Capítulo 3 - Parte 2
A cada momento cruzavamos esses Phariseus, resoantes e vazios como tambores, que vêm ao Templo assoalhar a sua piedade--uns com as costas vergadas, esmagadas pela vastidão do peccado humano; outros, tropeçando e apalpando o ar, d'olhos fechados, para não vêr as fórmas impuras das mulheres; alguns mascarrados de cinza, gemendo, com as mãos apertadas sobre o estomago--em testemunho dos seus duros jejuns! Depois Topsius mostrou-me um Rabbi, interpretador de sonhos: n'um carão livido e chupado os seus olhos fundos luziam com a tristeza de lampadas de sepulchro: e, sentado sobre saccos de lã, estendia por cima de cada devoto, que vinha ajoelhar aos seus pés nús, a ponta d'um vasto manto negro com signos brancos pintados. Eu, curioso, pensava em o consultar--quando de repente gritos afflictos resoaram no atrio.
Corremos. Eram levitas, com cordas e vergas, chibatando furiosamente um leproso que, em estado de impureza, penetrára no pateo de Israel. O sangue salpicava as lages. Em torno crianças riam.
Ia cahindo a sexta hora judaica, a mais grata ao Senhor, quando o sol, na sua marcha para o mar, pára sobre Jerusalem a contemplal-a com paixão: e, para nos acercarmos do «atrio d'Israel», fomos penosamente fendendo a multidão que alli remoinhava vinda de toda a terra culta e barbara... O rude saião de pelles dos pegureiros das Idumêas roçava a chlamyde curta dos gregos de face rapada e mais brancos que marmores.
Havia homens solemnes da planicie de Babylonia, com as barbas mettidas dentro de saccos azues que uma corrente de prata lhes prendia ás mitras de couro pintado: e havia gaulezes ruivos, de bigodes pendentes como as hervas das suas lagôas, que riam e parolavam, devorando com a casca os limões dôces da Syria. Por vezes um romano togado passava, tão grave como se descesse d'um pedestal. Gente da Dacia e da Mysia, com as pernas enfeixadas em ligaduras de feltro, tropeçava deslumbrada pelo claro esplendor dos marmores. E não era menos estranho ir eu, Theodorico
Raposo, arrastando alli as minhas botas de montar, atraz d'um Sacerdote de Moloch, enorme e sensual na sua simarra de purpura, que, em meio d'um bando de mercadores de Serepta, desdenhava d'aquelle templo sem imagens, sem bosques, e mais ruidoso que uma feira phenicia.
Assim lentamente nos fomos chegando á porta chamada «A Bella», que dava accesso para o Atrio sagrado d'Israel. Bella em verdade, preciosa e triumphal, sobre os quatorze degraus de marmore verde de Numidia, mosqueado de amarello: os seus largos batentes, revestidos de chapas de prata, faiscavam como os d'um reliquario: e os dois humbraes, semelhantes a grossos mólhos de palmas, sustentavam uma torre, redonda e branca, guarnecida de escudos tomados aos inimigos de Judá, brilhantes no sol como um collar de gloria sobre o pescoço forte d'um heroe! Mas diante d'este adito maravilhoso erguia-se severamente um pilar, encimado por uma placa negra com letras d'ouro, onde se desenrolava esta ameaça em grego, em latim, em aramaico, em chaldaico: que nenhum Estrangeiro aqui penetre sob pena de morrer!
Fortunadamente avistámos o magro Gamaliel que se encaminhava ao Santo
Pateo, descalço, apertando ao peito um mólho d'espigas votivas: com elle vinha um homem nedio e risonho, de face côr de papoula, coroado por uma enorme mitra de lã negra enfeitada de fios de coral... Curvados até ás lages, saudámos o austero Doutor da Lei. Elle psalmodiou logo, de palpebras cerradas: --Sêde bemvindos... Esta é a hora melhor para receber a benção do
Senhor. O Senhor disse: «sahi das vossas habitações, vinde a mim com as primicias dos vossos fructos, eu vos abençoarei em todas as obras das vossas mãos...» Vós hoje pertenceis miraculosamente a Israel. Subi á morada do Eterno! Este que vem a meu lado é Eliezer de Silo, benefico e sabio entre todos nas coisas da natureza.
Deu-nos duas espigas de milho: e atraz d'elle pisámos com as nossas solas gentilicas o Adro interdicto de Judá.
Caminhando ao meu lado, Eliezer de Silo, cortez e suave, perguntou-me se era remota a minha patria e perigosos os seus caminhos...
Eu rosnei, vaga e recatadamente: --Sim... Chegamos de Jerichó.
--Boa, por lá, a colheita do balsamo?
--Rica! afiancei, com calor. Louvado seja o Eterno, que n'este seu anno de graça estamos lá abarrotadinhos de balsamo!
Elle pareceu regosijado. E revelou-me então que era um dos Medicos que residem no Templo--onde os Sacerdotes e os Sacrificadores soffrem perennemente «dissabores intestinaes», por pisarem suados e descalços as lages frias dos Adros.
--Por isso, murmurou elle com uma faisca alegre no olho benigno, o povo em Sião nos chama Doutores da Tripa!
Torci-me de riso, de gozo, com aquella jocosidade assim susurrada na austera morada do Eterno... Depois, recordando os meus dissabores intestinaes em Jerichó, por muito amar os divinos e perfidos melões da
Syria--perguntei ao amavel Physico se n'essas occorrencias elle preconisava o bismutho...
O homem magistral abanou cautamente a sua mitra bojuda. Depois, espetando um dedo no ar, segredou-me esta receita incomparavel: --Tomai gomma de Alexandria, açafrão de jardim, uma cebola da Persia e vinho negro de Emmaus... Misturai, cozei... Deixai esfriar n'um vaso de prata... Collocai-vos n'uma encruzilhada, ao nascer do sol...
Mas emmudeceu subitamente, com os braços abertos e a face pendida para as lages. Penetráramos no soberbo adro, chamado «Pateo das Mulheres»: e n'esse instante terminavam as Bençãos que á sexta hora um sacerdote vem alli derramar do alto da porta de Nicanor.
Severa, toda de bronze--ella deixava entrevêr, lá ao fundo, os ouros, a neve, as pedrarias do Santuario refulgindo com serenidade... Nos largos degraus, mais lustrosos que alabastro, desenrolavam-se duas collegiadas de levitas, ajoelhados e vestidos de branco--uns com uma trompa recurva, outros pousando os dedos sobre as cordas mudas de lyras. E, por entre estas alas de homens prostrados, um grande velho emmaciado vinha descendo devagar os degraus, com um incensador de ouro na mão...
A sua tunica justa de byssus tinha a fimbria orlada de pinhas d'esmeralda, alternando com guizos que tiniam finamente; os pés sem sandalias e tingidos d'heneh pareciam de coral; e ao meio da facha que lhe cingia as costellas magras brilhava, bordado a ouro, um grande sol.
Os fieis ajoelhados, quedos, sem um murmurio, quasi pousavam nas lages a cabeça escondida sob os mantos e sob os véos: e com as côres festivas, onde dominava o vermelho da anemona e o verde da figueira, era como se o adro estivesse juncado de flôres e folhagens, n'uma manhã de triumpho, para passar Salomão!
Com a barba aguda e dura levantada aos céos--o velho incensou o lado do
Oriente e das areias, depois o lado do Occidente e dos mares; e o recolhimento era tão enlevado que se ouviam no fundo do Santuario os mugidos lentos dos bois. Desceu ainda, alçou mais a mitra salpicada de joias, atirou o incensador que rangeu faiscando ao sol--e com o fumo branco veio rolando tenue e cheirosa, sobre Israel, a benção do
Muito-Forte. Então os levitas, unisonamente, feriram as cordas das lyras: das trombetas curvas subiu um grito de bronze: e todo o povo erguido, com os braços ao céo, entoou um psalmo celebrando a eternidade de Judá... E subitamente tudo cessou: os Levitas recolhiam pela escadaria de marmore sem um rumor dos pés nús: Eliezer de Silo e o rigido Gamaliel tinham desapparecido sob os Porticos: e o claro pateo em redor resplandecia sumptuoso e cheio de mulheres.
Os revestimentos de alabastro eram tão lustrosos que Topsius mirava n'elles como n'um espelho as pregas nobres da sua capa: todos os fructos da Asia e as flôres dos vergeis se entrelaçavam, em copiosos lavores de prata, nas portas das camaras rituaes onde se perfuma o oleo, se consagra a lenha, se purifica a lepra: entre as columnas pendiam em festões fios grossos de perolas e de contas d'onyx, mais numerosos que no peito de uma noiva: e nos mealheiros de bronze, semelhantes a trombetas de guerra colossaes, pousadas nas lages, enrolavam-se, scintillando e reclamando as dadivas, inscripções em relevo de ouro, graciosas como versos de canticos--Queimai Incensos e Nardos, Offertai
Pombas e Rôlas...
Mas o santo adro resplandecia de mulheres: e meus olhos bem depressa deixaram metaes e marmores, para captivadamente se prenderem áquellas filhas de Jerusalem, cheias de graça e morenas como as tendas do Cedar!
Todas traziam no Templo o rosto descoberto: ou apenas um fôfo véo, d'uma musselina leve como o ar, á moda romana, enrodilhado finamente no turbante, punha em torno das faces uma alvura d'espuma, onde os olhos negros tomavam um quebranto mais humido, enlanguecidos pelas densas pestanas, alongados pela tintura de cypro. A abundancia barbara dos ouros, das pedrarias, envolvia-as n'uma radiancia tremula desde os peitos fortes até aos cabellos mais crespos que a lã das cabras de
Galaad. As sandalias, ornadas de guizos e de correntes, arrastavam sobre as lages uma melodia argentina, tanta era a graça concertada dos seus movimentos ondulados e graves: e os tecidos bordados, os algodões de
Galacia, os finos linhos de côres que as cingiam, ensopados nas escencias ardentes d'ambar, de malobathro e de baccaris, enchiam o ar de fragancia e de molleza a alma dos homens. As mais ricas caminhavam solemnemente entre escravas vestidas de panos amarellos, que lhes traziam o párasol de pennas de pavão, os rolos devotos em que está escripta a Lei, saccos de tamaras dôces, espelhos ligeiros de prata. As mais pobres, com uma simples camisa de algodão de riscadinho multicôr, e sem mais joias que um rude talisman de coral, corriam, chalravam, mostrando nús os braços e o collo côr de medronho mal maduro... E sobre todas o meu desejo zumbia--como uma abelha que hesita entre flôres de igual doçura!
--Ai Topsius, Topsius! rosnava eu. Que mulheres! Que mulheres! Eu estoiro, esclarecido amigo!
O sabio affirmava com desdem que ellas não tinham mais intellectualidade que os pavões dos jardins d'Antipas; e que nenhuma decerto alli lêra
Aristoteles ou Sophocles!... Eu encolhia os hombros. Oh esplendor dos céos! por qual d'estas mulheres que não lêra Sophocles não daria eu, se fosse Cesar, uma cidade de Italia e toda a Iberia!