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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 3 - Parte 2

Templo... Cesar, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um pacto d'elle com esse «rei dos Judeus» para sublevarem uma rica provincia imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter podiam custar-lhe o proconsulado da Judêa! Orgulho e justiça foram então na sua alma frouxa como ondas um momento altas que uma sobre outra se abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os braços, como trazido por um impulso magnanimo de conciliação--e começou a dizer, mais branco que a sua toga: --Ha sete annos que governo a Judêa. Encontrastes-me jámais injusto, ou infiel ás promessas juradas?... Decerto as vossas ameaças não me movem... Cesar conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de Cesar, não deve haver desaccordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum outro Procurador desde Coponius tenho respeitado as vossas leis...

Quando vieram os dois homens de Samaria polluir o vosso Templo, não os fiz eu suppliciar? Entre nós não deve haver dissenções, nem palavras amargas...

Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e sacudindo-as, como molhadas n'uma agua impura: --Quereis a vida d'esse visionario? Que me importa? Tomai-a... Não vos basta a flagellação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que derramo esse sangue!

O levita macilento bradou com paixão: --Somos nós, e que esse sangue cáia sobre as nossas cabeças!

E alguns estremeceram--crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as coisas pensadas.

Poncius deixára a sala: o Decurião, saudando, cerrou a porta de cedro.

Então Rabbi Robam voltou-se, sereno, resplandecente como um justo: e adiantando-se por entre os Phariseus, que se baixavam a beijar-lhe as franjas da tunica--murmurava com uma grave doçura: --Antes soffra um só homem do que soffra um povo inteiro!

Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagára a testa, cahi, tremulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente distinguia no Pretorio dois legionarios, de cinturão desapertado, bebendo n'uma grande malga de ferro que um negro ia enchendo com o ôdre suspenso aos hombros; adiante uma mulher bella e forte, sentada ao sol, com os filhos pendurados dos dois peitos nús; mais longe um pegureiro envolto em pelles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixára na tenda, ardendo junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um somno ligeiro... Quando despertei a cadeira curul permanecia vazia--com a almofada de purpura em frente, sobre o marmore, gasta, cavada pelos pés do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, n'um longo rumor de arraial, o velho atrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas d'estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as lages d'uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e as mulheres que os seguiam, sordidas e macilentas, atiravam de longe com o braço fremente maldições ao Rabbi. Outros no emtanto, caminhando na ponta das sandalias, apregoavam baixo coisas infimas e ricas, mettidas no seio entre as dobras dos saiões--grãos d'aveia torrada, potes de unguentos, coraes, braceletes de filigrana de Sidon. Interroguei

Topsius: e o meu douto amigo, limpando os oculos, explicou-me que eram decerto os mercadores contra quem Jesus, na vespera de Paschoa, erguendo um bastão, reclamára a estreita applicação da Lei que interdiz traficos profanos no Templo, fóra dos porticos de Salomão...

--Outra imprudencia do Rabbi, D. Raposo! murmurou com ironia o fino historiador.

Entretanto, como cahira a sexta hora judaica e findára o trabalho, vinham entrando obreiros das tinturarias visinhas, ennodoados de escarlate ou azul; escribas das synagogas apertando debaixo dos braços os seus tabularios; jardineiros com a fouce a tiracollo, o ramo de murta no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da orelha... Tocadores phenicios a um canto afinavam as harpas, tiravam suspiros das flautas de barro: e diante de nós rondavam duas prostitutas gregas de Tiberiade, com perucas amarellas, mostrando a ponta da lingua e sacudindo a roda da tunica d'onde voava um cheiro de mangerona. Os legionarios, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma cercadura de ferro em torno de Jesus: e eu, agora, mal podia distinguir o Rabbi através d'essa multidão susurrante, em que as consoantes asperas de Moab e do deserto se chocavam por sobre a molleza grave da falla chaldaica...

Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão que offerecia n'um cabaz d'esparto, acamados sobre folhas de parra, figos rachados de Bephtagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe, debruçado no parapeito, o preço d'aquelle mimo dos vergeis que os

Evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços como se encontrasse o esperado do seu coração: --Entre mim e ti, ó creatura d'abundancia que vens d'além do mar, que são estes poucos figos? Jehovah manda que os irmãos troquem presentes e bençãos! Estes fructos colhi-os no horto, um a um, á hora em que o dia nasce no Hebron; são succulentos e consoladores; poderiam ser postos na mesa de Hannan!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti se os nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Syria, e que o Senhor cubra de bens aquella que te creou!

Eu sabia que esta offerta era uma cortezia consagrada, em compras e vendas, desde o tempo dos Patriarchas. Cumpri tambem o ceremonial: declarei que Jehovah, o muito forte, me ordenava que com o dinheiro cunhado pelos Principes eu pagasse os fructos da Terra... Então o hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o cesto nas lages, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de terra: --Em verdade, exclamou, Jehovah é o mais forte! Se elle o manda, eu devo pôr um preço a estes fructos da sua bondade, mais dôces que os labios da esposa! Justo é pois, ó homem abundante, que por estes dois que me enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom traphik.

Oh Deus magnifico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um tostão da moeda real da minha patria! Bradei-lhe:--«Irra, ladrão!»

Depois, guloso e tentado, offereci-lhe um drachma por todos os figos que coubessem no forro largo d'um turbante. O homem levou as mãos ao seio da tunica, para a despedaçar na immensidade da sua humilhação. E ia invocar

Jehovah, Elias, todos os Prophetas seus patronos--quando o sapiente

Topsius, enojado, interveio seccamente, mostrando-lhe uma miuda rodella de ferro que tinha por cunho um lirio aberto: --Na verdade Jehovah é grande! E tu és ruidoso e vazio como o ôdre cheio de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este meah. E se não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do Templo, e sei onde as aguas dôces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!

O homem logo, trepando anciosamente até ao parapeito de marmore, atulhou de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno.

Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós eramos mais beneficos que o orvalho do Carmello!

Saborosa e rara me parecia aquella merenda de figos de Bephtagé, no palacio de Herodes. Mas apenas nos accommodáramos com a fruta no regaço, reparei em baixo n'um velhito magro, que cravava em nós humildemente uns olhos ennevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus--quando elle, mergulhando a mão tremula nos farrapos que mal lhe velavam o peito cabelludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia.

Era uma placa oval d'alabastro tendo gravada uma imagem do Templo. E emquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio outras pedras de marmore, d'onyx, de jaspe, com representações do

Tabernaculo no deserto, os nomes das tribus entalhados, e figuras confusas em relevo simulando as batalhas dos Machabeus... Depois ficou com os braços cruzados; e no seu pobre rosto escavado pelos cuidados luzia uma anciedade, como se de nós sómente esperasse misericordia e descanso.

Topsius deduziu que elle era um d'esses Guebros, adoradores do fogo e habeis nas artes, que vão descalços até ao Egypto, com fachos accesos, salpicar sobre a Esphinge o sangue d'um gallo negro. Mas o velho negou, horrorisado--e tristemente murmurou a sua historia. Era um pedreiro de

Naim, que trabalhára no Templo e nas construcções que Antipas Herodes erguia em Bezetha. O açoite dos intendentes rasgára-lhe a carne; depois a doença levára-lhe a força como a geada sécca a macieira. E agora, sem trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras nos montes--e gravava n'ellas nomes santos, sitios santos, para as vender no Templo aos fieis. Em vespera de Paschoa, porém, viera um Rabbi de Galilêa cheio de cólera que lhe arrancára o seu pão!...

--Aquelle! balbuciou suffocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.

Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dôr d'esse

Rabbi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?

--Então vendias no Templo? perguntou o terso historiador dos Herodes.

--Sim, suspirou o velho, era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do longo anno! N'esses dias subia ao Templo, offertava a minha prece ao

Senhor, e junto á porta de Suza, diante do Portico do Rei, estendia a minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol...

Decerto, eu não tinha direito de pôr alli tenda: mas como poderia eu pagar ao Templo o aluguer de um covado de lagedo para vender o trabalho das minhas mãos! Todos os que apregôam á sombra, debaixo do portico, sobre taboleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a licença: alguns pagam um siclo d'ouro. Eu não podia com crianças em casa sem pão... Por isso ficava a um canto, fóra do portico, no peor sitio.

Alli estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando homens duros me empurravam ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Joppé, que offerecia um oleo para fazer crescer os cabellos, e Osêas, de Ramah, que vendia flautas de barro...

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