Capítulo 12
XI
Na taberna
Entrava-se por um beco immundo, torcia-se á direita, e estava-se lá, no antro do crime, em que a vida e a fortuna se joga, o bem estar, a tranquilidade, o socego, toda a harmonia da existencia humana.
Exteriormente, apresentava a taberna um aspecto mesquinho e lugubre. Um distico, apenas, no alto da parede indicava aos transeuntes que ali «se vendia vinho verde.»
No largo portal da entrada, coroado por um ramo de louro, viam-se uns traços obscenos, riscados a giz, e, ao parecer, escriptos em maré de embriaguez.
Portas a d'entro, reinava uma alegria feroz, confusa e tristemente desconsoladora.
Uns jogavam, riam outros, e gritavam todos.
--Salto no valete--dizia um.
--Mico no terno--interrompia outro.
E assim, ébrios de vinho e ambiciosos de fortuna, jogavam elles, sem outro alento que não fosse o vicio e o esquecimento.
De subito, uma gargalhada estrugiu pelos ares.
Por uma das mesas, esgravatada e cebenta, rolou veloz um enorme cangirão de vinho, por onde á porfia bebiam os convivas alegres.
A taberneira, mulher roliça e de cabello na venta, servia com respeito os freguezes, na maioria lavradores e campinos.
A um canto, e sobre o junco, que cobria o lagedo da sala, estava um berço, onde uma creança dormia tranquillamente, em companhia de um gato malhado, velho hospede na casa.
Ao lado do berço um cão, apoiado sobre as mãos e com a orelha levantada, olhava filamente na direcção da porta de entrada.
Para além do balcão, duas pipas de vinho e uma pratelleira, cujas divisões continham pão, queijo e figos; tudo, já se vê, velho, amarellecido pelo tempo, e modico no preço.
--Viva o nosso Julio!... viva!...--exclamaram os jogadores, voz em grita.
O saúdado moço, de braços crusados e em mangas de camisa, nem sequer lhes respondeu.
Entrou, passeou a vista pela sala, e quedando-se com pesar, vociferou: --Nem mãe, nem... dinheiro...
Como por encanto, fez-se um silencio sepulchral na taberna. O jogo parou; e instinctivamente erguidos, correram todos á presença do Julio.
Prestes, porém, se apagou a mudez, a fim de novamente ser interrompida pela mais temerosa de todas as vozerias.
--Não póde ser; não póde ser. Abaixo a tyrannia. Vamos a acabar com elles. Malhados de uma figa... Queremos sangue e mais sangue... que nem um só escape... Querem-nos roubar o nosso trabalho... os infames...
Ladrões abaixo... Não queremos ladrões... A elles... todos a elles...
A taberneira exasperada, pedia ordem, levantando os braços. Em cima do balcão latia o rafeiro agudamente. O gato, espreguiçando-se, escoara-se com mysteriosa perfidia, por entre as pipas vasias. Um raio de lua, reflectindo-se phantasticamente sobre a cara da creança, que chorava, produzia um contraste singular, e sobremaneira interessante. Dir-se-hia que pela innocencia velava o céu em toda a sua magestade e grandesa.
N'um momento a porta rangeu nos gonzos.
--Em nome da lei declaro presos os desordeiros--bradou um vulto.
--Em nome de que lei?--retorquiu um dos agitadores.
--Em nome da nossa lei, em nome da lei portugueza--insistiu o primeiro, descobrindo-se.
Á vista do policia, até a taberneira gritou. Vergado ao peso de uma mão de ferro, aspera e cortante, e apanhado a sós, o espião do governo, atravessado por tres fortes navalhadas, rolou immediatamente aos pés de
Julio, que para elle olhava desconsoladamente.
Momentos depois a taberna estava só, escura, e triste.
* * * * *
Quem, dois dias depois, entrasse n'esta mesma casa, e attentasse nos personagens, ali reunidos, pouca differença de certo havia de notar.
Lia um dos operarios em voz alta a Revolução de Setembro, quando inopinadamente se lhe deparou a seguinte local: «Ante-hontem, cerca da meia noite, deu-se um grave tumulto n'uma taberna situada para as bandas de Alfama. A policia anda em cata dos desordeiros, e de crêr é que, em breve, elles soffram o justo castigo das suas loucuras.»
Taes palavras foram, como é natural, ouvidas com terror, da parte dos circumstantes.
Um silencio profundo envolvera a taberna. Mudos e reflexivos, ninguem ousava proferir uma palavra.
De repente apagou-se o gaz. O ruido tornara-se insupportavel, medonho, confuso.
--Traição... traição...--repetiram todos.
E o silencio recomeçou de novo.