Capítulo 4 - Parte 2
E era essa idéa de patria que me torturava, emquanto nos afastavamos das muralhas da Cidade Santa... Como poderia eu jámais penetrar com este pacote lubrico na casa ecclesiastica da tia Patrocinio? Constantemente a titi se encafuava no meu quarto, munida de chaves falsas, aspera e avida, rebuscando pelos cantos, nas minhas cartas e nas minhas ceroulas... Que cólera a esverdearia se n'uma noite de pesquizas ella encontrasse estas rendas babujadas pelos meus labios, fedendo a peccado, com a offerta em letra cursiva «Ao meu portuguezinho valente!» «Se soubesse que n'esta santa viagem te tinhas mettido com saias, escorraçava-te como um cão!» Assim o dissera a titi, em vesperas da minha romagem, diante da Magistratura e da Egreja. E iria eu, pelo luxo sentimental de conservar a reliquia d'uma luveira, perder a amizade da velha que tão caramente conquistára com terços, pingos d'agua benta e humilhações da razão liberal? Jámais!... E, se não afoguei logo o embrulho funesto na agua d'um charco, ao atravessarmos as choças de
Kolonieh, foi para não revelar ao penetrante Topsius as covardias do meu coração. Mas decidi que mal penetrassemos com a noite nas montanhas de
Judá, retardaria o passo á egoa, e longe dos oculos do Historiador, longe das solicitudes de Potte, arrojaria a um barranco a terrivel camisa da Mary, evidencia do meu peccado e damno da minha fortuna. E que bem depressa os dentes dos chacaes a rasgassem! Bem depressa os chuveiros do Senhor a apodrecessem!
Já passáramos o tumulo de Samuel por traz dos rochedos d'Emmaus, já para sempre Jerusalem desapparecera aos meus olhos, quando a egoa de Topsius, avistando uma fonte, n'um valle cavado junto á estrada, deixou a caravana, deixou o dever--e trotou para a agua, com impudencia e com alacridade. Estaquei, indignado: --Puxe-lhe a redea, doutor! Olha que descaro d'egoa! Ainda agora bebeu... Não lhe ceda! Puxe mais! Não lhe toque, homem!
Mas debalde o philosopho, com os cotovêlos sahidos, as pernas esticadas, lhe repuxava bridões e clinas. A cavalgadura abalou com o philosopho.
Corri tambem á fonte, para não abandonar n'aquelle ermo o precioso homem. Era um fio d'agua turva, escorrendo d'uma quelha, sobre um tanque escavado na rocha. Ao pé branquejava, já partida, a grande carcassa d'um dromedario. Os ramos d'uma mimosa, alli solitaria, tinham sido queimados por um fogo de caravana. Longe, na espinha escarnada d'uma collina, um pastor, negro no céo opalino, ia caminhando devagar entre as suas ovelhas com a lança pousada ao hombro. E na sombria mudez de tudo a fonte chorava.
Aquella quebrada era tão deserta que me lembrou deixar alli a desfazer-se, como a ossada do dromedario, o embrulhinho da Mary... A egoa do Historiador beberava com pachorra. E eu procurava aqui, além, um barranco ou um charco--quando me pareceu que junto da fonte, e misturado ao pranto d'ella, corria tambem um pranto humano.
Torneei um penedo que avançava soberbamente como a prôa d'uma galera--e descobri, agachada e refugiada entre as pedras e os cardos, uma mulher que chorava, com uma criancinha no regaço: os seus cabellos crespos espalhavam-se pelos hombros e pelos braços, que os trapos negros mal cobriam: e sobre o filho, que dormia no calor do collo, o seu chôro corria, mais contínuo, mais triste que o da fonte, e como se não devesse findar jámais.
Gritei pelo jocundo Potte. Quando elle trotou para nós, agarrando a coronha prateada da sua pistola, suppliquei que perguntasse á mulher a causa d'essas longas lagrimas. Mas ella parecia entontecida pela miseria: fallou surdamente d'um casebre queimado, de cavalleiros turcos que tinham passado, do leite que lhe seccava... Depois apertou a criança contra a face--e suffocada, sob os cabellos esguedelhados, recomeçou a chorar.
O festivo Potte deitou-lhe uma moeda de prata; Topsius tomou, para a sua severa conferencia sobre a Judêa Musulmana, um apontamento d'aquelle infortunio. E eu, commovido, procurava na algibeira o meu cobre--quando me recordei que o dera n'um punhado ao negro do Hotel do Mediterraneo.
Mas tive uma util inspiração. Atirei-lhe o perigoso embrulho da camisinha da Mary; e a meu pedido o risonho Potte explicou á desventurada que qualquer das peccadoras que habitam junto á torre de
David, a gorda Fatmé ou Palmira a Samaritana, lhe daria duas piastras d'ouro por esse vestido de luxo, de amor e de civilisação.
Trotámos para a estrada. Atraz de nós a mulher lançava-nos, por entre soluços e beijos ao filho, todas as bençãos do seu coração: e a nossa caravana retomou a marcha--emquanto o arrieiro adiante, escarranchado sobre as bagagens, cantava á estrella de Venus que se erguera esse canto da Syria, aspero, alongado e dolente, em que se falla d'amor, de Allah, d'uma batalha com lanças, e dos rosaes de Damasco...
* * * * *
Ao apearmos de manhã no Hotel de Josaphat, na vetusta
Jaffa--prodigiosa foi a minha surpreza vendo, pensativamente sentado no pateo, com um bojudo turbante branco, o mofino Alpedrinha!... Fiz-lhe ranger os ossos n'um abraço voraz. E quando Topsius e o jocundo Potte partiram, debaixo do guardasol de paninho, a colher novas do paquete que nos devia levar á terra do Egypto--Alpedrinha contou-me a sua historia, escovando o meu albornoz.
Fôra por tristeza que deixára a «Alexandriasinha». O Hotel das
Pyramides, as maletas carregadas, tinham já saturado a sua alma d'um tedio insondavel: e o nosso embarque no Caimão para Jerusalem dera-lhe a saudade dos mares, das cidades cheias d'historia, das multidões desconhecidas... Um judeu de Keshan, que ia fundar uma estalagem em
Bagdad com bilhar, alliciára-o para «marcador». E elle, mettendo n'um sacco as piastras juntas nas amarguras do Egypto, ia tentar essa aventura do Progresso junto ás aguas lentas do Euphrates, na terra de
Babylonia. Mas, cansado de acarretar fardos alheios, buscava primeiro
Jerusalem, insensivelmente, levado talvez pelo Espirito como o Apostolo, para descansar com as mãos quietas a uma esquina da Via Dolorosa...
--E o cavalheiro recebeu alguns jornaes da nossa Lisboa? Gostava de saber como vai por lá a rapaziada...
Emquanto elle assim balbuciava, triste e com o turbante á banda, eu revia risonhamente a terra quente do Egypto, a rua clara das Duas
Irmãs, a capellinha entre platanos, as papoilas do chapéo da Mary... E mais agudo me picava outra vez o desejo da minha loira luveira. Que dôce grito de paixão nos seus beiços gordinhos, quando uma tarde, queimado pelo sol da Syria e mais forte, eu surgisse diante do seu balcão espantando o gato branco! E a camisinha?... Bem! contaria que uma noite, junto d'uma fonte, m'a tinham roubado cavalleiros turcos com lanças.
--Dize lá, Alpedrinha! Tenl-a visto, a Maricoquinhas? Que tal está?
hein? Rechonchudinha?
Elle baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivára duas rosas.
--Já não está... Foi para Thebas!
--Para Thebas? Onde ha umas ruinas?... Mas isso é no alto Egypto! Isso é em cascos de Nubia! Ora essa!... Que foi ella lá fazer?
--Alindar as vistas, murmurou Alpedrinha com desolação.
Alindar as vistas! Só comprehendi quando o patricio me contou que a ingrata rosa d'York, adorno d'Alexandria, fôra levada por um italiano de cabellos compridos, que ia a Thebas photographar as ruinas d'esses palacios onde viviam face a face Rameses, rei dos homens, e Amnon, rei dos Deuses... E Maricoquinhas ia amenisar «as vistas», apparecendo n'ellas, á sombra austera dos granitos sacerdotaes, com a graça moderna do seu guardasolinho fechado e do seu chapéo de papoilas...
--Que descarada! gritei eu, varado. Então com um italiano? E gostando d'elle? Ou só negocio?... Hein, gostando?
--Babadinha, balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josaphat. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me n'alma uma suspeita abominavel.
--Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui ha perfidia, Alpedrinha!
Elle baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que elle o levantasse já eu lhe empolgára com sanha o braço molle.
--Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Tambem petiscaste?
A minha face barbuda chammejava... Mas Alpedrinha era meridional, das nossas terras palreiras da vangloria e do vinho. O medo cedeu á vaidade,--e revirando para mim o bugalho branco do olho: --Tambem petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Tambem aquella--com aquelle! Oh, a Terra! a Terra! que é ella senão um montão de coisas pôdres, rolando pelos céos com basofias d'astro?
--E dize lá, Alpedrinha, dize lá, tambem te deu uma camisa?
--A mim um chambresinho...
Tambem a elle--roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.
--E ouve lá... Tambem te chamava «seu portuguezinho valente?» --Como eu servia com turcos, chamava-me seu «moirosinho catita».
Ia rebolar-me no divan, rasgal-o com as unhas, rir sempre, n'um desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte appareceram alvoroçados.
--Então?...
Sim, chegára de Smyrna um paquete que levantava n'essa tarde ferro para o Egypto, e que era o nosso dilecto Caimão!
--Ainda bem! gritei, atirando patadas ao ladrilho. Ainda bem, que estava farto do Oriente!... Irra! que não apanhei aqui senão soalheiras, traições, sonhos medonhos e botas pelos quadris! Estava farto!
Assim eu bramava, sanhudo. Mas n'essa tarde, na praia, diante da barcaça negra que nos devia levar ao Caimão, entrou-me n'alma uma longa saudade da Palestina, e das nossas tendas erguidas sob o esplendor das estrellas, e da caravana marchando e cantando por entre as ruinas de nomes sonoros.
O labio tremeu-me, quando Potte commovido me estendeu a sua bolsa de tabaco d'Alepo: --D. Raposo, é o ultimo cigarro que lhe dá o alegre Potte.
E a lagrima rolou por fim quando Alpedrinha, em silencio, me estendeu os braços magros.
Da barcaça, acocorado sobre os caixões das Reliquias, ainda o vi na praia, sacudindo para mim um lenço triste de quadrados--ao lado de Potte que nos atirava beijos, com as grossas botas mettidas n'agua. E já no
Caimão, debruçado na amurada, ainda o avistei immovel sobre as pedras do molhe, segurando com as mãos, contra a brisa salgada, o seu vasto turbante branco.
Desventuroso Alpedrinha! Só eu, em verdade, comprehendi a tua grandeza!
Tu eras o derradeiro Lusiada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas á India! A mesma sêde divina do desconhecido te levára, como elles, para essa terra de Oriente, d'onde sobem ao céo os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei.
Sómente não tendo já, como os velhos Lusiadas, crenças heroicas concebendo empresas heroicas, tu não vaes como elles, com um grande rosario e com uma grande espada, impôr ás gentes estranhas o teu rei e o teu Deus.