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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 3 - Parte 2

Curvára-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre nós os olhos miudos que dardejavam um brilho inexoravel e frio, proseguiu, sempre de manso e subtil: --Mas em verdade vos digo, que esse Rabbi de Galilêa deve morrer! Porque é o dever do homem que tem bens na terra e searas apagar depressa com a sandalia, sobre as lages da eira, a fagulha que ameaça inflammar-lhe a mêda... Com o romano em Jerusalem, todo aquelle que venha e se proclame

Messias, como o de Galilêa, é nocivo e perigoso para Israel. O romano não comprehende o Reino do céo que elle promette: mas vê que essas prédicas, essas exaltações divinas agitam sombriamente o povo dentro dos porticos do Templo... E então diz: «na verdade este Templo, com o seu ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a auctoridade de

Cesar na Judêa...» E logo, lentamente, annulla a força do Templo diminuindo a riqueza, os privilegios do seu sacerdocio. Já para nossa humilhação, as vestes pontificaes são guardadas no erario da Torre

Antonia: ámanhã será o Candelabro d'ouro! Já o Pretor usou, para nos empobrecer, o dinheiro do Corban! Ámanhã os dizimos da colheita, o dos gados, o dinheiro da offrenda, o óbolo das trombetas, os tributos rituaes, todos os haveres do sacerdocio, até as viandas dos sacrificios, nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para irmos mendigar nas estradas de Samaria, á espera dos mercadores ricos da

Decapola... Em verdade vos digo, se quizermos conservar as honras e os thesouros, que são nossos pela antiga Lei, e que fazem o esplendor d'Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um Templo quieto, policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabbi deve morrer!

Assim diante de mim fallou Osanias, filho de Beothos, e membro do

Sanhedrin.

Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverencia as mãos sobre o peito, saudou tres vezes aquelles homens facundos. Gad, immovel, orava. No azul da janella uma abelha côr d'ouro zumbia em torno da flôr de madresilva. E Topsius dizia com pompa: --Homens que me haveis acolhido, a verdade abunda nos vossos espiritos como a uva abunda nas videiras! Vós sois tres torres que guardaes Israel entre as nações: uma defende a unidade da Religião, outra mantem o enthusiasmo da Patria: e a terceira, que és tu, venerando filho de

Beothos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma cousa mais preciosa que é a Ordem!... Vós sois tres torres: e contra cada uma o Rabbi de Galilêa ergue o braço e lança a primeira pedrada!

Mas vós guardaes Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o Judaismo nunca poderiam viver juntos.

E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara fragil, disse, mostrando os dentes brancos: --Por isso o crucificamos!

Foi como uma faca acerada que, lampejando e silvando, se viesse cravar no meu peito! Arrebatei, suffocado, a manga do douto historiador: --Topsius! Thopsius! quem é esse Rabbi que prégava em Galilêa, e faz milagres e vai ser crucificado?

O sabio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe perguntasse qual era o astro que d'além dos montes traz a luz da manhã.

Depois, seccamente: --Rabbi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazareth em Galilêa, a quem alguns chamam Jesus e outros tambem chamam o Christo.

--O nosso! gritei, vacillando, como um homem atordoado.

E os meus joelhos catholicos quasi bateram as lages, n'um impulso de ficar alli cahido, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e para sempre. Mas logo como uma labareda chammejou por todo o meu sêr o desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortaes no corpo do meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!...

E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha n'um aspero vento, tremia a minha alma n'um terror sombrio:--o terror do servo negligente diante do amo justo! Estava eu bastante purificado com jejuns e terços para affrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiencia da minha devoção! Eu não beijára jámais, com sufficiente amor, o seu pé dorido e rôxo na sua igreja da Graça! Ai de mim! Quantos domingos, n'esses tempos carnaes em que a Adelia, sol da minha vida, me esperava na travessa dos Caldas, fumando e em camisa--não maldissera eu a lentidão das Missas e a monotonia dos Septenarios! E sendo assim do craneo á sola dos pés uma crosta de peccado, como poderia meu corpo não tombar, já reprobo, já tisnado, quando os dois globos dos olhos do

Senhor, como duas metades do céo, se voltassem vagarosamente para mim?

Mas vêr Jesus! Vêr como eram os seus cabellos, que pregas fazia a sua tunica, e o que acontecia na terra quando os seus labios se abriam!...

Para além d'esses eirados onde as mulheres atiravam grão ás pombas; n'uma d'essas ruas d'onde me chegava claro e cantado o pregão dos vendedores de pães azymos--ia passando talvez n'esse temeroso instante, entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janella o ramo de madresilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte do meu Deus, já ensanguentada d'espinhos! Era só empurrar aquella porta de cedro, atravessar o pateo onde gemia a mó do moinho domestico,--e logo, na rua, eu poderia vêr presente e corporeo o meu Senhor Jesus tão realmente e tão bem como o viram S. João e S. Matheus. Seguiria a sua sacra sombra no muro branco--onde cahiria tambem a minha sombra. Na mesma poeira que as minhas solas pisassem--beijaria a pégada ainda quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu coração,--eu poderia surprehender, sahido da sua bocca ineffavel, um ai, um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova do Christo, não escripta no Evangelho;--e só eu teria o direito pontifical de a repetir ás multidões prostradas. A minha auctoridade surgia, na Igreja, como a d'um Testamento novissimo. Eu era uma testemunha inedita da Paixão. Tornava-me S. Theodorico Evangelista!

Então, com uma desesperada anciedade que espantou aquelles Orientaes de maneiras mesuradas, eu gritei: --Onde o posso vêr? Onde está Jesus de Nazareth, meu Senhor?

N'esse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandalias, veio cahir de bruços nas lages, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da tunica, as suas costellas magras arquejavam; por fim murmurou, exhausto: --Amo, o Rabbi está no Pretorio!

Gad emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em tôrno dos rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto, espalhando em redor o sulco louro dos seus cabellos revoltos. Topsius traçára a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam a solemnidade d'um marmore; e tendo comparado a hospitalidade de

Gamaliel á d'Abrahão, bradou-me triumphantemente: --Ao Pretorio!

* * * * *

Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalem, n'uma caminhada offegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passámos junto a um jardim de rosas, do tempo dos Prophetas, esplendido e silencioso, que dois levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua fresca, toda aromatisada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de taboletas em fórma de flôres e d'almofarizes: um toldo de esteiras finas assombreava as portas, o chão estava regado e juncado d'herva dôce e de folhas d'anemonas: e pela sombra preguiçavam moços languidos, de cabellos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer, nas mãos pesadas d'anneis, as sêdas roçagantes das tunicas côr de cereja e côr d'ouro. Além d'essa rua indolente abria-se uma praça, que escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se enterravam: solitaria, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu penacho, immovel e como de bronze: e ao fundo, negrejavam na luz as columnatas de granito do velho palacio de Herodes. Ahi era o Pretorio.

Defronte do arco d'entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo reluzente, dois legionarios da Syria--um bando de raparigas, tendo detraz da orelha uma rosa e no regaço coifas d'esparto, apregoavam os pães azymos. Sob um enorme guardasol de pennas, cravado no chão, homens de mitra de feltro, com taboas sobre os joelhos e balanças trocavam a moeda romana. E os vendedores d'agua, com os seus ôdres felpudos, lançavam um grito tremulo. Entrámos: e logo um terror me envolveu.

Era um claro pateo, aberto sob o azul, ladeado de marmore, tendo de cada lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria austera do Palacio, estendia-se um velario, d'um estofo escarlate franjado d'ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura: dois mastros de pau de sycomoro sustentavam-n'o, rematados por uma flôr de lotus.

Ahi apertava-se um magote de gente--onde se confundiam as tunicas dos

Phariseus orladas d'azul, o rude saião d'estamenha dos obreiros apertado com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e branco dos homens de Galilêa, e a capa carmezim de grande capuz dos mercadores de Tiberiade; algumas mulheres já fóra do abrigo do velario, alçavam-se na ponta das chinelas amarellas, estendendo por cima do rosto contra o sol, uma dobra do manto ligeiro: e d'aquella multidão sahia um cheiro morno de suor e de myrrha. Para além, por cima dos turbantes alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio, um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres d'uma toga pretexta, e mais immovel que um marmore, apoiava sobre o punho forte a barba densa e grisalha: os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos: uma fita escarlate prendia-lhe os cabellos: e por traz, sobre um pedestal que fazia espaldar á sua cadeira curul, a figura de bronze da

Loba Romana abria de travez a guela voraz. Perguntei a Topsius quem era aquelle magistrado melancolico.

--Um certo Poncius, chamado Pilatus, que foi Prefeito em Batavia.

Lentamente caminhei pelo pateo, procurando, como n'um templo, fazer mais subtil e respeitoso o ruido das minhas solas. Um grave silencio cahia do céo rutilante: só, por vezes, rompia do lado dos jardins, aspero e triste, o gritar dos pavões.

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