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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 6

V

No restaurante

Um mez volvido, após os acontecimentos, acima descriptos,--em Junho de 59--entrava eu casualmente n'um café do Caes do Sodré, situado por baixo do Grand Hotel Central--quando ouvi a voz de Alfredo, que de longe me chamava.

Ebrio e tumultuoso extendeu-me a mão direita, offerecendo-me um banco de palhinha em um dos extremos da mesa.

Com elle estavam quatro amigos, por egual risonhos e embriagados.

Sobre a pedra de marmore, pegajosa e cheia de cinsa de charuto, viam-se entre outras cousas cinco chavenas de café, quasi esgotadas, duas garrafas de cognac e uma de absyntho.

--Não podias vir em melhor occasião--exclamava Alfredo com o cotovello direito apoiado sobre a mesa e a cabeça inclinada sobre a mão.

--Antes de mais, vae-me bebendo esse cognac e ouve-me depois.

Alfredo tirou em seguida um masso de cartas do bolso interior da sobrecasaca, e desatando uma fita verde que as envolvia, começou de abrir uma por uma.

--Mal sabem vocês que temos por aqui uma paixão fidalga. Nem mais nem menos do que de uma viscondessa.

Esgotou um calix de absyntho, accendeu o charuto e encetou a leitura.

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«Meu bom Alfredo.--Sabes que te amo e que te amo devéras. Não se passa uma hora, um minuto, um instante em que a tua doce imagem, pura como

Eva...

--Devem notar que este pura como Eva tem sua graça e é original--reflexionava Alfredo.--Ah! Evas! ah, puras! ah, vestaes do lodo e da chocarrice...

«... pura como Eva, não venha irradiar-se sobre mim como luz redemptora e supremo consolo. Nem eu sei dizer-te o que sinto, meu amigo. Tenho ciumes dos que te acompanham. E não ser eu tambem homem para te seguir sempre e por toda a parte!

--Variante á mulher-homem de Girardin... Adeante.

«Que triste condição a da mulher, impellida a viver isolada do mundo e da sociedade...

--Sim, sim, bem te entendo, meu anjo.

«Vem, Alfredo, vem; vem ver-me muitas vezes, se queres que eu viva feliz e alegre.» «A Viscondessa de B***.» --Ora aqui teem Vocês o primeiro specimen da feminil intelligencia.

Vamos ás outras e sem commentarios.

E n'isto Alfredo esvasiou de novo um calix de absyntho.

«Meu unico amigo.--Uma immensa, uma profunda saudade me agita o espirito. Sinto que me és e serás sempre um alento magnanimo.

«Á meia noite, quando a lua campeia no seu eterno throno de magestade e de bellesa, apraz-me pensar em ti, nos teus caprichosos desejos, e nas tuas phantasticas promessas.

«Eu amo o silencio, porque é vago, ethereo e cheio de sombras. Ha dias, entrando n'um pinheiral, cuja verde ramagem se agitava doce e harmoniosamente, como uma harpa do céu,--lembrei-me de ti.

«Ao acaso procurei um outeiro, onde me sentasse. Ao longe o oceano, como um leão esfaimado, enchia a terra com a sua musica rouquenha e sepulchral. Aproximava-se o crepusculo. Umas nuvens ainda, retintas pelos raios afogueados do sol, percorriam o espaço de norte a sul.

«Sentindo-me isolada e só, tremi involuntariamente. Soltei um grito e vi uma creança que para mim corria de braços abertos. Foi uma apparição de

Deus.

«Que linda, que formosissima creança!

«Pensei, então, em ti, meu amigo, mais do que nunca; e, Deus me perdôe, pensei na creança, que, um dia, fructo das minhas entranhas, uniria para sempre as nossas duas existencias, n'um unico beijo, n'um unico abraço, n'uma unica ideia.

«Adeus, meu filho. Crê em mim, crê no futuro.

«A Viscondessa de B***.»

Alfredo, não podendo mais suster o riso, soltou uma furiosa gargalhada, deixando, ao mesmo tempo, cahir a carta que mal sustinha entre os dedos frouxos e nervosos.

--Ah! Ah! Ah!... Parecia-me mesmo um lyrio esta viscondessa, um lyrio a desabrochar. Se não fosse eu, ainda hoje estaria romantica. Ora oiçam esta, que é a ultima.

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«Meu Alfredo.--A tua convivencia modificou-me fortemente. Comtigo murcharam as doces illusões que outr'ora me sorriam como estrellas do céu.

«Como a flor tristemente pisada pelo pé do viandante, assim o meu espirito succumbiu, sob a influencia do teu halito febril.

«Sem embargo, eu adoro-te, Alfredo.

«Tu polluiste-me as faces com os teus beijos escaldados, profanaste-me o corpo com as tuas paixões impuras, fizeste de mim uma mulher material, viciosa, corrupta.

«Eu pedia-te um amor puro, nobre, immaculado, e tu só me deste um desejo vil, trivial, insensato.

«Que fizeste da minha honra, Alfredo?

«Porque me não amaste d'outro modo?

«E queres-me ainda assim? pois bem: serei tua, tua para sempre.

«A Viscondessa de B***.

--Absyntho, rapaz--gritou o amante da viscondessa, batendo com a bengala no marmore da mesa.

E o creado, desarrolhando uma garrafa, offereceu-a ao freguez.

No relogio do restaurante soaram, então, 2 horas da madrugada.

Alfredo, bebendo sempre, resmungava imperceptivelmente. Ao lado d'elle os amigos proseguiam na mesma tarefa.

O dono do restaurante, vendo que o caso se demorava, mandou vir um trem.

Sobraçou Alfredo, a este tempo, já quasi debaixo da mesa, e introduziu-o na carruagem, cuja almofada era simultaneamente occupada por um cocheiro e um policia.

Fez o mesmo aos restantes e fechou as portas do estabelecimento.

Eu sahi tambem; mas, ao contrario dos outros, aterrado e confuso, com o que ali havia presenciado e ouvido.

Pensei em Luiz Veuillot e segui para casa.

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