencia pelos Deuses apparecia em
Eschylo profunda e cheia de terror; em Sophocles, amavel e cheia de serenidade; em Euripides, superficial e cheia de duvida... E cada um dos
Tragicos dava assim, largamente, um passo para o Deus verdadeiro!
--Oh Gamaliel, filho de Simeon, murmurou Eliezer de Silo, tu, que possues a verdade, para que dás accesso no teu espirito aos pagãos?
Gamaliel respondeu: --Para os desprezar melhor dentro em mim!
Farto de tão classica controversia, acheguei a Eliezer um covilhete de mel do Hebron--e contei-lhe quanto me agradára o caminho do Gareb entre jardins. Elle concordou que Jerusalem, cercada de vergeis, era dôce á vista como a fronte da noiva toucada d'anemonas. Depois estranhou que eu escolhesse, para me recrear, esses arredores de Gihon, cheios d'açougues, junto ao môrro escalvado onde se erguem as cruzes. Mais suave me teria sido a fragrancia de Siloeh...
--Fui vêr Jesus, atalhei severamente. Fui vêr Jesus, crucificado esta tarde por mandado do Sanhedrin...
Eliezer, com oriental cortezia, bateu no peito demonstrando mágua. E quiz saber se pertencia ao meu sangue, ou partilhára commigo o pão de alliança, esse Jesus que eu fôra assistir na sua morte d'escravo.
Eu considerei-o, assombrado: --É o Messias!
E elle considerou-me mais assombrado ainda, com um fio de mel a escorrer-lhe na barba.
Oh raridade! Eliezer, doutor do Templo, Physico do Sanhedrin, não conhecia Jesus de Galilêa! Atarefado com os enfermos que pela Paschoa atulham Jerusalem (confessou elle) não fôra ao Xistus, nem á loja do perfumista Cleos, nem aos eirados de Hannan, onde as novas voam mais numerosas que as pombas: por isso nada ouvira da apparição d'um
Messias...
De resto, acrescentou, não podia ser o Messias! Esse deveria chamar-se
Manahem «o consolador», porque traria a consolação a Israel. E haveria dois Messias: o primeiro, da tribu de José, seria vencido por Gog; o segundo, filho de David e cheio de força, venceria Magog. Antes d'elle nascer começariam sete annos de maravilhas: haveria mares evaporados, estrellas despregadas do céo, fomes e taes farturas que até as rochas dariam fructo: no ultimo anno correria sangue entre as nações: emfim resoaria uma voz portentosa: e, sobre o Hebron, com uma espada de fogo, surgiria o Messias!...
Dizia estas coisas peregrinas fendendo a casca d'um figo. Depois com um suspiro: --Ora ainda nenhuma d'essas maravilhas, meu filho, annunciou a consolação!...
E atolou os dentes no figo.
Então fui eu, Theodorico, Ibero, d'um remoto municipio romano, que contei a um Physico de Jerusalem, creado entre os marmores do Templo, a vida do Senhor! Disse as coisas dôces e as coisas fortes: as tres claras estrellas sobre o seu berço; a sua palavra amansando as aguas de
Galilêa; o coração dos simples palpitando por elle; o Reino do Céo que promettia; e a sua face augusta brilhando diante do Pretor de Roma...
--Depois os Padres, os Patricios e os Ricos crucificaram-no!
Doutor Eliezer, volvendo a remexer o açafate de figos, murmurou pensativamente: --Triste, triste!... Todavia, meu filho, o Sanhedrin é misericordioso.
Em sete annos, desde que o sirvo, apenas tem lançado tres sentenças de morte... Sim, decerto o mundo necessita bem escutar uma palavra de amor e de justiça: mas Israel tem soffrido tanto com innovadores, com prophetas!... Emfim, nunca se deveria derramar o sangue do homem... E a verdade é que estes figos de Bephtagé não valem os meus de Silo!
Calado, enrolei um cigarro. E n'esse instante o douto Topsius, debatendo ainda com Gamaliel o Hellenismo e as escólas Socraticas, empinado, d'oculos na ponta do bico, soltava este resumo forte: --Socrates é a semente; Platão a flôr; Aristoteles o fructo... E d'esta arvore, assim completa, se tem nutrido o espirito humano!
Mas Gamaliel subitamente ergueu-se: Doutor Eliezer tambem, arrotando com effusão. Ambos tomaram os cajados, ambos gritaram: --Alleluia! Louvai o Senhor que nos tirou da terra do Egypto!
Findára a ceia Paschal. O esclarecido Historiador, que limpava o suor da controversia, olhou logo vivamente o relogio e rogou a Gamaliel permissão de subir ao terraço, a refrescar a sua emoção no ar macio d'Ophel... O Doutor da Lei conduziu-nos á varanda alumiada pallidamente por lampadas de mica, mostrou-nos a ingreme escada de ebano que levava aos eirados; e chamando sobre nós a graça do Senhor, penetrou com
Eliezer n'um aposento cerrado por cortinas de Mesopotamia--d'onde sahiu um aroma, um fino rumor de risos e sons lentos de lyra.
Que dôce ar no terraço! E que alegre essa noite de Paschoa em Jerusalem!
No céo, mudo e fechado como um palacio onde ha luto, nenhum astro brilhava: mas o burgo de David e a collina d'Acra, com as suas illuminações rituaes, pareciam salpicadas d'ouro. Em cada eirado, vasos com estopa ardendo em oleo lançavam uma chamma ondeante e vermelha. Aqui e além, n'alguma casa mais alta os fios de luzes, na parede escura, reluziam como um collar de joias no pescoço d'uma negra. O ar estava dôcemente cortado dos gemidos de flauta, da dolente vibração das cordas do konnor: e em ruas alumiadas por grandes fogueiras de lenha, viamos esvoaçar, claras e curtas, as tunicas de gregos dançando a callabida.
Só as torres, mais vastas na noite, a Hippica, a Marianna, a Pharsala se conservavam escuras: e o mugido das suas bozinas passava por vezes, rouco e rude, como uma ameaça, sobre a santa cidade em festa.
Mas para além das muralhas recomeçava a alegria da noite paschal. Havia luzes em Siloeh. Nos acampamentos, sobre o monte das Oliveiras, ardiam fogos claros: e como as portas ficavam abertas, filas de tochas fumegavam pelos caminhos, por entre um rumor de cantares.
Só uma collina, além do Gareb, permanecera em treva. N'essa hora, por baixo d'ella, n'uma ravina entre rochas, alvejavam dois corpos despedaçados, onde os bicos dos abutres com um ruido secco de ferros entrechocados faziam a sua ceia Paschal. Ao menos outro corpo, precioso envolucro d'um espirito perfeito, jazia resguardado n'um tumulo novo, envolto em linho fino, ungido, perfumado de canella e de nardo. Assim o tinham deixado n'essa noite, a mais santa d'Israel, aquelles que o amavam--e que desde então para todo o sempre mais entranhadamente o amariam... Assim o tinham deixado com uma pedra lisa por cima: e agora entre as casas de Jerusalem, cheias de luzes e cheias de cantos--alguma havia, escura e fechada, onde corriam lagrimas sem consolação. Ahi o lar esfriára, apagado: a lampada triste esmorecia sobre o alqueire: na bilha não havia agua, porque ninguem fôra á fonte; e sentadas na esteira, com os cabellos cahidos, aquellas que o tinham seguido de Galilêa fallavam d'elle, das primeiras esperanças, das parabolas contadas por entre os trigaes, dos tempos suaves á beira do lago...
Assim eu pensava, debruçado sobre o muro, olhando Jerusalem--quando no terraço surgiu, sem rumor, uma fórma envolta em linhos brancos, espalhando um aroma de canella e de nardo. Pareceu-me que d'ella irradiava um clarão, que os seus pés não pisavam as lages--e o meu coração tremeu! Mas d'entre os pallidos panos uma benção sahiu, grave e familiar: --Que a paz seja comvosco!
Ah! que allivio! Era Gad.
--Que a paz seja comtigo!
O Essenio parou diante de nós, calado; e eu sentia os seus olhos procurarem o fundo da minha alma, para lhe sondar bem a grandeza e a força. Por fim murmurou, immovel como uma imagem tumular nas suas grandes vestes brancas: --A lua vai nascer... Todas as coisas esperadas se estão cumprindo...
Agora, dizei! Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardal-o até ao oasis d'Engaddi?
Ergui-me, atirando os braços ao ar, n'um terror!... Acompanhar o Rabbi!
Elle não jazia pois morto, ligado e perfumado, sob uma pedra, n'uma horta do Qareb?... Vivia! Ao nascer da lua, entre os seus amigos, ia partir para Engaddi! Agarrei anciosamente o hombro de Topsius, amparando-me ao seu saber forte e á sua auctoridade...
O meu douto amigo parecia enleado n'uma pesada incerteza: --Sim, talvez... O nosso coração é forte, mas... Além d'isso não temos armas!
--Vinde commigo! acudiu Gad, ardentemente. Passaremos por casa d'alguem que nos dirá as coisas que convém saber, e que vos dará armas!...
Ainda trémulo, sem me desamparar do sapiente Historiador, ousei balbuciar: --E Jesus?... Onde está?
--Em casa de José de Ramatha, segredou o Essenio espreitando em roda como o avaro que falla d'um thesouro. Para que nada suspeitasse a gente do Templo, mesmo na presença d'elles depositámos o Rabbi no tumulo novo que está no horto de José. Tres vezes as mulheres choraram sobre a pedra que segundo os ritos, como sabeis, não fechava inteiramente o tumulo, deixando uma larga fenda por onde se via o rosto do Rabbi. Alguns serventes do Templo olharam, e disseram: «Está bem.» Cada um recolheu á sua morada... Eu entrei pela porta de Genath, nada mais vi. Mas, apenas anoitecesse, José e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vem no livro de Salomão fazel-o reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotisado e o soffrimento... Vinde pois, vós que o amaes tambem e crêdes n'elle!...
Impressionado, decidido, Topsius traçou a sua farta capa: e descemos, n'um cauto silencio, pela escada que do terraço levava um caminho de pedra miuda collado á muralha nova d'Herodes.
Longo tempo marchámos na escuridão, guiados pelas roupagens brancas do
Essenio. D'entre casebres em ruinas, por vezes um cão saltava uivando.
Sobre as altas ameias passavam mortiças lanternas de ronda. Depois uma sombra que tossia ergueu-se de sob uma arvore, triste e molle como se sahisse da sua sepultura; e roçando o meu braço, puxando a capa de
Topsius, rogava-nos através de gemidos e baforadas d'alho que fôssemos dormir ao seu leito que ella perfumára de nardo.
Parámos finalmente diante d'um muro, a que uma esteira grossa d'esparto cerrava a entrada. Um corredor que ressumbrava agua levou-nos a um pateo rodeado por uma varanda, assente sobre rudes vigas de madeira: o chão molle como lodo abafava o rumor das nossas solas.
Gad, tres vezes espaçadas, soltou o grito dos chacaes. Nós esperavamos no meio do pateo, á borda d'um poço, coberto com tábuas: o céo, por cima, guardava a escuridão dura e impenetravel d'um bronze. A um canto, emfim, sob a varanda, um clarão vivo de lampada surgiu--alumiando a barba negra do homem que a trazia e que lançára sobre a cabeça a ponta d'um albornoz pardo de galileu. Mas a luz morreu sob um sôpro forte. E o homem, lentamente, na treva, caminhou para nós.
Gad cortou a desolada mudez: --Que a paz seja comtigo, irmão! Estamos promptos.
O homem pousou devagar a lampada sobre a tampa do poço, e disse: --Tudo está consummado.
Gad, estremecendo, gritou: --O Rabbi?
O homem atirou a mão para abafar o grito do Essenio. Depois, tendo sondado a sombra em redor com olhos inquietos que reluziam como os d'um animal do deserto: --São coisas mais altas do que podemos entender. Tudo parecia certo. O vinho narcotisado fôra bem preparado pela mulher de Rosmophim, que é habil e conhece os simples... Eu tinha fallado ao Centurião, um camarada a quem salvei a vida na Germania, na campanha de Publius. E, quando rolámos a pedra sobre o tumulo de José de Ramatha, o corpo do Rabbi estava quente!
Mas calou-se: e, como se o pateo fechado sob o céo negro não fosse bastante secreto e seguro, tocou no hombro de Gad, e sem um rumor dos pés nús recolheu á escuridão mais densa sob a varanda, até ás pedras do muro. Nós, rente a elle e mudos, tremiamos de anciedade:--e eu senti que uma revelação ia passar, suprema e prodigiosa, alumiando os Mysterios.
--Ao anoitecer, segredou o homem por fim com um murmurio triste d'agua correndo na sombra, voltámos ao tumulo. Olhámos pela fenda: a face do
Rabbi estava serena e cheia de magestade. Levantámos a pedra, tirámos o corpo. Parecia adormecido, tão bello, como divino, nos panos que o envolviam... José tinha uma lanterna: e levámol-o pelo Gareb, correndo através do arvoredo. Ao pé da fonte encontrámos uma ronda da Cohorte auxiliar. Dissemos: «é um homem de Joppé que adoeceu, e que nós levamos á sua synagoga.» A ronda disse: «passai». Em casa de José estava Simeon o Essenio, que viveu em Alexandria e sabe a natureza das plantas: e tudo fôra preparado, até a raiz do baraz... Estendemos Jesus na esteira.
Démos-lhe a beber os cordiaes, chamámol-o, esperámos, orámos... Mas ai!
sentiamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante abriu lentamente os olhos, uma palavra sahiu-lhe dos labios. Era vaga, não a comprehendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono... Depois estremeceu: um pouco de sangue appareceu-lhe ao canto da bocca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabbi ficou morto!
Gad cahiu pesadamente de joelhos, soluçando: e o homem, como se todas as coisas tivessem sido ditas, deu um passo para buscar a sua lampada ao poço. Topsius deteve-o, com avidez: --Escuta! Preciso toda a verdade. Que fizestes depois?
O homem parou junto a um dos pilares de madeira. Depois, alargando os braços na escuridão, e tão perto das nossas faces que eu sentia o seu bafo quente: --Era necessario, para bem da terra, que se cumprissem as prophecias!
Durante duas horas José de Ramatha orou, prostrado. Não sei se o Senhor lhe fallou em segredo; mas, quando se ergueu, resplandecia todo e gritou: «Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!» Depois, por sua ordem, enterrámos o Rabbi n'uma caverna que elle tem, talhada na rocha, por traz do moinho...
Atravessou o pateo, tomou a sua lampada. E recolhia lentamente, sem um rumor, quando Gad, erguendo a face, o chamou através dos seus soluços: --Escuta ainda! Grande é o Senhor, na verdade!... E o outro tumulo, onde as mulheres de Galilêa o deixaram, ligado e envolto em panos, com aloes e com nardo?
O homem, sem parar, murmurou, já sumido na treva: --Lá ficou aberto, lá ficou vazio!...
Então Topsius arrastou-me pelo braço tão arrebatadamente que tropeçavamos no escuro contra os pilares da varanda. Uma porta ao fundo abriu-se, com um brusco estrondo de ferros cahidos... E vi uma praça, rodeada de pallidos arcos, triste e fria, com herva entre as fendas das lages dessoldadas, como n'uma cidade abandonada. Topsius estacou, os seus oculos faiscavam: --Theodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalem!... A nossa jornada ao Passado acabou... A lenda inicial do christianismo está feita, vai findar o mundo antigo!
Eu considerei, assombrado e arripiado, o douto Historiador. Os seus cabellos ondeavam agitados por um vento de inspiração. E o que levemente sahia dos seus finos labios retumbava, terrivel e enorme, cahindo sobre o meu coração: --Depois d'ámanhã, quando acabar o Sabbath, as mulheres de Galilêa voltarão ao sepulchro de José de Ramatha onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!...
«Desappareceu, não está aqui!...» Então Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém--«resuscitou, resuscitou!» E assim o amor d'uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais á humanidade!
E, atirando os braços ao ar, correu através da praça--onde os pilares de marmore começavam a tombar, sem ruido e mollemente. Arquejando, parámos no portão de Gamaliel. Um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de cadêas partidas, segurava os nossos cavallos. Montámos. Com um fragor de pedras levadas n'uma torrente, varámos a Porta d'Ouro: e galopámos para
Jerichó, pela estrada romana de Sichem, tão vertiginosamente que não sentiamos as ferraduras ferir as lages negras de basalto. Adiante, a capa branca de Topsius torcia-se açoutada por uma rajada furiosa. Os montes corriam aos lados, como fardos sobre dorsos de camêlos na debandada d'um povo. As ventas da minha egoa dardejavam jactos de fumo avermelhado:--e eu agarrava-me ás clinas, tonto, como se rolasse entre nuvens...
De repente avistámos, alargada, cavada até ás serras de Moab, a planicie de Canaan. O nosso acampamento alvejava junto ás bragas dormentes da fogueira. Os cavallos estacaram, tremendo. Corremos ás tendas: sobre a mesa, a vela que Topsius accendera para se vestir, havia mil e oitocentos annos, morria n'um fogacho livido... E derreado da infinita jornada atirei-me para o catre, sem mesmo descalçar as botas brancas de pó...