SCENARIO
De um dos cabeços da _Serra dos Órgãos_ deslisa um fio d'agua que se
dirige para norte, e engrossado com os mananciaes, que recebe no seu
curso de dez leguas, torna-se rio caudal.
É o _Paquequer_: soltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma
serpente, vai depois se espreguiçar na varzea e embeber no Parahyba,
que rola magestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-hia que vassallo e tributario desse rei das aguas, o pequeno rio,
altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés
do suzerano. Perde então a belleza selvatica; suas ondas são calmas e
serenas como as de um lago, e não se revoltão contra os barcos e as
canôas que resvalão sobre ellas: escravo submisso, soffre o latego do
senhor.
Não é neste lugar que elle deve ser visto; sim tres ou quatro leguas
acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indomito desta
patria da liberdade.
Ahi, o _Paquequer_ lança-se rapido sobre o seu leito, e atravessa as
florestas como o tapir, espumando, deixando o pello esparso pelas pontas
de rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De
repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recúa um
momento para concentrar as suas forças e precipita-se de um só
arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e
adormece n'uma linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como
em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outr'ora todo o seu luxo e
vigor; florestas virgens se estendião ao longo das margens do rio, que
corria no meio das arcarias de verdura e dos capiteis formados pelos
leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no scenario que a natureza, sublime artista,
tinha decorado para os dramas magestosos dos elementos, em que o homem
é apenas um simples comparsa.
No anno do graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava
deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia
menos de meio seculo, e a civilisação não tivera tempo de penetrar o
interior.
Entretanto, via-se á margem direita do rio uma casa larga e espaçosa,
construida sobre uma eminencia, e protegida de todos os lados por uma
muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edificio, formava um
semicirculo irregular que teria quando muito cincoenta braças
quadradas: do lado do norte havia uma especie de escada de lagedo feita
metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dous ou tres dos largos degráos de pedra da escada,
encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construida sobre uma
fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer,
chegava-se á beira do rio, que se curvava em seio gracioso; sombreado
pelas grandes gameleiras e angelins que crescião ao longo das margens.
Ahi, ainda a industria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza
para crear meios de segurança e defeza.
De um e outro lado da escada seguião dous renques de arvores, que,
alargando gradualmente, ião fechar como dous braços o seio do rio;
entre o tronco dessas arvores, uma alta cerca de espinheiros tornava
aquelle pequeno valle impenetravel.
A casa era edificada com a architectura simples e grosseira, que ainda
apresentão as nossas primitivas habitações; tinha cinco janellas de
frente, baixas, largas, quasi quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do edificio, que dava sobre um
pateo cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado
esquerdo estendia-se até á borda da esplanada uma aza do edificio, que
abria duas janellas sobre o desfiladeiro da rocha.
No angulo que esta aza fazia com o resto da casa, havia uma cousa que
chamaremos jardim, e de facto era uma imitação graciosa de toda a
natureza rica, vigorosa e esplendida, que a vista abraçava do alto do
rochedo.
Flores agrestes das nossas mattas, pequenas arvores copadas, um estandal
de relvas, um fio d'agua, fingindo um rio e formando uma pequena cascata
tudo isto a mão do homem tinha creado no peqneno espaço com uma arte e
graça admiravel.
Á primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde
se precipitava um arroio da largura de um copo d'agua, e o monte de
gramma, que tinha quando muito o tamanho de um divan, parecia que a
natureza se havia feito menina, e se esmerara em crear por capricho uma
miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma
cerca, era tomado por dous grandes armazens ou senzalas, que servião de
morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, á beira do precipicio, via-se
uma cabana de sapé, cujos esteios erão duas palmeiras que havião
nascido entre as fendas das pedras. As abas do tecto descião até o
chão: um ligeiro sulco privava as aguas da chuva de entrar nesta
habitação selvagem.
Agora que temos descripto o aspecto da localidade, onde se deve passar a
maior parte dos acontecimentos desta historia, podemos abrir a pesada
porta de jacarandá que serve de entrada, e penetrar no interior do
edificio.
A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente,
respirava um certo luxo que parecia impossivel existir nessa época em
um deserto, como era então aquelle sitio.
As paredes e o tecto erão caiados, mas cingidos por um largo florão de
pintura a fresco; nos espaços das janellas pendião dous retratos que
representavão um fidalgo velho e uma dama tambem idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão d'armas em campo de
cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata
sobre pallas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata, orlada
de vermelho, via-se um elmo tambem de prata paquife de ouro e de azul, e
por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.
Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mesmo
brasão, occultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um
oratorio. Defronte, entre as duas janellas do meio, havia um pequeno
docel fechado por cortinas brancas com apanhados azues.
Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarandá de pés
torneados, uma lampada de praia suspensa ao tecto, constituião a
mobilia da sala, que respirava um ar severo e triste.
Os aposentos interiores erão do mesmo gosto, menos as decorações
heraldicas; na aza do edificio, porém, esse aspecto mudava de repente, e
era substituido por um quer que seja de caprichoso e delicado que
revelava a presença de uma mulher.
Com effeito, nada mais loução do que essa alcova, em que os brocateis
de seda se confundião com as lindas pennas de nossas aves, enlaçadas
em grinaldas e festões pela orla do tecto e pela cupola do cortinado de
um leito collocado sobre um tapete de pelles de animaes selvagens.
A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos pés do qual
havia um escabello de madeira dourada.
Pouco distante, sobre uma commoda, via-se uma dessas guitarras
hespanholas que os ciganos introduzirão no Brasil quando expulsos de
Portugal, e uma collecção de curiosidades mineraes de côres mimosas e
formas exquisitas.
Junto á janella, havia um traste que á primeira vista não se podia
definir; era uma especie de leito ou sofá de palha matisada de varias
côres e entremeiada de pennas negras e escarlates.
Uma garça real empalada, prestes a desatar o vôo, segurava com o bico
a cortina de tafetá azul que ella abria com a ponta de suas azas
brancas e cahindo sobre a porta, vendava esse ninho da innocencia aos
olhos profanos.
Tudo isto respirava um suave aroma de beijoim, que se tinha impregnado
nos objectos como o seu perfume natural, ou como a atmosphera do paraiso
que uma fada habitava.