Capítulo 3
II
A Senhora Viscondessa
É uma mulher da moda--chlorotica, anemica, febril.
Olhar vivo, e transparente, como um chrystal. Na sua doce pallidez o que quer que seja das visões de Schiller. No andar, porte altivo, donairoso, esbelto. As longas insomnias, apaixonadas, tornaram-n'a triste e contemplativa, como uma virgem de Murillo.
É viscondessa; faz muitas esmolas e possue trens faustuosos.
Acabam de soar duas horas nos relogios da cidade. Um calor intenso abrasa as calçadas. Corria o mez de Maio de 1859. No Largo de Camões, o sol, batendo de chapa, sobre um telhado visinho, reflectira-se estranhamente nos aposentos da viscondessa.
No corredor presentira-se o ranger de um leito. O cortinado de cambraia foi delicadamente afastado por uma mão de marfim, pequena e esculptural.
--Virginia, Virginia--gritou uma voz sonora, de timbre metalico e adocicado.
A porta do quarto, abrindo-se, deixou entre vêr o rosto de uma formosa creança, loura como um cherubim e tentadora como Eva.
--V. ex.^a chamou, minha senhora?
--Sim, chamei.--Traze-me o meu roupão branco e vem ajudar-me a vestir.
E a viscondessa, bocejando infantilmente tornou a cahir no travesseiro, doida de somno e ébria de amor.
Adormeceu de novo.
Uma hora volvida veio Virginia encontral-a sentada n'uma poltrona, defronte do espelho.
Fingia que lia. Do regaço pendia-lhe um romance francez. Com a mão direita desviava as tranças fartas, que, por vezes caprichavam em cahir-lhe sobre o peito. O braço esquerdo, abraçando o espaldar da cadeira, servia-lhe de encosto.
De subito ergueu-se como uma estatua. Procurou um pente e largou-o com desfastio. Olhou para o relogio, tocou a campainha, e tornou a sentar-se.
--Estou aqui, minha senhora. Deseja alguma cousa?
--Ah! Estavas aqui. Ora vejam que cabeça a minha que nem sequer havia dado por tal.--Manda-me arranjar o almoço, anda.
--Por mais que me digam a senhora não anda bôa--murmurava a ladina da creada, correndo espevitadamente.
A viscondessa, sempre inquieta, ergueu-se novamente. Percorreu o corredor e entrou na sala de jantar. Dirigiu se a um periquito, que ali tinha, tirou-o da gaiola e começou de afagal-o meigamente.
--Coitadinho do meu bijou--exclamava ella com doçura.
Foi-se depois ao canario, trouxe-o para a mesa, e destribuindo com elle a comida, que mal provava, introduziu-o no seio.
Um cão pequeno, felpudo, ensaboado e luzente, como verniz, fazia pendant com os dois personagens, acima descriptos. Joli lhe chamava a viscondessa. Nunca sahia da sala de jantar. Era o seu theatro d'elle.
Ali aprendêra a ser guloso e concupiscente. Quando a senhora chegava, elle, de um pulo, saltando lhe ao regaço, para logo principiava de lamber-lhe as faces e os cabellos. A dona da casa aceitára, sem repugnancia, este tributo quotidiano.
Alêm do cão havia um gato maltez, elastico, como uma serpente e indolente como um chin.
Entre o cão e o gato existia uma mediadora: era a viscondessa. Por fim os dois rivaes fizeram tréguas. Chegaram até a comer no mesmo prato, brincando como dois amigos.
Nos seus dias de melancholia, a viscondessa, orphã de pae e mãe, sem parentes, só no mundo e senhora de ricos haveres, reunindo em redor de si tão variada e interessante familia, sentia-se mais feliz, e porventura mais esquecida do que nunca.
O gato aquecia, o cão lambia, e as aves entretinham, cantando.
Emfim bateram quatro horas. A Viscondessa bocejou mais uma vez.
--Se elle, ao menos, me amasse...--dizia ella, erguendo-se.
E, continuando pelo corredor, entrou no boudoir, onde a esperava a cabelleireira.
Vestiu um chambrão de cachemira azul; e, sentando-se na cadeira que lhe offereceram divagou, ao acaso, durante uma hora.
Quando acordou estava realmente encantadora.
O cabello, frisado a capricho, imprimia-lhe um aspecto senhoril e grave.
O rosto desanuviara-se-lhe. Foi ao espelho, e, como flôr que ao sol desabrocha, sorriu-se maliciosamente.
--Achas-me bonita, assim?--perguntou ella a Virginia.
--Deslumbrante--minha rica senhora.
E a viscondessa, toda vaidade e tentação, foi-se até á cosinha, pretextando umas ordens para o jantar.
Voltou depois ao quarto. A um ligeiro impulso cahira-lhe o roupão.
Sorrindo-se, envergou umas saias pesadas e cheias de gomma. Remirou-se novamente ao espelho. Com um pincel, mergulhado em carmim, deu côr ao rosto, naturalmente desmaiado. Apertado o espartilho e collocada a tournure enfiou um rico vestido de setim. Chamou Virginia e pediu alfinetes. Pregou o vestido, pregou o cabello, pregou as saias, pregou-se a si e sahiu do boudoir.
--Ora esta! e não me ia agora esquecendo o crême imperatrice--monologava ella, voltando á saleta.
Defronte do espelho, recuando dois passos e fazendo tregeitos para um o outro lado, empoeirou-se gravemente.
Extrahiu do gavetão um lenço de cambraia; destapou um vidrito de jockey-club, perfumou-se e entrou na sala do baile.
O piano estava aberto. A viscondessa sentou-se. Dedilhou, ao acaso, uma escala e aborreceu-se.
Olhou para um espelho, mudou um dos ganchos do cabello e abriu a janella.
Uma brisa tépida soprava apenas. O sol ia declinando no horisonte. Nas ruas mexiam-se as multidões apressadamente. Alguns cavalheiros de chapéu na mão limpavam o suor da testa. As damas, mesmo á janella, agitavam os leques phreneticamente. Os freguezes entravam nos botequins, e pediam sorvetes.
Estava proxima a hora do passeio, a hora de luar, a hora de amor.
Seriam oito horas, quando a viscondessa cerrou a janella. Chegára-lhe finalmente a vontade de jantar.
Caminhou lentamente, deixando após de si um rumor surdo, e mui semelhante ao remexer de folhas, agitadas pelo vento.
Insaciavel, hysterica, nervosa, sentou-se á mesa pela segunda vez n'aquelle dia. Provou de tudo sem comer de nada. Bebeu um gólo de malvasia e fez-lhe uma careta insupportavel. Limpou os labios de coral e mandou arranjar o trem.
Prompta a carruagem e calçadas as luvas dirigiu-se para o theatro de D.
Maria.
Representava-se a Vida de um rapaz pobre n'essa noite. A Viscondessa admiravel de bellesa e encanto, provocava de continuo os binoculos das plateias.
No fim do 3.^o acto a porta da frisa abriu-se. Era Alfredo que entrava.
A Viscondessa sorriu-se.
--Sabe, Alfredo, que o esperei hoje todo o dia?
--E não o ter eu adivinhado, senhora viscondessa?
--Se imaginasse o aborrecimento em que vivo decerto não seria tão cruel para commigo.
--Mas, minha senhora, a minha posição... emfim... eu não sei...V.
ex.^a...
E a orchestra, tocando uma symphonia, deu o signal de despedida.
--Alfredo, enleiado e timido, sahiu da frisa. A Viscondessa cumprimentou-o, e, como sempre sorriu-se tristemente. O espectaculo continuou.
Á sahida do theatro, quando a Viscondessa, acompanhada por um creado, punha o pé direito no estribo da carruagem um desconhecido, abeirando-se d'ella entregára-lhe um pequeno bilhete, ligeiramente perfumado.
Os cavallos partiram a galope. Apenas chegada a casa, a senhora, toda receio e anciedade, abriu o bilhete.
Desengano, desengano cruel! Não era de Alfredo a letra...
Mas de quem poderia ser? A quem attribuir aquellas palavras ardentes?
«Amo-te--escrevêra o anonymo.--Doidamente te amo. Tu decidirás da minha sorte. Sou pobre, sou operario. Embora! Hei de conquistar-te ainda mesmo atravez do sangue do meu rival.
--Sempre é muito atrevido!...--exclamava a viscondessa, despindo-se já.
Acendeu depois um charuto, um excellente charuto havano.
A pouco e pouco foram-se-lhe os olhos estreitando. Para um lado pendeu a cabeça abrasada, e para outro o braço, cuja mão deixava cahir o charuto, quasi apagado.
Languida, abatida, sensual a senhora adormeceu finalmente.
Virginia chegára pé ante pé e retirára a luz. O palacete, envolto em trévas, acompanhára o somno da sua rainha.
E assim se passava a vida da Viscondessa.