Capítulo 23
XXII
Um hospede
N'uma noite tempestuosa em que a caridade, silenciosa sempre e occulta quasi sempre se encarrega de velar pela miseria sobre a terra,--voltava o sr. Francisco Alves a Alcantara, onde anciosamente o esperava a carissima metade da sua alma.
Na occasião, porém, em que descia a calçada da Pampulha, notou elle vagamente uma sombra que a um recanto permanecia n'uma mudez quasi sepulchral. Aproximando-se, reconheceu um homem, mais cadaver do que outra cousa. A tristesa tomou-o, então, dos pés á cabeça. Cheio de terror, livido, nervoso, lembrou-se o senhor Alves de chamar a policia.
Não era essa, todavia, a tendencia do seu coração generoso e leal. Emfim esperou. Casualmente passava um trem de praça. Chamou o cocheiro, e levantando o homem que elle supposéra ebrio, introduziu-o na carruagem.
A sr.^a Felisbella, como de antiga e patriarchal usança era n'aquella casa, resava a sua corôa, correndo o rosario entre os dois dedos da mão direita--o index e o polgar. Auxiliava-a em tão piedoso, quanto catholico mister, uma creada velha, beata pelos modos, quarentona já, mas amiga da sua ama.
A sala, em que ellas estavam, chamada casa de engommar, representava um quadrado perfeito, com vinte pés de comprido sobre vinte de largo, rodeada por doze cadeiras de coiro, antigas, segundo todas as apparencias, herdadas de parentella abonada.
Ao centro, uma mesa de páu preto, caprichosamente torneada, recebia invariavelmente, todas as noites, um velho candieiro de metal amarello, comprado n'um leilão de ferros velhos.
O sr. Francisco Alves, entrando em casa, nem sequer se déra ao trabalho de incommodar sua mulher. Arrastou o moribundo para um quarto, cuja cama principalmente sobresahia pela alvura da roupa, e foi elle mesmo chamar um medico.
N'este comenos concluía a sr.^a Felisbella a sua nocturna devoção.
Ignorando tudo o que em volta d'ella se passava, pegou no candieiro, pela aza superior; e, arrastando-se com difficuldade--porque a sr.^a
Felisbella era gorda e rheumatica--dirigiu-se para o quarto, parando no corredor umas tres ou quatro vezes.
A ausencia do marido incommodava-a, porém, sobremaneira. Terá elle sido preso?--monologava ella de si para comsigo.--Mas o meu Francisco nunca foi atreito a barulhos. Nada. E quem me diz a mim que algum namorico...
E n'estas duvidas adormeceu a esposa do sr. Alves, merceeiro.
A noite, como todos os contrastes d'este mundo, corrêra alegre para uns e triste para outros. A sr.^a Felisbella dormira umas boas oito horas, ao cabo das quaes acordou, pensando no sr. Francisco.
--Ó Francisco, Francisco!--gritava a pobre da mulher com toda a força dos seus pulmões.
E o sr. Francisco Alves assomou ao limiar da porta.
--Queres-me alguma cousa, Felisbella?--respondeu elle.
A mulhersinha enfiou, apenas viu o marido. Não sabendo com que desculpar-se, calou-se. Porque a sr.^a Felisbella--diga-se já de passagem--respeitava devéras o sr. Francisco, a quem na sua mocidade entregára o coração e a vontade.
Como quer que fosse, porém, o sr. Francisco, prudente como os que o sabem ser, entrou por si mesmo em explicações. Contou tudo o que durante a noite lhe havia occorrido; recommendou finalmente o rapaz á vigilancia de sua mulher, e sahiu.
Quando á tarde voltou a casa, communicaram-lhe que o doente já fallava.
Alegrou-se. N'esse dia bebeu mais um cópo de vinho ao jantar, e deu um beijo na face direita da sr.^a Felisbella.
Decorrêra um mez.
Em casa do sr. Francisco Alves reina uma alegria desusada. É domingo.
Preparam-se todos para ir jantar ao campo. A sr.^a Felisbella dobra o seu chale de toukin branco e calça a sua luva de retroz preto. O sr.
Alves leva um chapéu de palha do Chili. E o nosso doente--agora já restabelecido e companheiro de passeio--traja modestamente um fato preto.
A comitiva, assim composta, seguia para Queluz. Impossivel nos fôra descrever a amizade que n'esse dia reuniu aquelles tres entes queridos.
O sr. Francisco Alves brindou o seu hospede, appellidando-o com o doce nome de filho. A sr.^a Felisbella sorriu devotamente; e a creada, a velha creada, exclamou sentenciosamente: «Deus sabe o que faz!»