Capítulo 5
O Deus a que te prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o céo para que teus braços trementes se erguiam--o testamento da titi... Para lograres n'elle o lugar melhor fingiste-te devoto sendo incredulo; casto sendo devasso; caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a rapacidade de herdeiro... Tu foste illimitadamente o Hypocrita! Tinhas duas existencias: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de rosarios, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente, outra, toda de gula, cheia da Adelia e da Benta... Mentiste sempre:--e só eras verdadeiro para o céo, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a
Jesus e á Virgem que rebentassem depressa a titi. Depois resumiste esse laborioso dolo d'uma vida inteira n'um embrulho--onde accommodáras um galho, tão falso como o teu coração; e com elle contavas empolgar definitivamente as pratas e predios de D. Patrocinio! Mas n'outro embrulho parecido trazias pela Palestina, com rendas e laços, a irrecusavel evidencia do teu fingimento... Ora justiceiramente aconteceu que o embrulho que offertaste á titi e que a titi abriu--foi aquelle que lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Theodorico, a inutilidade da hypocrisia.
Eu gemia sobre as táboas. A Voz susurrou, mais larga, como o vento da tarde entre as ramas: --Eu não sei quem fez essa troca dos teus embrulhos, picaresca e terrivel; talvez ninguem; talvez tu mesmo! Os teus tedios de desherdado não provêm d'essa mudança de espinhos em rendas:--mas de vivêres duas vidas, uma verdadeira e de iniquidade, outra fingida e de santidade.
Desde que contradictoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do lado esquerdo o obsceno Raposo--não poderias seguir muito tempo, junto da titi, mostrando só o lado, vestido de casimiras de domingo, onde resplandecia a virtude; um dia fatalmente chegaria em que ella, espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as maculas do vicio... E ahi está porque eu alludo, Theodorico, á inutilidade da hypocrisia.
De rojo eu estendia abjectamente os labios para os pés do Christo, transparentes, suspensos no ar, com prégos que despediam tremulas radiancias de joia. E a Voz passou sobre mim, cheia e rumorosa, como a rajada que curva os cyprestes: --Tu dizes que eu te persigo! Não. O oculo, isso a que chamas Profundas
Sociaes, são obra das tuas mãos--não obra minha. Eu não construo os episodios da tua vida; assisto a elles e julgo-os placidamente... Sem que eu me mova, nem intervenha influencia sobrenatural--tu pódes ainda descer a miserias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraisos da terra e ser director d'um Banco... Isso depende meramente de ti, e do teu esforço d'homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, ha pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazareth, nem outro Deus creado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitorios: elles dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem: e eternamente permaneço em torno d'elles e superior a elles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpetuo esforço de realisar fóra de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciencia; sou n'este instante a tua propria Consciencia reflectida fóra de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a fórma familiar, sob a qual, tu mal educado e pouco philosophico, estás habituado a comprehender-me...
Mas basta que te ergas e me fites, para que esta imagem resplandecente de todo se desvaneça.
E ainda eu não levantára os olhos--já tudo desapparecera!
Então, transportado como perante uma evidencia do Sobrenatural, atirei as mãos ao céo e bradei: --Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e padeceste por nós...
Mas emmudeci... Aquella ineffavel Voz resoava ainda em minha alma, mostrando-me a inutilidade da hypocrisia. Consultei a minha consciencia, que reentrára dentro de mim--e bem certo de não acreditar que Jesus fosse filho de Deus e d'uma mulher casada de Galilêa (como Hercules era filho de Jupiter e d'uma mulher casada da Argolida)--cuspi dos meus labios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inutil da oração.
* * * * *
Ao outro dia, casualmente, entrei no jardim de S. Pedro d'Alcantara--sitio que não pizára desde os meus annos de latim. E mal dera alguns passos, entre os canteiros, encontrei o meu antigo Chrispim, filho de Telles Chrispim & C.^a, com fabrica de fiação á
Pampulha--camarada que não avistára desde o meu grau de bacharel. Era este o louro Chrispim, que outr'ora no collegio dos Isidoros me dava beijos vorazes no corredor, e me escrevia á noite bilhetinhos promettendo-me caixas com pennas d'aço. Chrispim velho morrera: Telles, rico e obeso, passára a Visconde de S. Telles: e este meu Chrispim agora era a Firma.
Trocado um ruidoso abraço, Chrispim & C.^a notou pensativamente que eu estava «muitissimo feio.» Depois invejou a minha jornada á Terra Santa (que elle soubera pelo Jornal das Novidades) e alludiu, com amigavel regosijo, á «grossa maquia que me devia ter deixado a snr.^a D.
Patrocinio das Neves...»
Amargamente mostrei-lhe as minhas botas cambadas. Parámos n'um banco, junto d'uma trepadeira de rosas; e ahi, no silencio e no perfume, narrei a camisa funesta da Mary, a Reliquia no seu embrulho, o desastre no
Oratorio, o oculo, o meu quarto miseravel na travessa da Palha...
--De modo, Chrispimzinho da minh'alma, que aqui me encontro sem pão!
Chrispim & C.^a, impressionado, torcendo os bigodes louros, murmurou que em Portugal, graças á Carta e á Religião, todo o mundo tinha uma fatia de pão: o que a alguns faltava era o queijo.
--Ora o queijo dou-t'o eu, meu velho! ajuntou alegremente a Firma, atirando-me uma palmada ao joelho. Um dos empregados do escriptorio lá na Pampulha começou a fazer versos, a metter-se com actrizes... E muito republicano, achincalhando as coisas santas... Emfim, um horror, desembaracei-me d'elle! Ora tu tinhas boa letra. Uma conta de sommar sempre saberás fazer... Lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e cinco mil reis, sempre é o queijo!...
Com duas lagrimas a tremerem-me nas pestanas abracei a Firma. Chrispim e
C.^a murmurou outra vez, com uma careta de quem, sente um gosto azêdo: --Irra! que estás muitissimo feio!
Comecei então a servir com desvelo a fabrica de fiação á Pampulha: e todos os dias á carteira, com mangas de lustrina, copiava cartas na minha letra de bellas curvas e alinhava algarismos n'um vasto Livro de
Caixa... A Firma ensinára-me a «regra de tres», e outras habilidades.
E, como de sementes trazidas por um vento casual a um torrão desaproveitado, rompem inesperadamente plantas uteis que prosperam--das lições da Firma brotaram, na minha inculta natureza de bacharel em leis, aptidões consideraveis para o negocio da fiação. Já a Firma dizia, compenetrada, na Assembléa do Carmo: --Lá o meu Raposo, apesar de Coimbra e dos compendios que lhe metteram no caco, tem dedo para as coisas sérias!
Ora n'um sabbado d'agosto, á tarde, quando eu ia fechar o Livro de
Caixa, Chrispim & C.^a parou diante da minha carteira, risonho e accendendo o charuto: --Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir?
Silenciosamente, tirei a minha manga de lustrina.
--Eu pergunto isto, ajuntou logo a Firma, porque ámanhã vou com minha irmã á Outra Banda, a uma quinta nossa, á Ribeira. Ora se tu não estás muito apegado a outra missa, vinhas á de Santos, ás nove, iamos almoçar ao Hotel Central, e embarcavamos de lá para Cacilhas. Estou com vontade que conheças minha irmã!...
Chrispim & C.^a era um cavalheiro religioso que considerava a Religião indispensavel á sua saude, á sua prosperidade commercial, e á boa ordem do paiz. Visitava com sinceridade o Senhor dos Passos da Graça, e pertencia á Irmandade de S. José. O empregado, cuja carteira eu occupava, tornára-se-lhe sobretudo intoleravel por escrever no Futuro, gazeta republicana, folhetins louvando Renan e ultrajando a Eucharistia.
Eu ia dizer a Chrispim & C.^a que estava tão apegado á missa da
Conceição Nova, que outra não me podia saber bem... Mas lembrei a Voz austera e salutar da travessa da Palha! Recalquei a mentira beata que já me sujava os labios--e disse, muito pallido e muito firme: --Olha, Chrispim, eu nunca vou á missa... Tudo isso são patranhas... Eu não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos n'um pedaço d'hostia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca teve... Tudo isso são idolatrias, são carolices... Digo-te isto rasgadamente... Pódes fazer agora commigo o que quizeres. Paciencia!
A Firma considerou-me um momento mordendo o beiço: --Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gósto de gente lisa... O outro velhaco, que estava ahi a essa carteira, diante de mim dizia: «Grande homem, o Papa!» E depois ia para os botequins e punha o
Santo Padre de rastos... Pois acabou-se! Não tens religião, mas tens cavalheirismo... Em todo o caso, ás dez no Central para o almocinho, e á vela depois para a Ribeira!
Assim eu conheci a irmã da Firma. Chamava-se D. Jesuina, tinha trinta e dois annos e era zarôlha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a riqueza dos seus cabellos ruivos como os d'Eva, o seu peito solido e succulento, a sua pelle côr de maçã madura, o riso são dos seus dentes claros--tornavam-me pensativo, quando á tardinha, com o meu charuto, eu recolhia á Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das falúas...
Fôra educada nas Selesias: sabia Geographia e todos os rios da China, sabia Historia e todos os reis de França; e chamava-me
Theodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido á Palestina. Aos domingos agora eu jantava na Pampulha: D. Jesuina fazia um prato d'ovos queimados: e o seu olho vesgo pousava, com incessante agrado, na minha face potente e barbuda de Raposão. Uma tarde ao café, Chrispim & C.^a louvou a Familia Real, a sua moderação constitucional, a graça caridosa da Rainha. Depois descemos ao jardim: e andando D. Jesuina a regar, e eu ao lado enrolando um cigarro, suspirei e murmurei junto ao seu hombro:--«V. exc.^a, D. Jesuina, é que estava a calhar para Rainha, se cá o Raposinho fosse Rei!» Ella, córando, deu-me a ultima rosa do verão.
Em vesperas de Natal, Chrispim & C.^a chegou á minha carteira, pousou galhofeiramente o chapéo sobre a pagina do Livro de Caixa que eu ennegrecia de cifras, e cruzando os braços, com um riso de lealdade e estima: --Então com que, Rainha, se o Raposinho fosse Rei...? Ora diga lá o snr.
Raposo. Ha ahi dentro d'esse peito amor verdadeiro á mana Jesuina?
Chrispim & C.^a admirava a paixão e o ideal. Eu ia já dizer que adorava a snr.^a D. Jesuina como a uma estrella remota... Mas recordei a Voz altiva e pura da travessa da Palha! Recalquei a mentira sentimental que já me enlanguecia o labio--e disse corajosamente: --Amor, amor, não... Mas acho-a um bello mulherão: gosto-lhe muito do dote; e havia de ser um bom marido.
--Dá cá essa mão honrada! gritou a Firma.
* * * * *
Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a commenda de Christo. E o Dr. Margaride, que janta commigo todos os domingos de casaca, affirma que o Estado, pela minha illustração, as minhas consideraveis viagens e o meu patriotismo--me deve o titulo de
Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o Mosteiro. O digno Magistrado uma tarde, á mesa, annunciou que o horrendo Negrão, desejando arredondar as suas propriedades em Torres, decidira vender o velho solar dos condes de Landoso.
--Ora aquellas arvores, Theodorico--lembrou o benemerito homem--deram sombra á senhora sua mamã. Direi mais: as mesmas sombras cobriram seu respeitabilissimo pai, Theodorico!... Eu por mim, se tivesse a honra de ser um Raposo, não me continha, comprava o Mosteiro, erguia lá um torreão com ameias!
Chrispim & C.^a disse, pousando o copo: --Compra, é coisa de familia, fica-te bem.
E, n'uma vespera de Paschoa, assignei no cartorio do Justino, com o procurador do Negrão, a escriptura que me tornava emfim, depois de tantas esperanças e de tantos desalentos, o senhor do Mosteiro!
--Que faz agora esse maroto d'esse Negrão? indaguei eu do bom Justino, apenas sahiu o agente do sordido sacerdote.
O dilecto e fiel amigo deu estalinhos nos dedos. O Negrão pechinchava!
Herdára tudo do padre Casimiro, que lá tinha o seu corpo no alto de S.
João e a sua alma no seio de Deus. E agora era o intimo do padre
Pinheiro que não tinha herdeiros, e que elle levára para Torres, «para o curar». O pobre Pinheiro lá andava, mais chupado, empanturrando-se com os tremendos jantares do Negrão, deitando a lingua de fóra diante de cada espelho. E não durava, coitado! De sorte que o Negrão vinha a reunir (com excepção do que fôra para o Senhor dos Passos, que não podia tornar a morrer, esse!) o melhor da fortuna de G. Godinho.
Eu rosnei, pallido: --Que besta!
--Chame-lhe besta, amiguinho!... Tem carruagem, tem casa em Lisboa, tomou a Adelia por conta...
--Que Adelia?
--Uma de boas carnes, que esteve com o Eleuterio... Depois esteve muito era segredo com um basbaque, um bacharel, não sei quem...
--Sei eu.
--Pois essa! Tem-n'a por conta o Negrão, com luxo, tapete na escada, cortinas de damasco, tudo... E está mais gordo. Vi-o hontem, vinha de prégar... Pelo menos disse-me que «sahia de S. Roque esfalfado de dizer amabilidades a um diabo d'um Santo!» Que o Negrão ás vezes é engraçado.
E tem bons amigos, lábia, influencia em Torres... Ainda o vemos Bispo!
Recolhi á minha familia, pensativo. Tudo o que eu esperára e amára (até á Adelia!) o possuia agora legitimamente o horrendo Negrão!... Perda pavorosa! E que não proviera da troca dos meus embrulhos, nem dos erros da minha hyprocrisia.
Agora, pai, commendador, proprietario, eu tinha uma comprehensão mais positiva da vida: e sentia bem que fôra esbulhado dos contos de G.
Godinho simplesmente por me ter faltado no Oratorio da titi--a coragem d'affirmar!
Sim! quando em vez d'uma Corôa de Martyrio apparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de peccado--eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis ahi a Reliquia! Quiz fazer a surpreza... Não é a Corôa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Magdalena!... Deu-m'a ella no
Deserto!...»
E logo o provava com esse papel, escripto em letra perfeita: Ao meu portuguezinho valente, pelo muito que gozámos... Era essa a carta em que a Santa me offertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciaes--M. M.! Lá destacava essa clara, evidente confissão--«o muito que gozámos»: o muito que eu gozára em mandar á Santa as minhas orações para o céo, o muito que a Santa gozára no céo em receber as minhas orações!
E quem o duvidaria? Não mostram os santos Missionarios de Braga, nos seus sermões, bilhetes remettidos do céo pela Virgem Maria, sem sêllo? E não garante a Nação a divina authenticidade d'essas missivas, que têm nas dobras a fragrancia do paraiso? Os dois sacerdotes, Negrão e
Pinheiro, conscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de procurar esteios para a Fé oscillante--acclamariam logo na camisa, na carta e nas iniciaes, um miraculoso triumpho da Egreja! A tia Patrocinio cahiria sobre o meu peito, chamando-me «seu filho e seu herdeiro.» E eis-me rico! Eis-me beatificado! O meu retrato seria pendurado na sacristia da Sé. O Papa enviar-me-hia uma Benção Apostolica, pelos fios do telegrapho.
Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociaes. E quem sabe? Bem poderiam ficar tambem satisfeitas as ambições intellectuaes que me pegára o douto Topsius. Porque talvez a Sciencia, invejosa do triumpho da Fé, reclamasse para si esta camisa de Maria de Magdala como documento archeologico... Ella poderia alumiar escuros pontos na Historia dos
Costumes contemporaneos do Novo Testamento--o feitio das camisas na
Judêa no primeiro seculo, o estado industrial das rendas da Syria sob a administração Romana, a maneira de abainhar entre as raças semiticas...
Eu surgiria, na consideração da Europa, igual aos Champollions, aos
Topsius, aos Lepsius, e outros sagazes resuscitadores de Passado. A
Academia logo gritaria--«A mim, o Raposo!» Renan, esse heresiarcha sentimental, murmuraria--«Que suave collega, o Raposo!» Sem demora se escreveriam sobre a camisa da Mary sabios, ponderosos livros em allemão, com mappas da minha romagem em Galilêa... E eis-me ahi bemquisto pela
Egreja, celebrado pelas Universidades, com o meu cantinho certo na
Bemaventurança, a minha pagina retida na Historia, começando a engordar pacificamente dentro dos contos de G. Godinho!
E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroismo d'affirmar, que, batendo na Terra com pé forte, ou pallidamente elevando os olhos ao Céo--cria através da universal illusão, Sciencias e Religiões.