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E durante dous annos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquella exhuberancia brutal de vida, aterrado defronte d'aquella floresta implacavel que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janellas, e cujas raizes, peiores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno d'ella, rachando o solo e abalando tudo.
Posto que lá na rua do Hospicio os seus negocios não corressem mal, custava-lhe a soffrer a escandalosa fortuna do vendeiro «aquelle typo!
um miseravel, um sujo, que não puzera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!»
Á noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando elle, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido n'uma preguiçosa, junto á mesa da sala de jantar, e ouvia, a contra-gosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem n'uma exhalação forte de animaes cansados. Não podia chegar á janella sem receber no rosto aquelle bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito.
E depois, fechado no quarto de dormir, indifferente e habituado ás torpezas carnaes da mulher, isento já dos primitivos sobresaltos que lhe faziam, a elle, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que lhe obcecava o espirito, ennegrecendo-lhe a alma com um feio resentimento de despeito.
Tinha inveja do outro, d'aquelle outro portuguez que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; d'aquelle outro que, para ser mais rico tres vezes do que elle, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro freguez da casa!
Mas então, elle, Miranda, que se suppunha a ultima expressão da ladinagem e da esperteza; elle, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-collega que o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas redeas um homem fino empolgava facilmente; elle, que se tinha na conta de invencivel matreiro, não passava afinal de um pedaço d'asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal educada e sem escrupulos de virtude! Imaginára-se talhado para grandes conquistas, e não passava de uma victima ridicula e soffredora!... Sim! no fim de contas qual fôra a sua Africa?...
Enriquecêra um pouco, é verdade, mas como? a que preço?
hypothecando-se a um diabo, que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculaveis milhões de desgostos e vergonhas! Arranjára a vida, sim, mas teve de aturar eternamente uma mulher que elle odiava! E do que afinal lhe aproveitára tudo isso? Qual era afinal a sua grande existencia? Do inferno da casa para o purgatorio do trabalho e vice-versa! Invejavel sorte, não havia duvida!
Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer gozava o prazer de ser pae. Se ella, em vez de nascer de Estella, fora uma engeitadinha recolhida por elle, é natural que a amasse, e então a vida lhe correria de outro modo; mas, n'aquellas condições, a pobre criança nada mais representava que o documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia até á innocentezinha o odio que sustentava contra a esposa.
Uma espiga a tal da sua vida!
--Fui uma besta! resumio elle, em voz alta, apeiando-se da cama, onde se havia recolhido inutilmente.
E pôz-se a passeiar no quarto, sem vontade de dormir, sentindo que a febre d'aquella inveja lhe estorricava os miolos.
Feliz e esperto era o João Romão! esse, sim, senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu!
esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe sahisse uma outra Estella, era só mandal-a p'ra o diabo com um pontapé! Podia fazel-o! Para esse é que era o Brasil!
--Fui uma besta! repisava elle, sem conseguir conformar-se com a felicidade do vendeiro. Uma grandissima besta! No fim de contas que diabo possuo eu?...
Uma casa de negocio, da qual não posso separar-me sem comprometter o que lá está enterrado! um capital mettido n'uma rêde de transacções que não se liquidam nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor d'esta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu credito é o dote, que me trouxe aquella sem vergonha, e que a ella me prende como a peste da casa commercial me prende a esta Costa d'Africa?...
Foi da suppuração fetida d'estas idéas que se formou no coração vasio do Miranda um novo ideal--o titulo. Faltando-lhe temperamento proprio para os vicios fortes que enchem a vida de um homem; sem familia a quem amar e sem imaginação para poder gozar com as prostitutas, o naufrago agarrou-se áquella taboa, como um agonisante, consciente da morte, que se apega á esperança de uma vida futura. A vaidade de Estella, que a principio lhe tirava dos labios incredulos sorrisos de mofa, agora lhe comprazia á farta. Procurou capacitar-se de que ella com effeito herdara sangue nobre, e que elle, por sua vez, se não o tinha herdado, trouxera-o por natureza propria, o que devia valer mais ainda; e desde então principiou a sonhar com um baronato, fazendo d'isso o objecto querido da sua existencia, muito satisfeito no intimo por ter afinal descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restituil-o á mulher, nem ter de deixal-o a pessoa alguma.
Semelhante preoccupação modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se escravo das conveniencias, affectando escrupulos sociaes, empertigando-se quanto podia e disfarçando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com protecção, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito serio.
Dados os primeiros passos para a compra do titulo, abrio a casa e deu festas. A mulher, posto que lhe apontassem já os cabellos brancos, rejubilou com isso.
Zulmira tinha então doze para treze annos e era o typo acabado da fluminense; pallida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das palpebras e dos labios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom humido das flores nocturnas, uma brancura fria de magnolia; cabellos castanho claro, mãos quasi transparentes, unhas molles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cutis do rosto, pés pequenos, quadril estreito, mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.
Por essa época, justamente, chegava de Minas, recommendado ao pae d'ella, o filho de um fazendeiro importantissimo que dava bellos lucros á casa commercial do Miranda e que era talvez o melhor freguez que este possuia no interior.
O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze annos e vinha terminar na côrte alguns preparatorios que lhe faltavam para entrar na academia de medicina. Miranda hospedou-o no seu sobrado da rua do Hospicio, mas o estudante queixou-se, no fim de alguns dias, de que ahi ficava mal accommodado, e o negociante, o quem não convinha desagradar-lhe, carregou com elle para a sua residencia particular de Botafogo.
Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e tão pouco extravagante e gastador, que não despendia um vintem fóra das necessidades de primeira urgencia. De resto, a não ser de manhã para as aulas, que ia sempre com o Miranda, não arredava pé de casa senão em companhia da familia d'este. Dona Estella, ao cabo de pouco tempo, mostrou por elle estima quasi maternal e encarregou-se de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo negociante, visto que o Henriquinho tinha ordem franca do pae.
Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer coisa, reclamava-a de Dona Estella, que por sua vez encarregava ao marido de compral-a, sendo o objecto lançado na conta do fazendeiro com uma commissão de usurario. Sua hospedagem custava duzentos e cincoenta mil réis por mez, do que elle todavia não tinha conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava, e os criados da casa o respeitavam como a um filho do proprio senhor.
Á noite, ás vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estella sahia com elle, a filha e um moleque, o Valentim, a darem uma volta até á praia, e, em tendo convite para qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia.
A criadagem da familia do Miranda compunha-se de Izaura, mulata ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo a vintemzinho que pilhava em comprar capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito ligeira e viva, lisa e secca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta technologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os caixeiros ou os freguezes da taberna, só para mexer com ella, lhe davam atracações: «Oia, que eu me quexo ao juiz de orfe!» e finalmente o tal Valentim, filho de uma escrava que foi de Dona Estella e a quem esta havia alforriado.
A mulher do Miranda tinha por este moleque uma affeição sem limites: dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o comsigo a passeio, trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciumes á filha, de tão solicita que se mostrava com elle. Pois se a caprichosa senhora ralhava com Zulmira por causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dous, um contra o outro, ella nunca dava razão á filha!
Pois se o que havia de melhor na casa era para o Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e o Miranda, apezar das supplicas e dos protestos da esposa, mandou-o para um hospital, Dona Estella chorava todos os dias e durante a ausencia d'elle não tocou piano, nem cantou, nem mostrou os dentes a ninguem? E o pobre Miranda, se não queria soffrer impertinencias da mulher e ouvir semsaborias defronte dos criados, tinha de dar ao moleque toda a consideração e fazer-lhe humildemente todas as vontades.
Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro hospede alem do Henrique, o velho Botelho. Este porém na qualidade de parasita.
Era um pobre diabo caminhando para os setenta annos; antipathico, cabello branco, curto e duro como escova, barba e bigode do mesmo theor; muito macilento, com uns oculos redondos que lhe augmentavam o tamanho da pupilla e davam-lhe á cara uma expressão de abutre, perfeitamente de accordo com o seu nariz adunco e com a sua bocca sem labios; viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio. Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de Braga enterrado nas orelhas. Fôra em seu tempo empregado do commercio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na Africa, negociando negros por sua conta. Atirou-se muito ás especulações; durante a guerra do Paraguay ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desillusões, cheio de hemorrhoidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava á sombra do Miranda, com quem por muitos annos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais tarde por necessidade.
Devorava-o, noite e dia, uma implacavel amargura, uma surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não lhe ter sido possivel empolgar o mundo com as suas mãos hoje inuteis e tremulas. E, como o seu actual estado de miseria não lhe permittia abrir contra ninguem o bico, desabafava vituperando as idéas da época.
Assim, eram ás vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assumptos palpitantes, vinha á discussão o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco.
Então o Botelho ficava possesso e vomitava phrases terriveis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquella valvula para desafogar o velho odio accumulado dentro d'elle.
--Bandidos! berrava apoplectico. Cafila de salteadores!
E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em settas envenenadas, procurando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a belleza, o talento, a mocidade, a força, a saude, e principalmente a fortuna, eis o que elle não perdoava a ninguem, amaldiçoando todo aquelle que conseguia o que elle não obtivéra; que gosava o que elle não desfructára; que sabia o que elle não aprendêra. E, para individualisar o objecto do seu odio, voltava-se contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os portuguezes, e que, no emtanto, o deixára, a elle, na penuria.
Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava ás oito da manhã, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espirito de vinho; depois ia ler os jornaes para a sala de jantar, a espera do almoço; almoçava e sahia, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da rua do Ouvidor, onde costumava ficar assentado até ás horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam lá fóra, de fronte d'elle. Tinha a pretenção de conhecer todo o Rio de Janeiro e os podres de cada um em particular. Ás vezes, poucas, Dona Estella encarregava-o de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor que ninguem. Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a farda, adorava tudo que dissesse respeito ao militarismo, posto que tivéra sempre invencivel medo ás armas de qualquer especie, mórmente ás de fogo. Não podia ouvir disparar perto de si uma espingarda, enthusiasmava-se porém com tudo que cheirasse a guerra; a presença de um official em grande uniforme tirava-lhe lagrimas de commoção; conhecia na ponta da lingua o que se referia á vida de quartel; distinguia ao primeiro lance d'olhos o posto e o corpo a que pertencia qualquer soldado, e, apezar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava por si, fazia parte dos que accompanhavam a tropa. Então, não tornava para casa emquanto os militares não se recolhessem. Quasi sempre voltava d'essa loucura ás seis da tarde, moido a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de marchar horas e horas ao som da musica de pancadaria. E o mais interessante é que elle, ao vir-lhe a reacção, revoltava-se furioso contra o maldito commandante que o obrigára áquella estopada, levando o batalhão por uma infinidade de ruas e fazendo de proposito o caminho mais longo.
--Só parece, lamentava-se elle, que a intenção d'aquelle malvado era dar-me cabo da pelle! Ora vejam! Tres horas de marche-marche por uma soalheira de todos os diabos!
Uma das birras mais comicas do Botelho era o seu odio pelo Valentim. O moleque causava-lhe febre com as suas petulancias de mimalho, e, velhaco, percebendo quanto ellas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na protecção de Dona Estella. O parasita de muito que o teria estrangulado, se não fôra a necessidade de agradar a dona da casa.
Botelho conhecia as fallas de Estella como as palmas da propria mão. O Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes lh'as confiára em occasiões desesperadas de desabafo, declarando francamente o quanto no intimo a desprezava e a razão porque não a punha na rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão; entendia tambem que os serios interesses commerciaes estavam acima de tudo.
--Uma mulher n'aquellas condições, dizia elle convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza!
Agora, você o que devia era nunca chegar-se para ella...
--Ora! explicava o marido. Eu me sirvo d'ella como quem se serve de uma escarradeira!
O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abraço de admiração. Mas por outro lado, quando ouvia Estella fallar do marido, com infinito desdem e até com asco, ainda mais resplandecia de contente.
--Você quer saber? affirmava ella, eu bem percebo quanto aquelle traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos viver sem o esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me cahio em sorte, quer goste d'elle quer não goste! juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chege ás vezes para mim, é porque entendo que paga mais á pena ceder do que puxar discussão com uma besta d'aquella ordem!
O Botelho, com a sua encanecida experiencia do mundo, nunca transmittia a nenhum dos dous o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa occasião, recolhendo-se á casa incommodado, em hora que não era do seu costume, ouvio, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam vir de um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguem.
Encaminhou-se para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobrio Estella entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir nem mugir, e, só quando os dous se separaram, foi que elle se mostrou.
A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se côr de cera; mas o Botelho procurou tranquillisal-os, dizendo em voz amiga e mysteriosa:
--Isso é uma imprudencia o que vocês estão fazendo!... Estas coisas não é d'este modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa... Pois n'uma casa, em que ha tantos quartos, é lá preciso vir metterem-se n'este canto do quintal?...
--Nós não estávamos fazendo nada! disse Estella, recuperando o sangue frio.
--Ah! tornou o velho, apparentando summo respeito: então desculpe, pensei que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que d'esta vida a gente só leva o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!... A senhora está moça, está na força dos annos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!... Até certa idade todos temos dentro um bichinho carpinteiro, que é preciso matar, antes que elle nos mate! Não lhes doam as mãos!... apenas acho que, para outra vez, devem ter um pouquito mais de cuidado e...
--Está bom! basta! ordenou Estella.
--Perdão! eu, se digo isto, é para deixal-os bem tranquillos a meu respeito. Não quero, nem por sombra, que se persuadam de que...
O Henrique atalhou, com a voz ainda commovida:
--Mas, acredite, seu Botelho, que...
O velho interrompeo-o tambem por sua vez, passando-lhe a mão no hombro e affastando-o comsigo:
--Não tenha receio, que não o comprometterei, menino!
E, como já estivessem distantes de Estella, segredou-lhe em tom protector: Não torne a fazer isto assim, que você se estraga... Olhe como lhe tremem as pernas!
Dona Estella acompanhou-os a distancia, vagarosamente, affectando preoccupação em compor um ramalhete, cujas flores ella ia colhendo com muita graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos pés para alcançar os heliotropos e os manacás.
Henrique seguio o Botelho até ao quarto d'este, conversando sem mudar de assumpto.
--Você então não falia n'isto, hein? Jura? perguntou-lhe.
O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhára em flagrante e que ficára bom tempo a espreita.
--Fallar o que, seu tolo?... Pois então quem pensa você que eu sou?...
Só abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou convencido que não dará... Quer saber? eu até sympathiso muito com você, Henrique! Acho que você é um excellente menino, uma flôr! E digo-lhe mais: hei de proteger os seus negocios com Dona Estella...
Fallando assim, tinha-lhe tomado as mãos e affagava-as.
--Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se metta com donzellas, entende?... São o diabo! Por dá cá aquella palha fica um homem em apuros! agora quanto ás outras, papo com ellas! Não mande nenhuma ao vigario, nem lhe dôa a cabeça, porque, no fim de contas, nas circumstancias de Dona Estella, é até um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher já passou dos trinta e pilha a geito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse oiro em pó!
sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de que não é só a ella que você faz o obsequio, mas tambem ao marido: quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ella ficará de genio, e por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! que tem já bastante com que se aborrecer lá por baixo, com os seus negocios, e precisa de um pouco de descanço quando volta do serviço e mette-se em casa! Escove-a, escove-a! que a porá macia que nem velludo! O que é preciso é muito juizinho, percebe? Não faça outra criançada como a de hoje e continue para diante, não só com ella, mas com todas as que lhe cahirem debaixo da aza! Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das molestias; nem tão pouco donzellas! Não se metta com a Zulmira! E creia que lhe fallo assim, porque sou seu amigo, porque o acho sympathico, porque o acho bonito!
E acarinhou-o tão vivamente d'esta vez, que o estudante, fugindo-lhe das mãos, affastou-se com um gesto de repugnancia e desprezo, emquanto o velho lhe dizia em voz comprimida:
--Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!...