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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 31

XXX

Glorias do operario

Entretanto o nosso operario, agora já transformado em negociante, vai seguindo o seu caminho, a despeito da intriga e da inveja, com que a sociedade, em geral, costuma premiar o trabalho e a honradez.

Julio, retemperado no cadinho dos grandes soffrimentos, fizera-se homem repentinamente. Julgando apagada a imagem da Viscondessa no seu espirito, dedicou-se ao trabalho com fervôr. Levantava-se habitualmente ás seis horas da manhã, ia receber as ordens da sr.^a Felisbella, e partia. Só regressava a casa ás oito ou nove da noite, hora em que elle tomava chá. E este programma, assim praticado, com a regularidade de um pendulo de relogio, poucas vezes era transgredido, a não ser n'um ou outro domingo.

A mercearia prosperara a olhos vistos. Diziam os freguezes, e com razão, que a bôa alma de Francisco Alves em nada ficára a dever ao sr. José

Xavier.

Além da loja tinha, porém, Julio um escriptorio de commissões maritimas, de cuja responsabilidade auferia annualmente sólidos e lucrativos interesses.

Em poucos annos adquirira Julio o senso pratico, tão prudente, como indispensavel nas cousas da vida. O nome de José Xavier acreditara-se solidamente na praça do commercio. Muitos invejavam já a fortuna do mercieiro; muitos o calumniavam tambem. Entretanto Julio, com aquelle orgulho que só a consciencia sabe dar, era invariavel, senão implacavel, na missão que voluntariamente se imposera.

Um dia apparecera-lhe na loja um conhecido, parasita do Chiado.

--Desejo fallar ao sr. José Xavier, começou o Maryalva.

--Um seu creado, respondeu Julio.

O recem-vindo descobriu-se solemnemente.

--Um negocio importante me traz aqui, continuou. Acabo de saber por um amigo intimo que é V. Ex.^a não só um dos mais generosos cavalheiros d'esta cidade, senão tambem que são brilhantes as qualidades que adornam o elevado espirito de V. Ex.^a...

--Bem! e depois..., interrompeu o mercieiro.

--E depois, precisando eu de dinheiro, estou certo que V. Ex.^a m'o não negará...

--A outra porta, amigo, rematou Julio.

--Sempre é bem malcreado..., rosnou o pretendente.

E sahiu.

Com estes factos, porém, contrastavam outros, dignos do maior elogio.

Amanhecera-lhe um mendigo á porta do escriptorio.

--Que quer aqui?, perguntou Julio.

--Eu senhor, sou pobre, não tenho cama, nem pão...--respondeu o desgraçado.

E Julio, tirando uma libra do bolso, disse: --Póde procurar-me todos os mezes para receber egual quantia.

E seguiu para o trabalho.

Julio transformára-se, pois, n'um homem severo, sem as paixões que arrebatam, nem os egoismos que offendem. Á parte a propria felicidade e a da sr.^a Felisbella, a quem elle tratava por mãe, pouco mais lhe interessava n'este mundo.

Com a convivencia dos homens tornara-se concentrado, desconfiando de tudo e de todos. Advogando de preferencia os proprios interesses, era, todavia, generoso, para quem o devia ser.

Os pobres conheciam-no de longe. E Deus abençoava-lhe as acções, tornando-o um homem rico, forte e corajoso.

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