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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 3 - Parte 2

Mas subitamente um grito varou o céo no alto da collina, supremo e arrebatado como o de uma libertação! Os dedos frouxos do velho emmudeceram entre as cordas de metal: com a cabeça descabida, a corôa do louro épico meio desfolhada, parecia chorar sobre a lyra hellenica, d'ora em diante e para longas idades silenciosa e inutil. E ao lado a criança, tirando a flauta dos labios, erguia para as cruzes negras os olhos claros--onde subia a curiosidade e a paixão d'um mundo novo.

Topsius pediu ao velho a sua historia. Elle contou-a, com amargura.

Viera de Samnos a Cesarêa, e tocava o konnor junto ao Templo d'Hercules.

Mas a gente abandonava o puro culto dos heroes; e só havia festas e offrendas para a Boa Deusa da Syria! Acompanhára depois uns mercadores a

Tiberiade: os homens ahi não respeitavam a velhice, e tinham corações interesseiros como escravos. Seguira então pelas longas estradas, parando nos postos romanos onde os soldados o escutavam; nas aldeias de

Samaria batia ás portas dos lagares; e para ganhar o pão duro tocára a cythara grega nos funeraes dos barbaros. Agora errava alli, n'essa cidade onde havia um grande Templo, e um Deus feroz e sem fórma que detestava as gentes. E o seu desejo era voltar a Mileto, sua patria, sentir o fino murmurio das aguas do Meandro, poder palpar os marmores santos do templo de Phebo Dydimeo--onde elle em criança levára n'um cesto e cantando os primeiros anneis dos seus cabellos...

As lagrimas rolavam pela sua face, tristes como a chuva por um muro em ruinas. E a minha piedade foi grande por aquelle Rapsodo das ilhas da

Grecia, perdido tambem na dura cidade dos judeus, envolto pela influencia sinistra d'um Deus alheio! Dei-lhe a minha derradeira moeda de prata. Elle desceu a collina, apoiado ao hombro da criança, lento e curvado, com a orla esfarrapada do manto trapejando nas pernas núas, e muda e mal segura do cinto a lyra heroica de cinco cordas.

No emtanto, em torno ás cruzes, no alto, crescera um rumor de revolta. E fômos encontrar a gente do Templo, com as mãos no ar, mostrando o sol que descia como um escudo d'ouro para o lado do mar de Tyro, intimando o

Centurião a que baixasse os condemnados da cruz antes de soar a hora santa da Paschoa! Os mais devotos reclamavam que se applicasse aos crucificados, se ainda viviam, o crurifragio romano, quebrando-lhes os ossos com barras de ferro, arrojando-os ao despenhadeiro de Hinom. E a indifferença do Centurião exasperava o zelo piedoso. Ousaria elle macular o Sabbath, deixando um corpo morto no ar? Alguns enrolavam a ponta do manto para correr, e ir a Acra avisar o Pretor.

--O sol declina! O sol vai deixar o Hebron! gritou de cima d'uma pedra um levita, aterrado.

--Acabai-os, acabai-os!

E ao nosso lado, um formoso moço exclamava, requebrando os olhos languidos, movendo os braços cheios de manilhas d'ouro: --Atirai o Rabbi aos corvos! Dai ás aves de rapina a sua Paschoa!

O Centurião, que espreitava o alto da torre Marianna onde os escudos suspensos luziam batidos pelo sol derradeiro--acenou devagar com a espada. Dois Legionarios, lançando pesadamente ao hombro as barras de ferro, marcharam com elle para as cruzes. Eu, arripiado, agarrei o braço de Topsius. Mas diante do madeiro de Jesus o Centurião parou, erguendo a mão...

O corpo branco e forte do Rabbi tinha a serenidade d'um adormecimento: os pés empoeirados, que ha pouco a dôr torcia dentro das cordas, pendiam agora direitos para o chão como se o fossem em breve pisar: e a face não se via, tombada para traz mollemente por sobre um dos braços da cruz, toda voltada para o céo onde elle puzera o seu desejo e o seu reino...

Eu olhei tambem o céo: rebrilhava, sem uma sombra, sem uma nuvem, liso, claro, mudo, muito alto, e cheio de impassibilidade...

--Quem reclamou o corpo d'este homem? gritou, procurando para os lados, o Centurião.

--Eu, que o amei em vida! acudiu Joseph de Ramatha, estendendo por cima da corda o seu pergaminho.

O escravo que esperava junto d'elle depoz logo no chão a trouxa de linho e correu para as ruinas do casebre onde as mulheres choravam entre as amendoeiras.

E por traz de nós, Phariseus e Sadduceus que se tinham juntado estranhavam com azedume que José de Ramatha, um membro do Sanhedrin, assim solicitasse o corpo do Rabbi para o perfumar e lhe fazer soar em torno as flautas e os prantos d'um funeral... Um d'elles, corcovado, com esfiadas melenas luzidias d'oleo, affirmava que sempre conhecera José de

Ramatha inclinado para todos os innovadores, todos os sediciosos... Mais d'uma vez o vira fallar com esse Rabbi junto ao campo dos Tintureiros...

E com elles estava Nicodemus, homem rico que tem gados, que tem vinhas, e todas as casas que estão d'ambos os lados da Synagoga de Cyrenaica...

Outro, rubicundo e molle, gemeu: --Que será da nação, se os mais considerados se juntam aos que adulam o pobre, e lhe ensinam que os fructos da terra devem ser igualmente para todos!...

--Raça de Messias! bradou o mais moço com furor, atirando o bastão contra as urzes. Raça de Messias, perdição d'Israel!

Mas o Sadduceu de melenas oleosas ergueu devagar a mão, ligada em tiras sagradas: --Socegai: Jehovah é grande: e tudo em verdade determina para melhor...

No Templo e no Conselho não faltarão jámais homens fortes que mantenham a velha Ordem; e em cima dos calvarios, felizmente, hão de sempre erguer-se as cruzes!...

E todos susurraram: --Amen!

No emtanto o Centurião, com os soldados atraz levando ao hombro as barras de ferro, marchava para os outros madeiros onde os condemnados, vivos e cheios d'agonia pediam agua--um pendido e gemendo, outro torcido, com as mãos rasgadas, rugindo terrivelmente. Topsius, que sorria friamente, murmurou: «É tempo, vamos.»

Com os olhos alagados d'agua amarga, tropeçando nas pedras, desci ao lado do fecundo critico a collina de Immolação. E sentia uma densa melancolia entenebrecer a minha alma pensando n'essas cruzes vindouras, annunciadas pelo conservador de guedelha oleosa... Assim seria, oh dura miseria! Sim! d'ora ávante, por todos os seculos a vir, iria sempre recomeçando em torno á lenha das fogueiras, sob a frialdade das masmorras, junto ás escadas das forcas--este affrontoso escandalo de se juntarem Sacerdotes, Patricios, Magistrados, Soldados, Doutores e

Mercadores para matarem ferozmente no alto d'um morro o justo que penetrado do esplendor de Deus ensine a Adoração em Espirito, ou cheio do amor dos homens proclame o Reino da Igualdade!

Com estes pensamentos recolhi a Jerusalem--emquanto as aves, mais felizes que os homens, cantavam nos cedros do Gareb...

* * * * *

Escurecera e era a hora da Ceia Paschal, quando chegámos a casa de

Gamaliel: no pateo, preso a uma argola, estava o burro, albardado de panos pretos, que trouxera o amavel physico Eliezer de Silo.

Na sala azul, de tecto de cedro, perfumada de malobrathro, o austero

Doutor já nos aguardava estendido no divan de correias brancas, com os pés nús, as largas mangas arregaçadas e pregadas no hombro--e ao lado um bordão de viagem, uma cabaça d'agua e uma trouxa, emblemas rituaes da sahida do Egypto. Defronte d'elle, n'uma mesa incrustada de madreperola, entre vasos de barro com flôres pintadas, açafates de filigrana de prata transbordando de fruta e pedaços scintillantes de gelo, erguia-se um candelabro em fórma de arbusto, tendo na ponta de cada galho uma pallida chamma azul: e, com os olhos perdidos no seu brilho tremulo, as mãos cruzadas no ventre, Eliezer, o benigno «Doutor da Tripa», sorria beatificamente encostado a almofadas de couro vermelho. Junto d'elle dois escabellos, recobertos com tapetes da Assyria, esperavam por mim e pelo sagaz Historiador.

--Sêde bem vindos, rosnou Gamaliel. Grandes são as maravilhas de Sião, deveis vir esfomeados...

Bateu de leve as palmas. Os escravos, caminhando sem ruido nas sandalias de feltro, e precedidos majestosamente pelo homem obeso de tunica amarella, entraram, erguendo muito alto largos pratos de cobre que fumegavam.

A um lado tinhamos, para limpar os dedos, um bôlo de farinha branco, fino e molle como um pano de linho; do outro um prato largo, com cercadura de perolas, onde negrejava entre ramos de salsa um montão de cigarras fritas; no chão jarros com agua de rosa. Cumprimos as abluções: e Gamaliel, tendo purificado a bocca com um pedaço de gêlo, murmurou a oração ritual sobre a vasta travessa de prata, onde o cabrito assado fazia transbordar o môlho d'açafrão e saumura.

Topsius, bom sabedor das maneiras orientaes, arrotou fortemente, por cortezia, demonstrando fartura e deleite: depois, com uma febra de anho entre os dedos, affirmou sorrindo aos Doutores que Jerusalem lhe parecera magnifica, formosa de claridade, e bemdita entre as cidades...

Eliezer de Silo acudiu, com os olhos cerrados de gozo, como se o acariciassem: --Ella é uma joia melhor que o diamante, e o Senhor engastou-a no centro da Terra para que irradiasse igualmente o seu brilho em redor...

--No centro da Terra!... murmurou o Historiador, com douto espanto.

Sim! E, ensopando um pedaço de bôlo no môlho d'açafrão, o profundo

Physico explicou a Terra. Ella é chata e mais redonda que um disco; no meio está Jerusalem a santa, como um coração cheio do amor do Altissimo; em redor a Judêa, rica em balsamos e palmeiras, cerca-a de sombra e de aromas; para além ficam os pagãos, em regiões duras onde nem o mel nem o leite abundam; depois são os mares tenebrosos... E por cima o céo, sonoro e solido.

--Solido!... balbuciou o meu sapiente amigo, esgazeado.

Os escravos serviam em taças de prata cerveja amarella da Media. Com solicitude Gamaliel aconselhou-me que, para lhe avivar o sabôr, trincasse uma cigarra frita. E Rabbi Eliezer, sabio entre todos nas coisas da Natureza, revelava a Topsius a divina construcção do céo.

Elle é feito de sete duras, maravilhosas, rutilantes camadas de crystal; por cima d'ellas constantemente rolam as grandes aguas; sobre as aguas fluctua n'um fulgôr o espirito de Jehovah... Estas laminas de crystal, furadas como um crivo, resvalam umas sobre as outras com uma musica dôce e lenta que os prophetas mais queridos por vezes ouviam...

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