Aa

Dois CoraçÔes

por AnĂŽnimo

Capitulo 2

O que te mais atrai em um homem nĂŁo Ă© a beleza, mas sim seu charme e inteligĂȘncia. E aquele cara, sem dĂșvidas, sabia como prender a atenção. Sua voz grave e seu pensamento organizado e meticuloso faziam dar calafrios em sua barriga e sua mĂŁo suar de nervosismo. Sua imponĂȘncia e seu jeito de quem dominava o assunto atraĂ­am magneticamente a atenção de todos, e faziam suspirar algumas de suas colegas ao lado. Agora vocĂȘ percebe o motivo de elas terem saĂ­do correndo para se sentarem Ă  frente do auditĂłrio.

Mas, mais importante que isso, existe o fato de que agora vocĂȘ percebe que fez besteira, e uma besteira das grandes ao ficar xingando o coordenador do seu escritĂłrio, e logo no seu primeiro dia!

EntĂŁo, assim que vocĂȘ percebeu que fez merda, vocĂȘ se afundou na cadeira do auditĂłrio para nĂŁo ser reconhecida e teve a ideia: basta vocĂȘ ficar imperceptĂ­vel a ele e tudo vai dar certo, Ă© sĂł vocĂȘ nĂŁo chamar a atenção. Deus, me dĂĄ uma capa da invisibilidade do Harry Potter? Nunca te pedi nada.

SĂł aĂ­ que vocĂȘ se lembra do Ășltimo ĂĄudio que mandou para ele e tenta imediatamente apagĂĄ-lo, aquele no qual vocĂȘ fala assim: "Espere para ver entĂŁo se eu nĂŁo vou aĂ­ no seu serviço fazer barraco". Um audio desses nĂŁo Ă© te ajuda a passar imperceptĂ­vel.

Poxa, por que vocĂȘ Ă© assim? NĂŁo Ă© legal ficar ameaçando os outros. Pena que, antes mesmo de vocĂȘ desbloquear aquela porcaria de celular, sua colega lhe cutuca:

— É vocĂȘ, Ju!

—Hã?

—Fica de pĂ©!

VocĂȘ entĂŁo olha em volta e vĂȘ mais duas pessoas, completamente sem graça, de pĂ© na plateia, esboçando um sorriso tĂ­mido. Devem ser os outros advogados novos, o que inclui vocĂȘ.

Porra de confraternização idiota! nenhum plano seu nunca deu errado tão råpido.

EntĂŁo, a contragosto, vocĂȘ tambĂ©m se levanta. LĂĄ na frente, a sua chefe, ao microfone, fala com animação de quem trabalha com festa infantil:

— Vamos lá, não sejam tímidos, venham aqui para frente.

VocĂȘ olha lĂĄ na frente do palco e estĂŁo os trĂȘs coordenadores de departamento, os dois homens, sentados, e sua chefe levantada, se dirigindo ao fim da escada que dĂĄ acesso ao palco, esperando vocĂȘs.

VocĂȘ entĂŁo pede licença aos demais que estavam sentados na mesma fileira de cadeiras e se dirige ao corredor central, chegando ao mesmo tempo que um outro advogado, que vinha pelo mesmo corredor. Ele a deixa passar na frente dele, por cavalheirismo. Nessas horas, cavalheirismo Ă© um saco.

ConclusĂŁo, vocĂȘ, como primeira da fila, vai Ă  frente dos outros advogados novos e começa a subir a escada que dĂĄ acesso ao palco, com sua chefe lhe olhando lĂĄ de cima, com olhar de aprovação pela sua coragem.

Quando vocĂȘ começa a subir, vĂȘ que o Dr. Tiago, o ex-babaca de manhĂŁ, estĂĄ mexendo em seu celular. Tomara que nĂŁo seja na sua conversa. SĂł que, aĂ­, ele coloca o celular em seu ouvido e faz uma cara de contrariedade na hora ao ouvir. NĂŁo, Deus, por que fazes isso comigo? É muita humilhação para uma pessoa sĂł.

EntĂŁo, jĂĄ no palco, sua chefe te direciona para cumprimentar o primeiro advogado da mesa, que vocĂȘ ainda nĂŁo conhece. Sua chefe fala:

—Dr. Hugo Brito, esta Ă© a nova advogada do departamento tributĂĄrio, Dra. Juliana.

Ao dizer isso, o Dr. Tiago, que olhava distraidamente o celular, imediatamente te olha com olhos de preocupação e instintivamente afasta para trĂĄs sua cadeira. Merda, com certeza ele te reconheceu e, pior, estĂĄ achando que vocĂȘ vai esculachĂĄ-lo na frente de todo mundo.

Sua chefe, não percebendo ou não entendendo a reação dele, chega ao seu lado e diz:

— Dr. Thiago, essa Ă© a nova advogada do departamento tributĂĄrio, Dra. Juliana Miyatomi. Dra. Juliana, este Ă© o Dr. Tiago AlcĂąntara, coordenador do departamento cĂ­vel e sĂłcio do escritĂłrio.

Aaa. Agora, pensando bem, vocĂȘ lembra que o nome do escritĂłrio Ă© PLCA advogados, que Ă© o sobrenome dos advogados fundadores. Ele Ă© o "A", de AlcĂąntara. Faz sentido, mas vocĂȘ poderia ter pensado nisso antes de xingĂĄ-lo, e nĂŁo depois. AlĂ©m disso, vocĂȘ deu muita sorte de que sua chefe te apresentou com o sobrenome do seu pai, que vocĂȘ quase nĂŁo usa no dia a dia.

A expressĂŁo dele, contudo, em um segundo voltou a ficar normal e ele disse, em um tom formal e solene, que eu jĂĄ estava se acostumando.

— Prazer em conhecĂȘ-la, Dra. Juliana, seja bem-vinda ao nosso escritĂłrio.

O fato de ele falar "prazer em conhecĂȘ-la" te deixou mais tranquila. SerĂĄ que ele sĂł se assustou enquanto estava mexendo no celular mas ele, na verdade, nĂŁo te reconheceu? Bom, vocĂȘ estĂĄ com roupa bem diferente da roupa de manhĂŁ, e foi apresentada com outro sobrenome tambĂ©m. Seria um sonho se ele nĂŁo te associasse Ă  garota idiota que o ficou xingando pela manhĂŁ toda.

É isso, Ă© sĂł fingir que vocĂȘ nĂŁo Ă© a garota boba de hoje de manhĂŁ. Bicicleta? Nem sei andar.

AtĂ© que vocĂȘ, curiosa, lĂĄ em cima do palco ainda, discretamente consegue desbloquear o celular e vĂȘ um tick azul no seu Ășltimo ĂĄudio. Merda, ele ouviu.

Depois daquela apresentação formal, todos os advogados se dirigem a um grande salĂŁo lateral, onde estĂŁo dispostas mesas de salgados e bebidas. VocĂȘ aproveita a oportunidade para conversar um pouco mais com as suas novas colegas.

AtĂ© que elas sĂŁo legais, parece que sofrem os mesmos perrengues que vocĂȘ, a nĂŁo ser a outra colega, a Pietra, que claramente parece bem nascida e distante do que vocĂȘs comentam entre si.

EstĂŁo vocĂȘs quatro conversando quando Aline comenta baixinho no seu ouvido:

— NĂŁo olhe agora, mas o Dr. Tiago estĂĄ olhando para vocĂȘ.

Seu sangue congela no mesmo minuto. Isso pode ser uma coisa boa ou ruim, nĂŁo dĂĄ para saber.

VocĂȘ entĂŁo, como quem nĂŁo quer nada, olha para ele, e seus olhares se cruzam. Se antes era seu sangue que estava congelado, agora seu corpo inteiro parece paralisado. Ele mantem seu olhar em vocĂȘ e te dĂĄ um sorrisinho. VocĂȘ retribui com outro sorrisinho e pensa: "Que merda estĂĄ acontecendo aqui? Aquele cara estĂĄ flertando contigo? Quando foi que sua vida virou plot de romance hot? Aqueles que vocĂȘ tem em seu celular com nomes bem sugestivos como 'Amarrada na sala de estar do milionĂĄrio' ou 'Um presentinho para o Mafioso Italiano' e um bebe na capa. AliĂĄs, por que sempre tem um homem de rosto serio e um bebe nas capas desses livros nĂ©? Se bem que, neste caso, bastaria a foto do Dr. Tiago na capa. E um bebe, teria que arrumar a foto de um bebĂȘ. SerĂĄ que o Francisco vai ganhar um irmĂŁozinho?"

Seus pensamentos sĂŁo interrompidos pela doutora Pietra que, com a cara fechada de sempre te pergunta:

— Para onde vocĂȘ estĂĄ olhando?

— Para lugar nenhum.

Ela solta um suspiro e sai do grupinho, se dirigindo para outro grupo.

Seria Ăłtimo continuar na confraternização, mas vocĂȘ olha o relĂłgio e vĂȘ que estĂĄ chegando a hora de pegar o Chico na escolinha. VocĂȘ quer deixar essa atividade para sua mĂŁe apenas se nĂŁo tiver alternativa mesmo, vocĂȘ nĂŁo quer terceirizar suas responsabilidades. EntĂŁo vocĂȘ pergunta para Aline:

— Já está acabando?

— Já sim, fica tranquila, aqui eles não são de prorrogar o expediente sem motivo, está faltando apenas cortar o bolo.

— Ainda tem bolo?

— É tradição. Como tem trĂȘs advogados novos, um de cada ĂĄrea, os trĂȘs coordenadores oferecem o primeiro pedaço para seus novos advogados, depois todos se servem e estamos liberados.

De fato, pouco tempo depois da sua conversa, vocĂȘ vĂȘ um grande bolo sendo trazido em uma mesa com rodinhas por dois assistentes do escritĂłrio. Automaticamente, todos os demais advogados fazem uma meia-lua em volta do bolo e os trĂȘs coordenadores se dirigem atrĂĄs da mesa, ficando de frente para todos. Eles cortam, sem qualquer destreza, um Ășnico pedaço grande do meio e o dividem em trĂȘs. Cada um deles pega um dos pedaços e começam a brincar sobre para quem dariam o primeiro pedaço. Os demais advogados continuam a brincadeira, falando "para mim", "para mim". O Dr. Tiago Ă© o primeiro a oferecer o pedaço:

— O meu primeiro pedaço vai para a doutora Juliana.

Sua colega disse que o primeiro pedaço sempre era para o advogado que entrou no departamento do coordenador, mas aquele menino claramente não se chama Juliana. Sua amiga te cutuca:

— É vocĂȘ.

— Eu?

O doutor Tiago, percebendo seu embaraço, complementa:

— É, vocĂȘ.

VocĂȘ percebe o silĂȘncio geral no auditĂłrio. De repente, seus olhos se cruzam com os da doutora Pietra, que estĂĄ do outro lado da sala, fixando um olhar penetrante sobre vocĂȘ.

Totalmente envergonhada, vocĂȘ se dirige ao Dr. Tiago. Ele te dĂĄ o pedaço de bolo e um abraço. A barba por fazer roça o seu pescoço, bem embaixo do seu ouvido. Ao fazer aquilo, os pelinhos da sua nuca, um depois do outro, vĂŁo se arrepiando em sucessĂŁo, do pescoço atĂ© a base das suas costas. Ao mesmo tempo, vocĂȘ sente um calor na regiĂŁo abdominal, quer dizer, um pouco abaixo da regiĂŁo abidominal, e, no meio do abraço, ele fala baixinho aos seus ouvidos:

— Quando puder, vá ao meu escritório.

VocĂȘ sentiu suas pernas tremerem. Que tara foi essa de te deixar com tesĂŁo na frente de todo mundo?

Mas pera, serĂĄ que ele quer que vocĂȘ vĂĄ assim que acabar a confraternização, quando todo mundo jĂĄ tiver ido embora? VocĂȘ sente o calor da barriga subir para seu rosto. VocĂȘ deve estar toda vermelha, com todos te olhando, entĂŁo vocĂȘ, com o pedaço de bolo na mĂŁo, volta para o seu grupinho.

Sua colega Aline nĂŁo espera nem vocĂȘ chegar direito para te perguntar:

— O que está acontecendo, amiga? Por que ele te deu o pedaço de bolo?

— Não sei.

— O que ele falou no seu ouvido?

— Ele só falou bem-vinda.

A Aline fica lhe encarando, tentando entender se o que vocĂȘ estĂĄ falando Ă© verdade ou nĂŁo. Depois, ela ainda comenta:

— Ele te abraçou forte, nĂ©?

— Não, ele deve abraçar todo mundo assim.

— Tenho certeza de que não.

O que serĂĄ que aquele cara quer com vocĂȘ? Sozinhos vocĂȘ e ele em sua sala, com o escritĂłrio vazio...

Tentando continuar o clima da confraternização, sua chefe oferece o pedaço do bolo dela ao advogado novo do departamento do Dr. Tiago, que agora vocĂȘ sabe que se chama Pedro.

VocĂȘ se pega pensando. Ele disse para vocĂȘ ir quando puder. SĂł que, agora, claramente vocĂȘ nĂŁo pode, vocĂȘ tem que pegar o Chico. VocĂȘ jamais trocaria ele por qualquer outro homem. Antes de tudo, vocĂȘ Ă© a mĂŁe e tem suas responsabilidades.

EntĂŁo, assim que a confraternização acaba, vocĂȘ pega sua bicicleta e em 30 minutos estĂĄ na sua casa. VocĂȘ entra correndo e pega a chave do carro da sua mĂŁe para ir buscar o Chico na escola, nĂŁo sem antes sua mĂŁe falar:

— Já chegou, filha?

— Já estou pegando o carro para buscar o Chico na escolinha.

—Eu poderia pegar.

—Outra hora, mĂŁe, quando eu nĂŁo puder, vocĂȘ pega ele.

E em mais 10 minutos vocĂȘ estĂĄ na escolinha. O porteiro reconhece o carro e avisa da sua chegada. Passam-se nĂŁo mais do que 5 minutos e vocĂȘ vĂȘ aquela carinha buchechudinha de olhinhos puxadinhos, vestido com o uniforme azul royal da escola e carregando uma mochila quase maior que ele.

Como pode aquela coisa tĂŁo pequenininha ser o que te motiva a trabalhar todos os dias e a dar sempre seu melhor, esperando, sem qualquer garantia, que um dia as coisas vĂŁo melhorar?

Mas, quando ele chega no carro e diz: "Oi, mamĂŁe, estĂĄ bonita hoje", vocĂȘ sabe que tudo valeu a pena.

Dia seguinte, sexta-feira, vocĂȘ chega ao prĂ©dio do escritĂłrio sem qualquer percalço. Aparentemente, Deus estĂĄ de bem com vocĂȘ. E, a bem da verdade, Ă© tudo o quĂȘ vocĂȘ mais quer, trabalhar para pagar seus boletos, como Ă© o sonho de qualquer adulto normal, sem qualquer confusĂŁo romĂąntica com seu chefe. AtĂ© porque, vocĂȘ nĂŁo precisa dessas confusĂ”es.

Que coisa boa. VocĂȘ chega, estaciona com facilidade sua bicicleta na garagem, sobe para o tĂ©rreo e diz bom dia para as recepcionistas e para os porteiros. No corredor, esperando o elevador, chegam mais alguns advogados do seu escritĂłrio. Todos conversam animadamente sobre o fim de semana que se aproxima. Que sentimento bom, tudo estĂĄ bem, seu escritĂłrio possui colegas legais, vocĂȘ trabalhou duro ontem, entĂŁo hoje serĂĄ um dia mais tranquilo, talvez dĂȘ atĂ© para navegar um pouco pela internet para distrair, afinal, sextou! mesmo sendo apenas seu segundo dia. E aĂ­ vocĂȘ chega ao seu andar, se dirige atĂ© sua mesa e hĂĄ um post-it bem no meio da tela: "O Dr. Tiago, do departamento cĂ­vel, pediu para vocĂȘ ir atĂ© o escritĂłrio dele".

VocĂȘ sente na hora um pressentimento ruim. Se fosse para flertar com vocĂȘ, ele nĂŁo iria mandar colocarem um post-it amarelo bem no meio da sua tela. Certamente Ă© para falar sobre a palhaçada das ameaças de ontem. Droga, ele sarĂĄ que ele sabe que vocĂȘ Ă© a garota que o ficou xingando? Mas que cara impaciente, que nĂŁo te esperou nem sentar? Ah, mas ele vai esperar, vocĂȘ nĂŁo vai ficar sujeita a ele.

EntĂŁo vocĂȘ, calmamente, tira o lanche que comprou na rua, que serĂĄ o seu cafĂ© da manhĂŁ, e come na sua mesa, junto com um copo de cafĂ©, vendo alguns sites de moda social. Nisso, chegam as suas demais colegas, atĂ© a Dra. Pietra estĂĄ de bom humor hoje. Que bom que vocĂȘ chegou mais cedo e tirou aquele recado, pois, se nĂŁo, elas iriam ficar te zoando.

Pois foi sĂł vocĂȘ terminar de pensar nisso e ouve da sua chefe, no meio do departamento:

— Dra. Juliana, jĂĄ terminou de tomar cafĂ©? O Dr. Tiago, do departamento cĂ­vel, quer ver vocĂȘ no escritĂłrio dele.

VocĂȘ ouve ao seu lado risinhos, merda.

O que vocĂȘ achou desta histĂłria?

4.0 (10 avaliaçÔes)

VocĂȘ precisa entrar para avaliar.

VocĂȘ tambĂ©m pode gostar