11
A Bruxa, por influencia suggestiva da loucura de Marcianna, peiorou do juizo e tentou incendiar o cortiço. Emquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ella, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o numero 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequencias foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquella ao fogo, não escaparam á devastação da policia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial agoaceiro apagar tambem o outro incendio ainda peior, que, de parte a parte, lavrava nos animos. A policia retirou-se sem levar nenhum preso. «A ir um, iriam todos á estação! Deus te livre! Demais, para que? o que ella queria fazer, fez! Estava satisfeita!»
Apezar do empenho do João Romão, ninguem conseguio descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reaccommodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo á meia noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pateo, avaliando e carpindo, inconsolavel e furioso, o seu prejuizo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito giráo quebrado, lampeões em fanicos, hortas e cercas arrazadas; o portão da frente e a taboleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o damno, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, augmentando-lhes o aluguel dos commodos e o preço dos generos. Vio-se n'uma dobadoira durante o dia inteiro; desde pela manhã déra logo os providencias para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possivel: mandou buscar novas tinas; fabricar novos giráos e concertar os quebrados; pôz gente a remendar o portão e a taboleta. Ao meio dia teve de comparecer á presença do subdelegado na secretaria da policia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espirito de camaradagem, quer por simples curiosidade.
Uma verdadeira patuscada esse passeio á cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levavam os seus pequenitos ao collo; um magote de italianos ia á frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguem tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, commentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a attenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farandula.
A sala da policia encheu-se.
O interrogatorio, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se vio tonta. Nenhum d'elles nada esclarecia e todos se queixavam da policia, exagerando as perdas recebidas na vespera.
A respeito de como se travara o conflicto e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na occasião se achava ausente da estalagem. Do que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a propriedade e poseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquillo lá fosse roupa de francez!
--Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!
Um côro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistencia. «Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não sabia alguem pela frente! Esbodegavam até á ultima, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma creatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá geito?... Os rôlos era sempre a policia quem os levantava com as suas furias! Não se mettesse ella na vida de quem vivia socegado no seu canto, e não sahiria tanto barulho!...» Como de costume, o espirito de collectividade, que unia aquella gente em circulo de ferro, impedio que transpirasse o menor vislumbre de denuncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida.
Lá no cortiço, de portas a dentro, podiam esfaquear-se a vontade, que nenhum d'elles, e muito menos a victima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o medico, que, logo depois da invasão da policia, desceu da casa do Miranda á estalagem, para soccorrer Jeronymo, não conseguio arrancar d'este o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. «Não fôra nada!... Não fôra de proposito!.. Estavam a brincar e succedêra aquillo!... Ninguem tivera a menor intenção de fazer-lhe móssa!...»
Rita mostrou-se de uma incansavel solicitude para com o ferido. Foi ella quem correu a buscar os remedios, quem servio de ajudante ao medico e quem servio de enfermeiro ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ella, porém, desde que Jeronymo se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, afflicta e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se.
A mulata, essa não chorava; mas a sua physionomia tinha uma profunda expressão de magoa enternecida. Agora toda ella se sentia apegar-se áquelle homem bom e forte; áquelle gigante inoffensivo; áquelle hercules tranquillo, que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa fé, se deixára navalhar pelo facinora. «E tudo por causa d'ella! só por ella!» Seu coração de mulher rendia-se captivo a semelhante dedicação ensanguentada e dolorosa. E elle, o misero, interrompia as contracções do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da bahiana, feliz n'aquella desgraça que lhe permittia gosar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e commovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dôr silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
Rita affagava-o, já sem a menor sombra de escrupulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabellos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E, ali mesmo em presença da mulher d'elle, só faltava beijal-o com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.
Depois da meia noite dada, ella e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antonio, de que era irmão. E, com effeito, no dia immediato, emquanto o vendeiro e seu bando andavam lá ás voltas com a policia, e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do concerto das tinas e giráos, Jeronymo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.
As duas só voltaram de lá á noite, cahindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que n'esse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fóra ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, á falta de melhor vasilha para o serviço. Discutio-se a campanha da vespera sem variar de assumpto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo enthusiasmado os pormenores da lucta; ali, outro repetia, cheio de empafia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens, soffrêra o seu prejuizo ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indignação os objectos partidos ou a parte do corpo escoriada.
Mas ás nove da noite já não havia viva alma no pateo da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto d'ella, porém não conseguio dormir: sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pedio-lhe que lhe désse alguma coisa para suar. Suppunha estar com febre.
A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o vio pegar no somno; e, d'ahi a pouco, ás quatro da madrugada, erguia-se ella, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d'agoa á torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando phosphoros e accendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso.
Lá fóra clareava já, e a vida renascia no cortiço. A lucta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o borborinho. Aquella noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.
Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sahir dos lençóes. Pedio café á mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.
--Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens.
--Ainda sinto o corpo molle ... mas não é nada... Isto passa!...
--Foi de tanto gelo, que tomaste em casa da madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...
--Não! não, por amor de Deus! D'aqui a pouco estou em pé!
Ás oito horas, com effeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatorio de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ella transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez crystallina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pallido a entreabrir-lhe as petalas da boca, sem lhe alegrar os labios, que pareciam resequidos á mingoa de beijos de amor; assim a delicada planta murcha, languece e morre, se carinhosa borboleta não vae sacudir sobre ella as azas prenhes de fecundo e doirado pollen.
O passeio á casa de Leonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões e intimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhal-a junto de si, n'aquelles divans fôfos e traidores, entre todo aquelle luxo extravagante e requintado, proprio para os vicios grandes. Ordenou á criada que não deixasse entrar ninguem, ninguem, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava tambem, mas d'outro modo; na sua parva comprehensão do conforto, aquelles impertinentes espelhos, aquelles moveis casquilhos e aquellas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciencia por melhor futuro.
Ai! assim Deus quizesse ajudal-a!...
Ás duas da tarde, Leonie, por sua propria mão, servio ás visitas um pequeno lunch de _foie-gras_, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e agoa de Seltz; e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ella extremas solicitudes de namorado: levava-lhe a comida á boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentio vontade de descansar o corpo; Leonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fóra, para melhor ficar em liberdade com a pequena.
Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
--Vem cá, minha flôr!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cahir sobre um divan. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que suffocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instinctivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
--Descansemos nós tambem um pouco... propôz, arrastando-a para a alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de affastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que ellas sustentavam um pouco antes, á meza, em presença de Dona Isabel. Leonie fingia prestar-lhe attenção e nada mais fazia do que affagar-lhe a cintura, as coxas e o collo. Depois, como que distrahidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
--Não! Para que?... Não quero despir-me...
--Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
--Estou bem assim. Não quero!
--Que tolice a tua! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar o exemplo!
E, n'um relance, desfez-se da roupa, e proseguio na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, crusou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.
--Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupilla tremula.
E, apezar dos protestos, das supplicas e até das lagrimas da infeliz, arrancou-lhe a ultima vestimenta, e precipitou-se contra ella, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os labios o roseo bico do peito.
--Oh! Oh! Deixa d'isso! Deixa d'isso! reclamava Pombinha, estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
--Que mal faz?... Estamos brincando...
--Não! não! balbuciou a victima, repellindo-a.
--Sim! Sim! insistio Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas columnas e pondo em contacto com o d'ella todo o seu corpo nú.
Pombinha arfava, reluctando; mas o attrito d'aquellas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzella impubere, e o roçar vertiginoso d'aquelles cabellos asperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a polvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxuria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de egoa, bufando e relinchando.
E mettia-lhe a lingoa tersa pela bocca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lobulo dos hombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabello, como se quizesse arrancal-o aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, seccos, curtos, muito agudos, e a final desabou para o lado, exanime, inerte, os membros atirados n'um abandono de bebado, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.
A menina voltára a si e torcêra-se logo em sentido contrario á adversaria, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada e corrida.
A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, procurou animal-a, ameigando-lhe a nuca e as espaduas. Mas Pombinha parecia inconsolavel, e a outra teve de erguer-se a meio e puxal-a como uma criança para o seu collo, onde ella foi occultando o rosto, a soluçar baixinho.
--Não chores assim, meu amor!...
Pombinha continuou a soluçar.
--Vamos! Não quero ver-te d'este modo!... Estás zangada commigo?...
--Não volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzella, desgalgando o leito para vestir-se.
--Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a tua negrinha!... Anda! Não me feches a cara!...
--Deixe-me!
--Vem cá, Pombinha!
--Não vou! Já disse!
E vestia-se com movimentos de raiva. Leonie saltara para junto d'ella e pôz-se a beijar-lhe, á força, os ouvidos e o pescoço, fazendo-se muito humilde, adulando-a, compromettendo-se a ser sua escrava e obedecer-lhe como um cachorrinho, com tanto que aquella tyranna não se fosse assim zangada.
--Faço tudo! tudo! mas não fiques mal commigo! Ah! se soubesses como eu te adoro!...
--Não sei! Largue-me!
--Espera!
--Que amolação! Oh!
--Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus! Pombinha acabava de encasar o ultimo botão do corpinho, e repuxava o pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas Leonie cahíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias.
--Olha!... Ouve!...
--Deixe-me sahir!
--Não! Não has de ir zangada, ou faço aqui um escandalo dos diabos!
--É que mamãe já acordou com certeza!...
--Que acordasse!
Agora a meretriz defendia a porta da alcova.
--Oh! meu Deus! Deixe-me sahir!
--Não deixo, sem fazermos as pazes...
--Que aborrecimento!
--Dá-me um beijo!
--Não dou!
--Pois então não sabes!
--Eu grito!
--Pois grita! Que me importa?.
--Arrede-se d'ahi, por favor!...
--Faz as pazes...
--Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto boa!
--Mas eu faço questão do beijo!
--Pois bem! Está ahi!
E beijou-a.
--Não quero assim! Foi dado de má vontade!...
Pombinha deu-lhe outro.
--Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante!
Em tres tempos, lavou-se ligeiramente no bidé, endireitou o penteado defronte do espelho, n'um movimento rapido de dedos, e empoou-se, e perfumou-se, e enfiou camisa, anagoa e penteador, tudo com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, prompta, correu uma vista d'olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, concertou-lhe melhor os cabellos e, readquerindo o seu ar tranquillo de mulher ajuisada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até á sala de jantar, para tomarem vermouth com gazoza.
O jantar foi ás seis e meia. Correu frio, não tanto per parte de Pombinha, que aliás se mostrava bem incommodada, como porque Dona Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o _foie-gras_. A dona da casa, todavia não se forrou a desvelos e fez por alegral-as rindo e contando anecdotas burlescas. Ao café appareceu Jujú, que a criada levára a passeiar desde logo depois do almoço, e uma affectação de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. Leonie pôz-se a conversar com ella, fallando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel «o seu papatinho novo!»
Mais tarde, no terraço, emquanto fumava um cigarro, tomou a mão de Pombinha e metteu-lhe no dedo um annel com um diamante cercado de perolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi precisa a intervenção da velha para que ella consentisse em aceital-o.
Ás oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preoccupada e triste.
--Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes.
E de ambas a filha respondeu:
--Nada! aborrecimento...
No pouco que dormio essa noite, que foi a do barulho com a policia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com mollezas de febre e dôres no utero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflicto. A noticia do desfloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha Marcianna, produziram-lhe grande abalo nos nervos.
Na manhã immediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dôres uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar na costura, e um livro que ella tentou ler foi por varias vezes repellido.
As onze para o meio dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desasocego entre as apertadas paredes do numero 15, que, máo grado os protestos da velha, sahio a dar uma volta por detraz do cortiço, á sombra dos bambús e das mangueiras.
Uma irresistivel necessidade de estar só, completamente só, uma afflicção de conversar comsigo mesma, a apartavam do seu estreito quarto suffocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da ante-vespera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, presentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado; dentro d'ella balbuciavam desejos, até ahi mudos e adormecidos; e mysterios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpreza e mergulhando-a em fundas concentrações de extasis. Um ineffavel quebranto afrouxava-lhe a energia e destendia-lhe os musculos com uma embriaguez de flôres traiçoeiras.
Não poude resistir: assentou-se debaixo das arvores, um cotovelo em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão.
Na doce tranquillidade d'aquella sombra morna, ouviam-se retinir distantes a picareta dos homens da pedreira e o martello dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores, ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancolico e sentido, como um côro religioso de penitentes.
O calor tirava do capim um cheiro sensual.
A moça fechou as palpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas.
Adormeceu.
Começou logo a sonhar que em de redor ia tudo se fazendo de um côr de rosa, a principio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno d'ella uma floresta vermelha, côr de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente.
E vio-se núa, toda núa, exposta ao céo, sob a tepida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.
Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só mancha reluzente, oscillava como um pendulo phantastico.
Entretanto, notava que, em volta da sua nudez aloirada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sanguineas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre petalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminavel, em que seu corpo se atufava como em ninho de velludo carmezim, bordado de oiro, fofo, macio, trescalante e morno.
E suspirando, espreguiçou-se toda n'um enleio de volupia ascetica.
Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas fórmas de menina.
Ella sorrio para elle, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abrio-se de par em par em duas azas e principiou a fremir, attrahido e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflammassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as azas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da immensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados.
E a donzella, sempre que a borboleta se approximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe accendia, gotta a gotta, todo o seu sangue de moça.
E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direcções, ora fugindo rapida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antennas de braza a pelle delicada e pura da menina.
Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o collo. Mas a borboleta fugia.
Uma sofreguidão lubrica, desensoffrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse n'ella, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse n'um rapido abraço dentro das suas azas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volupia.
--Vem! Vem! supplicava a donzella, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas azas!
E a rosa, que a tinha ao collo, é que parecia fallar e não ella. De cada vez que a borboleta se avisinhava com as suas negaças, a flôr arregaçava-se toda, dilatando as petalas, abrindo o seu pistillo vermelho e avido d'aquelle contacto com a luz.
--Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!
A borboleta não pousou; mas, n'um delirio, convulsa de amor, sacudio as azas com mais impeto e uma nuvem de poeira doirada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzella soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquelle effluvio luminoso e fecundante.
N'isto, Pombinha soltou um ai formidavel e despertou sobresaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentio o grito da puberdade sahir-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente.
A natureza sorrio-se commovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio dia. O sol, victorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de oiro sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.