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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

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No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no «Jornal do Commercio» que S. Ex. fôra agraciado pelo governo portuguez como titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos para ir comprimental-o no domingo, o negociante dispunha-se a recebel-os condignamente. Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, viam-se nas janellas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Izaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um páo, os olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aquelles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia reboliço. Dona Estella, de penteador de cambraia enfeitado de laços côr de rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou apparecia no patamar da escada do fundo, preoccupada em soerguer as saias contra as aguas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira tambem ia e vinha, com a sua pallidez fria e humida de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava á janella, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, á porta do numero 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço, ella desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Barão, sobrecasacado, com o chapéo alto derreado para traz na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar, seguia até á despensa, diligente e esbaforido, indagando se já tinha vindo isto e mais aquillo, provando dos vinhos que chegavam em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo actividade, e depois tornava a sahir, sempre apressado, e mettia-se no carro que o esperava á porta da rua. --Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro apromptou os fogos! E viam-se chegar, quasi sem intermittencia, homens carregados de gigos de champanha, caixas de porto e bordeus, barricas de cerveja, cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões, canastras d'óvos, quartos de carneiro e de porco. E as janellas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, sahido do fogo, e travessões, de barro e de ferro, com grandes peças de carne em vinha d'alhos, promptos para entrar no forno. Á porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pelle. Todavia, cá em baixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o seductor da Florinda, desapparecêra durante a noite e um novo caixeiro o substituia ao balcão. O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido: --Sei cá! Creio que não podia trazel-o pendurado ao pescoço!... --Mas você disse que respondia por elle! repontou Marcianna, que parecia ter envelhecido dez annos n'aquellas ultimas vinte e quatro horas. --De accordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciencia! --Pois então ande com o dote! --Que dote? Você está bebada? --Bebada, hein?! Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar! --Ora, não me amole! E João Romão virou-lhe as costas, para fallar á Bertoleza que se chegára. --Deixa estar, malvado, que Deus é quem ha de punir por mim e por minha filha! exclamou a desgraçada. Mas o vendeiro afastou-se, indifferente ás phrases que uma ou outra lavadeira imprecava contra elle. Ellas, porém, já se não mostravam tão indignadas como na vespera; uma só noite rolada por cima do escandalo bastara para tirar-lhe o merito de novidade. Marcianna foi com a pequena á procura do sub-delegado e voltou aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer emquanto não apparecesse o delinquente. Mãe e filha passaram todo esse sabbado na rua, n'uma roda viva, da secretaria e das estações de policia para o escriptorio de advogados que, um por um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas as partes. Quando as duas, prostradas de cansaço, esbrazeadas de calôr, tornaram á tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou com o resto da fructa que não conseguiram vender na cidade, Marcianna vinha tão furiosa que, sem dar palavra á filha e com os braços moidos de esbordoal-a, abrio toda a casa e correu a buscar agoa para baldear o chão. Estava possessa. --Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto n'uma porcaria! Parece que nunca se limpa o diabo d'esta casa! É deixal-a fechada uma hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste! E notando que a pequena chorava:--Agora déste para chorar, hein?! mas na occasião do relaxamento havias de estar bem disposta! A filha soluçou. --Cala-te, coisa ruim! Não ouviste? Florinda soluçou mais forte. --Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão! E precipitou-se sobre uma acha de lenha. Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só carreira o pateo da estalagem, fugindo em desfilada pela rua. Ninguem teve tempo de apanhal-a, e um clamor de gallinheiro assustado levantou-se entre as lavadeiras. Marcianna foi até ao portão, como uma doida e, comprehendendo que a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos, olhando para o espaço. As lagrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo, sem transição, disparou da colera, que a convulsionava desde a manhã da vespera, para cahir n'uma dôr humilde e enternecida de mãe que perdeu o filho. --Para onde iria ella, meu pai do ceu?... --Pois você desd'hontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita. Fugio-lhe, é bem feito! Que diabo! ella é de carne, não é de ferro! --Minha filha! --É bem feito! Agora chore na cama, que é logar quente! --Minha filha! Minha filha! Minha filha! Ninguem quiz tomar o partido da infeliz, á excepção da cabocla velha, que foi collocar-se perto d'ella, fitando-a, immovel, com o seu desvairado olhar de bruxa feiticeira. Marcianna arrancou-se da abstração plangente em que cahira, para arvorar-se terrivel defronte da venda, apostrophando com a mão no ar e a carapinha desgrenhada: --Este gallego é que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não me déres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa! A bruxa sorrio sinistramente ao ouvir estas ultimas palavras. O vendeiro chegou á porta e ordenou em tom secco á Marcianna que despejasse o numero 12. --É andar! é andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um urbano! Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã, rua! Ah! elle esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma vez mandara Bertoleza á coisa mais immunda, apenas porque esta lhe fizera algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinham visto assim, tão fora de si, tão cheio de repellões; nem parecia aquelle mesmo homem inalteravel, sempre calmo e methodico. E ninguem seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o facto de ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão. Sim, senhor! aquelle taverneiro, na apparencia tão humilde e tão miseravel; aquelle sovina que nunca sahíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquelle animal que se alimentava peior que os cães, para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquelle ente atrophiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilegios e sentimentos de homem; aquelle desgraçado, que nunca jamais amára senão ao dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o devéras, com dobrada amargura do que soffrera o marido de Dona Estella, quando, por sua vez, o invejara a elle. Acompanhára-o desde que o Miranda viera habitar o sobrado com a familia; vira-o nas felizes occasiões da vida, cheio de importancia, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da politica; vira-o luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade fluminense; vira-o metter-se em altas especulações commerciaes e sahir-se bem; vira seu nome figurar em varias corporações de gente escolhida e em subscripções, assignando bellas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e festas de regosijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e acclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho deslumbramento! quando o vendeiro leu no «Jornal do Commercio» que o visinho estava barão--Barão!--sentio tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe apagou dos olhos. --Barão! E durante todo o santo dia não pensou n'outra coisa. «Barão!... Com esta é que elle não contava!...» E, defronte da sua preoccupação, tudo se convertia em commendas e crachás; até os modestos dois vintens de manteiga, que media sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguez, transformavam-se, de simples mancha amarella, em opulenta insígnia de oiro cravejada de brilhantes. Á noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não poude conciliar o somno. Por toda a miseria d'aquelle quarto sordido; pelas paredes immundas, pelo chão enlameado de poeira e cebo, nos tectos funebremente velados pelas teias de aranha, estrellavam pontos luminosos que se iam transformando em gram-cruzes, em habitos e veneras de toda a ordem e especie. E em volta do seu espirito, pela primeira vez allucinado, um turbilhão de grandezas, que elle mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, velludo e perolas, collos e braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos côr de oiro. E nuvens de caudas de vestido e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e á luz de candelabros de mil vélas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma corôa á portinhola, o cocheiro tezo, de libré, sopeando parelhas de cavallos grandes. E interminaveis mezas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, accumuladas de iguarias, n'uma encantadora confusão de flores, luzes, baixellas e crystaes, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de taça em punho, brindando o amphitryão. E, porque nada d'isso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruido namorador e fatuo, ficava deslumbrado com o seu proprio sonho. Tudo aquillo, que agora lhe deparava o delirio, até ahi só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o echo e reflexo de um mundo inattingivel e longinquo; um mundo habitado por seres superiores; um paraizo de gozos excellentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repelliam; um conjuncto harmonioso e discreto de sons e côres mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pallidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não determinava o que era petala de rosa ou aza de borboleta, murmurio de brisa ou ciciar de beijos. Não obstante, ao lado d'elle a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre. Mas João Romão nem dava por ella; só o que elle via e sentia era todo aquelle voluptuoso mundo inaccessivel vir descendo para a terra, chegando-se para o seu alcance, lentamente, accentuando-se. E as dubias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em fallas distinctas, e as linhas desenhavam-se nitidas, e tudo ia se esclarecendo e tudo se aclarava, n'um reviver de natureza ao raiar do sol. Os tenues murmurios suspirosos desdobravam-se em orchestras de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam politica, artes, litteratura e sciencia. E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida em palacio, entre mobilias preciosas e objectos esplendidos, onde elle se via cercado de titulares millionarios, e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão no hombro. E ali elle não era, nunca fôra, o dono de um cortiço, de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do oiro! o Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro? Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o proprietario sem igual! o incomparavel banqueiro, em cujos capitaes se equilibrava a terra, como immenso globo em cima de columnas feitas de moedas de oiro. E vio-se logo montado a cavalleiras sobre o mundo, pretendendo abarcal-o com as suas pernas curtas; na cabeça uma corôa de rei e na mão um sceptro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas; e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pygmeus em grande movimento commercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciaes do seu nome; e telegrammas faiscavam electricamente em volta da sua cabeça; e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem tregoa; e rapidos comboios a vapor atravessavam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de wagons. Mas, de repente, tudo desappareceu com a seguinte phrase: --Acorda, seu João, para ir á praia. São horas! Bertoleza chamava-o aquelle domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ella tinha de preparar para os seus freguezes. João Romão, com medo de ser illudido, não confiava nunca dos empregados a menor compra a dinheiro; n'esse dia, porém, não se achou com animo de deixar a cama e disse á amiga que mandasse o Manoel. Seriam quatro da madrugada. Elle conseguio então passar pelo somno. Ás seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janellas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta á entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estella mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de musica, em frente á porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a familia; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janellas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; accendia charutos, risonho, feliz, resplandecente. João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas duvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro. Qual seria o melhor e o mais acertado:--ter vivido como elle vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gosando á farta?... Estaria elle, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do visinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de accordo! mas teria animo de gastal-o assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente accumulados, em troca de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo familia e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fôra tão pouco condescendente para com a propria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem educada e distincta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso sómente da sua vontade?... «Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... com aquelles pés, deformados pelo diabo dos tamancos, criados á solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas mãos, callosas e mal tratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ageitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difficil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras doiradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?... E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencivel de cahir e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrivel convicção da sua impotencia para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu oiro. «Fôra urna besta!... pensou de si proprio, amargurado: uma grande besta!... Pois não! porque em tempo não tratára de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patricios e collegas de profissão?... Porque, como elles, não aprendêra a dansar? e não frequentára sociedades carnavalescas? e não fôra de vez em quando á rua do Ouvidor e aos theatros, e a bailes, e a corridas e a passeios?... Porque se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéo, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilegio para isso?... Maldita economia!» --Teria gasto mais, é verdade?... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quizesse!... Seria um homem civilisado!... --Você deu hoje pr'a conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que elle fallava sozinho, distrahido do serviço. --Deixe-me! Não me amole você tambem. Não estou bom hoje! --Ó gentes! não fallei por mal!... Crédo! --'Stá bem! Basta! E o seu máo humor aggravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com tudo. Arranjou logo uma péga, á entrada da venda, com o fiscal da rua: «Pois elle era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comel-o por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que elle não gostava de cães á porta!... Era andar!» Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato d'esta, que, a semana passada, lhe fôra ao taboleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerisado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, sahirem as crianças do seu caminho: «Que praga de piolhos! Arre, demonio! Nunca vira gente tão damnada para parir! Pareciam ratas!» Deu um encontrão no velho Liborio. --Sai tu tambem do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta para nada! Protestou contra os gallos de um alfaiate, que se divertia a fazel-os brigar, no meio de grande roda enthusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independencia do domingo, tinham á porta da casa uma esterqueira da cascas de melancia e laranja, que elles comiam tagarelando, assentados sobre a janella e a calçada. --Quero isto limpo! bramava furioso. Está peior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomára que a febre amarella os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseiado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! Com a pobre velha Marcianna, que não tratára de despejar o numero 12, conforme a intimação da vespera, a sua furia tocou ao delirio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persistencia maniaca. Não pregou olho durante toda a noite; sahíra e entrára na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadella a quem roubaram o cachorrinho. Estava apatetada; não respondia ás perguntas que lhe dirigiam. João Romão fallou-lhe; ella nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12. --Os tarecos fóra! e já! Aqui mandou eu! Aqui sou eu monarcha! E tinha gestos inflexiveis de despota. Principiou o despejo. --Não! aqui dentro não! Tudo lá fóra! na rua! gritou elle, quando os carregadores quizeram depôr no pateo os trens de Marcianna. Lá fóra do portão! Lá fóra do portão! E a misera, sem oppôr uma palavra, assistia ao despejo, acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos crusadas sobre as canellas, resmungando. Transeuntes paravam, a olhal-a. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguem entendia o que ella rosnava; era um rabujar confuso, interminavel, acompanhado de um unico gesto do cabeça, triste e automatico. Ali perto, o colchão velho, já rôto e destripado, os moveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos uteis, as louças ordinarias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que aos domingos apparecia sempre; e fez-se o entra e sáe dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os taboleiros de roupa engommada, que sabiam, cruzaram-se com os saccos de roupa suja, que entravam; e Marcianna não se movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o numero 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fóra, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficára abandonado; e a enxotada, indifferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ella de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe offerecimentos; Marcianna não respondia. Quizeram obrigal-a a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava attenção a coisa alguma; parecia não dar pela presença de ninguem. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ella persistia no seu inintelligivel monologo, sem tirar a vista de um ponto. --Cruzes! parece que lhe deu alguma! A Augusta chegára-se tambem. --Teria ensandecido?... perguntou á Rita, que, a seu lado olhava para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada! --Tia Marcianna! dizia a mulata. Não fique assim! Levante-se! Metta os seus trens pr'a dentro! Vá lá pr'a casa até encontrar arrumação!... Nada! O monologo continuava. --Olhe que vai chover! Não tarda a cahir agoa! Já senti dois pingos na cara. Qual! A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente immovel, como por um effeito de suggestão. Rita affastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dôres tambem veio. Deram tres horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada, cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a musica quasi que não tomava folego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dansavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo o instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar á despensa e á cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, apparecia de quando em quando á janella, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Leonie. João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pateo da estalagem, queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o proprio Jeronymo, cuja força physica aliás o intimidára sempre. «Era um relaxamento aquella porcaria de serviço! Havia tres semanas que estavam com uma broca á tôa, sem atar, nem desatar; afinal ahi chegára o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jeronymo, d'antes tão apurado, era agora o primeiro a dar o máo exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da Rita Bahiana e parecia embeiçado por ella! Não tinha geito!» Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defeza d'este com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os animos. Felizmente, a chuva, cahindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava serio. Cada um correu para o seu buraco, n'um alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fóra tomar banho debaixo das gotteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, emquanto a agoa jorrava copiosamente, alagando o pateo. Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cartão do Miranda. Era um convite para lá ir á noite tomar uma chavena de chá. O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obsequio, primeiro d'esse genero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a colera com maior impeto ainda. Aquelle convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. «Porque o pulha o convidára, devendo saber que elle de certo lá não ia?... Para que, senão para o enfreneziar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse á tabúa com a sua festa e com os seus titulos!» --Não preciso d'elle para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu! No emtanto, começou a imaginar como sería, no caso que estivesse prevenido de roupa e acceitasse o convite; figurou-se bem vestido, de panno fino, com uma boa cadeia de relogio, uma gravata com alfinete de brilhante; e vio-se lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando attenção a um, prestando attenção a outro, discretamente silencioso e affavel, sentindo que o citavam dos lados em voz mortiça e respeitosa como um homem rico, cheio de independencia. E adivinhava os olhares approbativos das pessoas sérias; os oculos curiosos das velhas assestados sobre elle, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para uma das filhas de menor cotação. N'esse dia servio mal e porcamente aos freguezes; tratou aos repellões a Bertoleza e, quando, já ás cinco horas, deu com a Marcianna, que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou: --Ora bolas! Pr'a que diabo me mettem em casa este estupor?! Gosto de ver taes caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de vagabundos!... E, como um policia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole de paraty, João Romão voltou-se para elle e disse-lhe:--Camarada, esta mulher é gira! não tem domicilio, e eu não hei de, quando fechar a porta, ficar com ella aqui dentro da venda! O soldado sahio e, d'ahi a coisa de uma hora, Marcianna era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monologo de demente. Os cacaréos foram recolhidos ao deposito publico por ordem do inspector do quarteirão. E a Bruxa era a unica que parecia deveras impressionada com tudo aquillo. Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reappareceu, como para despedir-se; andorinhas esgaivolaram no ar; e o cortiço palpitou inteiro na trefega alegria do domingo. Nas salas do barão a festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá uma taça quebrar-se no pateo da estalagem, levantando protestos e surriadas. A noite chegou muito bonita, com um bello luar de lua cheia, que começou ainda com o crepusculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda. Foi um forrobodó valente. A Rita Bahiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada! divina! Nunca dansára com tanta graça e tamanha lubricidade! Tambem cantou. E cada verso que vinha da sua bocca de mulata era um arulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bebado de volupia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e elle gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuaes, n'um desespero de luxuria que penetrava até ao tutano com lingoas finissimas de cobra. Jeronymo não poude conter-se: no momento em que a bahiana, offegante de cansaço, cahio exhausta, assentando-se ao lado d'ella, o portuguez segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão: --Meu bem! se você quizer estar commigo, dou uma perna ao demo! O mulato não ouvio, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar disfarçadamente o rival. O canto e a dansa continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dôres. Nênêm, mais uma amiga sua, que fôra passar o dia com ella, rodavam de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do rhythmo requebrado da musica. Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho á Rita, Fir

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