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O Reino da GanĂąncia

por Jose Rizal

As Camadas Inferiores do Navio

LĂĄ embaixo, outras cenas se desenrolavam. Sentados em bancos ou pequenos bancos de madeira, entre malas, caixas e cestos, a poucos metros dos motores, no calor das caldeiras, em meio aos cheiros humanos e ao odor pestilento de Ăłleo, encontrava-se a grande maioria dos passageiros. Alguns contemplavam em silĂȘncio as paisagens mutĂĄveis ao longo das margens; outros jogavam cartas ou conversavam em meio ao raspar das pĂĄs, ao rugido do motor, ao silvo do vapor escapando, ao chapinhar das ĂĄguas agitadas e aos guinchos do apito. Num canto, amontoados como cadĂĄveres, dormiam, ou tentavam dormir, vĂĄrios vendedores chineses, enjooados, pĂĄlidos, espumando por entre lĂĄbios entreabertos, e banhados em sua copiosa transpiração. Apenas alguns jovens, na maioria estudantes, facilmente reconhecĂ­veis por suas vestes brancas e postura confiante, ousavam mover-se da popa para a proa, saltando sobre cestos e caixas, felizes com a perspectiva das fĂ©rias que se aproximavam. Agora comentavam os movimentos dos motores, tentando recordar noçÔes esquecidas de fĂ­sica; agora cercavam a jovem estudante ou o rapaz de lĂĄbios vermelhos com seu colar de sampaguitas, sussurrando-lhe palavras que os faziam sorrir e cobrir o rosto com seus leques.

No entanto, dois deles, em vez de se entregarem a essas galanterias fugazes, estavam na proa conversando com um homem, avançado em anos, mas ainda vigoroso e ereto. Ambos os jovens pareciam bem conhecidos e respeitados, a julgar pela deferĂȘncia demonstrada por seus companheiros de viagem. O mais velho, vestido de completo preto, era o estudante de medicina, Basilio, famoso por suas curas bem-sucedidas e tratamentos extraordinĂĄrios, enquanto o outro, mais alto e robusto, embora muito mais jovem, era Isagani, um dos poetas, ou pelo menos rimadores, que naquele ano vieram do Ateneu, um personagem curioso, geralmente bastante taciturno e incomunicativo. O homem que falava com eles era o rico Capitan Basilio, que regressava de uma viagem de negĂłcios a Manila.

— Capitan Tiago está indo mais ou menos como sempre, sim, senhor — disse o estudante Basilio, balançando a cabeça. — Ele não se submete a nenhum tratamento. Por conselho de uma certa pessoa, ele me envia para San Diego sob o pretexto de cuidar de sua propriedade, mas na realidade para que ele possa fumar seu ópio com total liberdade.

Quando o estudante disse uma certa pessoa, ele realmente quis dizer Padre Irene, um grande amigo e conselheiro de Capitan Tiago em seus Ășltimos dias.

— O Ăłpio Ă© uma das pragas dos tempos modernos — respondeu o capitĂŁo com o desdĂ©m e a indignação de um senador romano. — Os antigos o conheciam, mas nunca abusaram dele. Enquanto durou o apego aos estudos clĂĄssicos – anote bem isto, rapazes – o Ăłpio foi usado unicamente como remĂ©dio; alĂ©m disso, diga-me quem o fuma mais? – Chinamen, chinamen que nĂŁo entendem uma palavra de latim! Ah, se Capitan Tiago tivesse apenas se dedicado a CĂ­cero— Aqui o mais clĂĄssico desgosto pintou-se em seu rosto epicurista cuidadosamente raspado. Isagani o olhava com atenção: aquele cavalheiro sofria de nostalgia pela antiguidade.

— Mas voltando a esta academia de castelhano — continuou Capitan Basilio, — garanto-lhes, senhores, que vocĂȘs nĂŁo a materializarĂŁo.

— Sim, senhor, de dia para dia esperamos a permissĂŁo — respondeu Isagani. — Padre Irene, a quem talvez vocĂȘ tenha notado acima, e a quem apresentamos uma parelha de baĂ­as, prometeu-a a nĂłs. Ele estĂĄ a caminho agora para se conferir com o General.

— Isso nĂŁo importa. Padre Sibyla Ă© contra.

— Deixe-o se opor! É por isso que ele estĂĄ aqui no vapor, para – em Los Baños antes do General.

E o estudante Basilio completou seu significado através da pantomima de bater os punhos.

— Isso está entendido — observou Capitan Basilio, sorrindo. — Mas mesmo que consigam a permissão, onde arranjarão os fundos?

— Temos, senhor. Cada estudante contribuiu com um real.

— Mas e os professores?

— Temos eles: metade filipinos e metade peninsulares.

— E a casa?

— Makaraig, o rico Makaraig, ofereceu uma das suas.

Capitan Basilio teve que ceder; aqueles rapazes tinham tudo arranjado.

— AliĂĄs — disse ele, encolhendo os ombros, — nĂŁo Ă© de todo ruim, nĂŁo Ă© uma mĂĄ ideia, e agora que vocĂȘs nĂŁo podem mais aprender latim, pelo menos podem aprender castelhano. Aqui tĂȘm mais uma instĂąncia, xarĂĄ, de como estamos a andar para trĂĄs. Em nossos tempos aprendĂ­amos latim porque nossos livros estavam em latim; agora vocĂȘs estudam um pouco de latim, mas nĂŁo tĂȘm livros de latim. Por outro lado, seus livros estĂŁo em castelhano e essa lĂ­ngua nĂŁo Ă© ensinada – aetates parentum peior avis tulit nos nequiores! – como disse HorĂĄcio. Com essa citação, ele se afastou majestosamente, como um imperador romano.

Os rapazes sorriram um para o outro. — Esses homens do passado — observou Isagani, — encontram obstĂĄculos para tudo. PropĂ”em algo a eles e, em vez de verem suas vantagens, apenas fixam sua atenção nas dificuldades. Querem que tudo saia liso e redondo como uma bola de bilhar.

— Ele está em casa com seu tio — observou Basilio.

— Eles falam dos tempos passados. Mas escute – falando de tios, o que o seu diz sobre Paulita?

Isagani corou. — Ele me pregou um sermão sobre a escolha de uma esposa. Respondi-lhe que não havia outra em Manila como ela – bonita, bem-educada, órfã –

— Muito rica, elegante, charmosa, sem nenhum defeito alĂ©m de uma tia ridĂ­cula — acrescentou Basilio, o que fez ambos sorrirem.

— Em relação Ă  tia, vocĂȘ sabe que ela me encarregou de procurar o marido dela?

— Doña Victorina? E vocĂȘ prometeu, para manter sua amada.

— Naturalmente! Mas o fato Ă© que o marido dela estĂĄ realmente escondido – na casa do meu tio!

Ambos explodiram em riso, enquanto Isagani continuava: — É por isso que meu tio, sendo um homem consciencioso, nĂŁo vai para o convĂ©s superior, com medo que Doña Victorina lhe pergunte sobre Don Tiburcio. Imagine, quando Doña Victorina soube que eu era passageiro de terceira classe, ela me olhou com um desdĂ©m que –

Nesse momento, Simoun desceu e, avistando os dois jovens, saudou Basilio com um tom condescendente: — OlĂĄ, Don Basilio, vai de fĂ©rias? O senhor Ă© da sua cidade?

Basilio apresentou Isagani, observando que ele não era da sua cidade, mas que suas casas não ficavam muito distantes. Isagani morava na beira-mar da costa oposta. Simoun o examinou com atenção tão marcada que o incomodou; ele se virou completamente e encarou o joalheiro com um olhar provocador.

— Bem, como Ă© a provĂ­ncia? — perguntou o Ășltimo, voltando-se para Basilio.

— Por que, vocĂȘ nĂŁo a conhece?

— Como diabos vou conhecĂȘ-la se nunca pisei lĂĄ? Disseram-me que Ă© muito pobre e nĂŁo compra joias.

— Não compramos joias, porque não precisamos delas — respondeu Isagani secamente, ferido em seu orgulho provincial.

Um sorriso brincou nos lĂĄbios pĂĄlidos de Simoun. — NĂŁo se ofenda, jovem — respondeu ele. — Eu nĂŁo tinha mĂĄs intençÔes, mas como me asseguraram que quase todo o dinheiro estĂĄ nas mĂŁos dos padres nativos, pensei: os frades morrem de vontade por curas e os franciscanos se contentam com as mais pobres, entĂŁo quando eles as cedem aos padres nativos, a verdade deve ser que o perfil do rei Ă© desconhecido lĂĄ. Mas jĂĄ chega! Venha tomar uma cerveja comigo e brindaremos Ă  prosperidade da sua provĂ­ncia.

Os jovens agradeceram, mas recusaram a oferta.

— VocĂȘs fazem mal — disse Simoun a eles, visivelmente desconcertado. — A cerveja Ă© uma coisa boa, e ouvi Padre Camorra dizer esta manhĂŁ que a falta de energia notĂĄvel neste paĂ­s se deve Ă  grande quantidade de ĂĄgua que os habitantes bebem.

Isagani era quase tĂŁo alto quanto o joalheiro, e com isso ele se endireitou.

— Então diga ao Padre Camorra — disse Basilio apressadamente, enquanto cutucava Isagani astutamente, — diga-lhe que se ele bebesse água em vez de vinho ou cerveja, talvez todos nós ganhássemos e ele não daria tanto o que falar.

— E diga-lhe tambĂ©m — acrescentou Isagani, prestando pouca atenção Ă s cutucadas do amigo, — que a ĂĄgua Ă© muito suave e pode ser bebida, mas que afoga o vinho e a cerveja e apaga o fogo, que aquecida se torna vapor, e que agitada Ă© o oceano, que uma vez destruiu a humanidade e fez a terra tremer atĂ© suas fundaçÔes!

Simoun ergueu a cabeça. Embora seus olhos nĂŁo pudessem ser lidos atravĂ©s dos Ăłculos azuis, no resto de seu rosto podia-se ver surpresa. — Uma resposta bastante boa — disse ele. — Mas temo que ele fique facetioso e me pergunte quando a ĂĄgua serĂĄ convertida em vapor e quando em oceano. Padre Camorra Ă© bastante incrĂ©dulo e Ă© um grande brincalhĂŁo.

— Quando o fogo a aquece, quando os riachos que agora estão espalhados pelos vales íngremes, forçados pela fatalidade, se juntam no abismo que os homens estão cavando — respondeu Isagani.

— Não, Senhor Simoun — interveio Basilio, mudando para um tom jocoso, — antes lembre-se dos versos do meu amigo Isagani:

‘Fogo vocĂȘ, vocĂȘ diz, e ĂĄgua nĂłs,

EntĂŁo como vocĂȘ quiser, que assim seja;

Mas vivamos em paz e direito,

Nem o fogo nos verĂĄ lutar;

Assim unidos pela chama brilhante da sabedoria,

Que sem raiva, Ăłdio ou culpa,

Formamos o vapor, o quinto elemento,

Progresso e luz, vida e movimento.’”

— Utopia, Utopia! — respondeu Simoun secamente. — O motor está prestes a encontrar – nesse meio tempo, vou beber minha cerveja. Assim, sem qualquer desculpa, deixou os dois amigos.

— Mas o que hĂĄ com vocĂȘ hoje que vocĂȘ estĂĄ tĂŁo briguento? — perguntou Basilio.

— Nada. Não sei por que, mas aquele homem me enche de horror, medo quase.

— Eu estava te cutucando com o cotovelo. VocĂȘ nĂŁo sabe que ele Ă© chamado de Cardeal Marrom?

— O Cardeal Marrom?

— Ou EminĂȘncia Negra, como vocĂȘ quiser.

— Eu não entendo.

— Richelieu tinha um conselheiro capuchinho que era chamado de EminĂȘncia Cinzenta; bem, Ă© isso que este homem Ă© para o General.

— Realmente?

— É o que ouvi de uma certa pessoa – que sempre fala mal dele pelas costas e o bajula de frente.

— Ele tambĂ©m visita Capitan Tiago?

— Desde o primeiro dia apĂłs sua chegada, e tenho certeza de que uma certa pessoa o vĂȘ como um rival – na herança. Acredito que ele vai ver o General sobre a questĂŁo do ensino em castelhano.

Nesse momento, Isagani foi chamado por um servo para o seu tio.

Num dos bancos da popa, amontoado entre os outros passageiros, sentava-se um padre nativo contemplando as paisagens que sucessivamente se desdobravam Ă  sua vista. Seus vizinhos cediam-lhe lugar; os homens, ao passar, tiravam o chapĂ©u, e os jogadores nĂŁo ousavam pĂŽr sua mesa perto de onde ele estava. Ele falava pouco, mas tambĂ©m nĂŁo fumava, nem assumia ares arrogantes, nem se desdenhava de se misturar com os outros homens, retribuindo as saudaçÔes com cortesia e afabilidade, como se se sentisse muito honrado e muito grato. Embora avançado em anos, com cabelos quase completamente grisalhos, ele parecia ter saĂșde vigorosa, e mesmo sentado mantinha o corpo ereto e a cabeça erguida, mas sem orgulho ou arrogĂąncia. Diferia dos padres nativos comuns, poucos e raros de fato, que naquele perĂ­odo serviam meramente como coadjutores ou administravam algumas curas temporariamente, com uma certa autoconfiança e gravidade, como alguĂ©m que tinha consciĂȘncia de sua dignidade pessoal e da santidade de seu ofĂ­cio. Um exame superficial de sua aparĂȘncia, senĂŁo seus cabelos brancos, revelava de imediato que ele pertencia a outra Ă©poca, outra geração, quando os melhores jovens nĂŁo tinham medo de arriscar sua dignidade ao se tornarem padres; quando o clero nativo encarava qualquer frade de igual para igual; e quando sua classe, ainda nĂŁo degradada e vilipendiada, pedia homens livres e nĂŁo escravos, inteligĂȘncias superiores e nĂŁo vontades servis. Em seus traços tristes e sĂ©rios lia-se a serenidade de uma alma fortalecida pelo estudo e pela meditação, talvez provada por um profundo sofrimento moral. Este padre era Padre Florentino, tio de Isagani, e sua histĂłria Ă© fĂĄcil de contar.

Descendente de uma famĂ­lia rica e influente de Manila, de aparĂȘncia agradĂĄvel e disposição alegre, adequada para brilhar no mundo, ele nunca sentira qualquer vocação para a profissĂŁo sacerdotal, mas em razĂŁo de algumas promessas ou votos, sua mĂŁe, apĂłs nĂŁo poucas lutas e violentas disputas, o obrigou a entrar no seminĂĄrio. Ela era grande amiga do Arcebispo, tinha uma vontade de ferro, e era tĂŁo inexorĂĄvel quanto qualquer mulher devota que acredita estar interpretando a vontade de Deus. Em vĂŁo o jovem Florentino ofereceu resistĂȘncia, em vĂŁo implorou, em vĂŁo ele suplicou seus casos de amor, atĂ© provocando escĂąndalos: padre ele teve que se tornar aos vinte e cinco anos, e padre se tornou. O Arcebispo o ordenou, sua primeira missa foi celebrada com grande pompa, trĂȘs dias foram dedicados a festejos, e sua mĂŁe morreu feliz e contente, deixando-lhe toda a sua fortuna.

Mas nessa luta, Florentino recebeu uma ferida da qual nunca se recuperou. Semanas antes de sua primeira missa, a mulher que ele amava, em desespero, casou-se com um ninguĂ©m – um golpe o mais rude que ele jamais experimentara. Ele perdeu sua energia moral, a vida tornou-se aborrecida e insuportĂĄvel. Se nĂŁo sua virtude e o respeito por seu ofĂ­cio, aquele amor infeliz o salvou das profundezas em que as ordens regulares e os clĂ©rigos seculares caem nas Filipinas. Ele se dedicou a seus paroquianos por dever, e por inclinação Ă s ciĂȘncias naturais.

Quando os eventos de setenta e dois ocorreram, ele temeu que a grande renda que sua cura lhe rendia chamasse atenção para ele, entĂŁo, desejando paz acima de tudo, buscou e obteve sua dispensa, vivendo daĂ­ em diante como particular em sua propriedade patrimonial situada na costa do PacĂ­fico. LĂĄ ele adotou seu sobrinho, Isagani, que era relatado pelos maliciosos como sendo seu prĂłprio filho com sua antiga namorada quando ela ficou viĂșva, e pelos mais sĂ©rios e bem informados, o filho natural de uma prima, uma senhora em Manila.

O capitĂŁo do vapor avistou o velho padre e insistiu para que ele fosse ao convĂ©s superior, dizendo: — Se vocĂȘ nĂŁo o fizer, os frades pensarĂŁo que vocĂȘ nĂŁo quer se associar a eles.

Padre Florentino nĂŁo teve alternativa senĂŁo aceitar, entĂŁo convocou seu sobrinho para informĂĄ-lo para onde ia, e para encarregĂĄ-lo de nĂŁo se aproximar do convĂ©s superior enquanto ele estivesse lĂĄ. — Se o capitĂŁo notar vocĂȘ, ele tambĂ©m o convidarĂĄ, e entĂŁo estarĂ­amos abusando de sua gentileza.

— O jeito do meu tio! — pensou Isagani. — Tudo para que eu nĂŁo tenha motivo para falar com Doña Victorina.

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