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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

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Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e só trocava com o amigo um ou outro monosyllabo inevitavel no serviço da casa. Entre os dois havia agora d'esses olhares de desconfiança, que são abysmos de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia n'um sobresalto constante; cheia de apprehensões, com medos de ser assassinada; só comia do que ella propria preparava para si e não dormia senão depois de fechar-se á chave. Á noite o mais ligeiro rumor a punha de pé; olhos arregalados, respiração convulsa, bocca aberta e prompta para pedir soccorro ao primeiro assalto.

No emtanto, em redor do seu desassocego e do seu máo estar, tudo ali prosperava forte em grosso, aos contos de reis, com a mesma febre com que d'antes, em torno da sua actividade de escrava trabalhadeira, os vintens choviam dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armazem carroças e carroças com fardos e caixas, trazidas da alfandega, em que se liam as iniciaes de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre, e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de saccos de pimenta. E o armazem, com as suas portas escancaradas sobre o publico, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sahir de novo, aos poucos com um lucro lindissimo, que no fim do anno causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno commercio sortia-se lá para vender a retalho. A sua casa tinha agora, um pessoal complicado de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda livros, do comprador, do despachante e do caixa; do seu escriptorio sahiam correspondencias em varias linguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contractos commerciaes, transacções em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de emprezas e privilegios obtidos do governo; e realisavam-se vendas e compras de papeis; e concluiam-se emprestimos de juros fortes sobre hypothecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores fallidos; corredores da praça, zangões, cambistas; empregados publicos, que passavam procuração contra o seu ordenado; emprezarios de theatro e fundadores de jornaes, em apuros de dinheiro; viuvas, que negociavam o seu monte pio; estudantes, que iam receber a sua mezada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miuda do fôro, sempre inquieta, farisqueira, a metter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da bocca.

E, como a casa commercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admittia assim qualquer pé rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recommendação especial. Os preços dos commodos subiam, e muitos dos antigos hospedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o Cabeça de Gato e sendo substituidos por gente mais limpa. Decrescia tambem o numero das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram occupadas agora por pequenas familias de operarios, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratisava-se. Havia um alfaiate logo á entrada, homem sério, de suissas brancas, que cosia na sua machina entre officiaes, ajudado pela mulher, uma lisboeta côr de nabo gorda, velhusca, com um principio de bigode e cavagnac, mas extremamente circumspecta; em seguida um relojoeiro calvo, de oculos, que parecia mumificado atraz da vidraça em que elle, sem mudar de posição, trabalhava, da manhã até á tarde; depois um pintor de tectos e taboletas, que levou a phantasia artistica ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em volta da sua porta, onde se viam passaros de varias côres e feitios, muitos compromettedores para o credito profissional do autor; mais adiante installára-se um cigarreiro, que occupava nada menos de tres numeros na estalagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais tres operarias que preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco. Florinda, mettida agora com um despachante da estrada de ferro, voltára para o São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito pé de limpeza e arranjo. Estava ainda de luto pela mãe, a pobre velha Marcianna, que ultimamente havia morrido no hospicio dos doidos. Aos domingos o despachante costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os feitios da Rita Bahiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de dansa e cantarola, mas tudo de portas a dentro, que ali já se não admittiam sambas e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrára um pouco de genio depois da morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de moços do commercio, entre os quaes havia um pretendente á mão de Nênêm, que se mirrava já de tanto esperar a secco por marido. Alexandre fôra promovido a sargento e empertigava-se ainda mais dentro da sua farda nova, de botões que cegavam; a mulher, sempre indifferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolôr na sua molleza humida e tinha um ar triste de cogumelo; era vista com frequencia a dar de mammar a um pequerrucho de poucos mezes, empinando muito a barriga para a frente, pelo habito de andar sempre gravida. A sua comadre Léonie continuava a visital-a de vez em quando, aturdindo a actual pacatez d'aquelle cenobio com as suas roupas gritadoras. Uma occasião em que lá fóra, um sabado á tarde, produzira grande alvoroço entre os decanos da estalagem, porque comsigo levava Pombinha, que se atirára ao mundo e vivia agora em companhia d'ella.

Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois annos de casada já não podia supportar o marido; todavia, a principio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta de espirito, os gostos razos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouvio-lhe, resignada, as confidencias banaes nas horas intimas do matrimonio; attendeu-o nas suas exigencias mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda a solicitude, quando elle esteve a decidir com uma pneumonite aguda; procurou afinar em tudo com o pobre rapaz: não lhe fallou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a esthetica, a originalidade; escondeu a sua mal educada e natural intuição pelo que é grande, ou bello, ou arrojado, e fingio ligar interesse ao que elle fazia, ao que elle dizia, ao que elle ganhava, ao que elle pensava e ao que elle conseguia com paciencia na sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilibrio e a misera escorregou, cahindo nos braços de um bohemio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira. O marido não deu logo pela coisa, mas começou a estranhar a mulher, a desconfiar d'ella e a espreital-a, até que um bello dia, seguindo-a na rua sem ser visto, o desgraçado teve a dura certeza de que era trahido pela esposa, não mais com o poeta libertino, mas com um artista dramatico, que muitas vezes lhe arrancára, a elle, sinceras lagrimas de commoção, declamando no theatro em honra da moral triumphante e estigmatisando o adulterio com a rethorica mais vehemente e indignada.

Ah não poude illudir-se! ... e, a despeito do muito que amava á ingrata, rompeu com ella e entregou-a á mãe, fugindo em seguida para São Paulo. Dona Isabel, que sabia já, não d'esta ultima falcatrua da filha, mas das outras primeiras, que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em lagrimas, aconselhou-a a que se arrependesse e mudasse de conducta; em seguida escreveu ao genro, intercedendo por Pombinha, jurando que agora respondia por ella e pedindo-lhe que esquecesse o passado e voltasse para junto de sua mulher. O rapaz não respondeu á carta, e dahi a mezes, Pombinha desappareceu da casa da mãe. Dona Isabel quasi morre de desgosto. Para onde teria ido a filha?... «Onde está? onde não está! Procura d'aqui! procura d'ahi!» Só a descobrio semanas depois; estava morando n'um hotel com Léonie. A serpente vencia afinal. Pombinha foi, pelo seu proprio pé, attrahida, metter-se-lhe na bocca. A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgosto não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu unico amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição. Depois, como n'este mundo uma creatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não apparecia nunca na sala quando havia gente de fóra; escondia-se; e, se algum dos frequentadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o que ella não podia tolerar sem apertos de coração, era ver a pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e pôr-se a dizer tolices e a estender-se ali mesmo no collo dos homens. Chorava sempre que a via entrar ébria, fóra d'horas, depois de uma orgia; e, de desgosto em desgosto, foi se sentindo enfraquecer e enfermar, até cahir de cama e mudar-se para uma casa de saude, onde afinal morreu.

Agora, as duas cocotes, amigas, inseparaveis, terriveis n'aquella inquebrantavel solidariedade, que fazia d'ellas uma só cobra de duas cabeças dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; á tarde, antes do jantar, atravessavam o Catette em carro descoberto, com a Jujú ao lado; á noite, no theatro, em um camarote de bocca, chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela politica e avidos de sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hoteis os sensuaes e gordos fazendeiros de café, que vinham á côrte esbodegar o farto producto das safras do anno, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima d'ellas duas passára uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com tres mezes de cama franca, fizera-se tão perita no officio como a outra; a sua infeliz intelligencia, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vicios de largo folego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos d'aquella vida; seus labios não tocavam em ninguem sem tirar sangue; sabia beber, gotta a gotta, pela bocca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a victima pudesse dar de si. Entretanto, lá na Avenida São Romão, era, como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fieis companheiros de cortiço; quando lá iam, acompanhadas por Jujú, a porta da Augusta ficava, como d'antes, cheia de gente, que as abençoava com o seu estupido sorriso de pobreza hereditaria e humilde. Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jeronymo, a cuja filha, sua protegida predilecta, votava agora, por sua vez, uma sympathia toda especial, identica á que n'outro tempo inspirára ella propria á Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta n'aquella pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.

E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade não faltava de todo o pão, porque já ninguem confiava roupa á desgraçada, e nem ella podia dar conta de qualquer trabalho.

Pobre mulher! chegára ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava dó, causava repugnancia e nojo. Apagaram-se-lhe os ultimos vestigios do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, d'essa embriaguez sombria e morbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era mais immundo e o peior de toda a estalagem; homens malvados abusavam d'ella, muitos de uma vez, aproveitando-se da quasi completa inconsciencia da infeliz. Agora, o menor trago de aguardente a punha logo prompta; acordava todas as manhãs apatetada, muito triste, sem animo para viver esse dia, mas era só correr á garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de bocca que já se não governa. Um empregado de João Romão, que ultimamente fazia as vezes d'elle na estalagem, por tres vezes a enxotou, e ella, de todas, pedio que lhe dessem alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao ultimo em que Pombinha appareceu por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na rua.

E a misera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no Cabeça de Gato que, á proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjecto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro regeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalteravel, para sempre, o verdadeiro typo da estalagem fluminense, a legitima, a legendaria; aquella em que ha um samba e um rôlo por noite; aquella em que se matam homens sem a policia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuaes em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraiso de vermes; brejo de lodo quente o fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.

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