Capítulo 8
VII
Entre amigos
Tudo disposto e preparado.
Somos quarenta convivas á mesa. A viscondessa está bella, verdadeiramente bella, sem os artificios que deslumbram, nem as vaidades que enojam. Completa agora vinte e seis annos, volvidos entre o regaço da mãe que se finou e os beijos do pae cuja existencia, por duvidosa, se ignora. Alfredo está tambem, mas triste, acabrunhado, pesaroso, olhando indifferentemente as pessoas que o rodêam, comendo pouco, bocejando muito e bebendo mais.
Dois creados serviam a sôpa. Pelo lado direito da mesa, parallelo-grammo, offerecia-se a sôpa Julienne alternada pela esquerda com a sôpa allemã.
Um mysterioso silencio envolvia quasi todos os hospedes. Umas leves palavras apenas se trocavam de par para par. Nos calices transparecia o xerez--o louro e ingenuo xerez dos estomagos delicados.
Esgotados os primeiros copos e retirada a primeira coberta de peixe com molho á ingleza, appareceu o Chateau-Lafitte. Alfredo, reclinando-se na cadeira, sorriu-se meigamente. Um cavalheiro importuno, levantando-se, de cópo erguido, disse: «Minhas senhoras e meus senhores: n'este vinho, eu saúdo a França, mãe desvelada do pensamento moderno.»
E todos beberam.
Entretanto o silencio recomeçara novamente. Os creados, em nervoso phrenesi, retiravam os pratos sujos para logo os substituir por outros lavados. Telintavam os talheres de prata. Quatro bicos de gaz alumiavam a mesa, matisada de flôres, cuja côr deliciava todos os olhos e cujo perfume embriagava todas as pituitarias. Na parede, pintada a azul-dourado, destacavam uns quadros comicos, alegres, folgasões, uns quadros de caçador logrado, perfeitamente pittorescos, perfeitamente escolhidos.
Estava-se n'um vol-au-vent de frangos. O vinho correspondente era, se bem me lembro, Madeira sêcco. Conversava-se já de extremo para extremo.
Algumas damas, agitando os leques, abriam os olhos, afogueadas em calor.
Por ordem da viscondessa abriram-se as janellas. Uns cégos, que, então, passavam na rua, começaram de tocar uns velhos landúns, perfeitamente detestaveis e anachronicos.
«O fado! o fado!--gritou Alfredo.
E os homens principiaram a tocar o fadinho das salas.
Servida uma mayonnaise de linguados, servida ainda uma galantina de gallinha com aspic, passou-se a um ponche à la romaine. As rolhas do champague saltavam ferventes e impetuosas, como uma catadupa de topasios. Os creados corriam como possessos. As senhoras apoiavam as faces rubras, sobre o hombro direito dos namorados. No espaço campeava a lua, na sua doce pallidez, espreitando meigamente o festim da viscondessa.
Seriam dez horas da noite, quando, depois de concluidos os assados--patos com azeitonas, perús com truffas e espargos--se começou a tirar o doce. Comiam uns podim saboyon au rhum e outros bavaroise de fruta. O licôr escolhido era o Chartreusse. Alfredo, erguendo-se, propôz um brinde.
«Bebo á saude da senhora viscondessa--exclamou elle--á saude da sua felicidade, e á saude de seu futuro filho.»
E, sem mais poder suster-se de pé, cahiu sentado na cadeira. Todos o olharam com um olhar interrogativo. A viscondessa, encarou-o, com uma santa e terna delicadesa. Os outros, por prudencia, calaram-se.
Cá fóra numerosas tropas atravessavam as ruas. Portugal, constitucional, saùdava o seu nunca--esquecido vinte e quatro de Julho.
Terminados os brindes, que foram immensos e ruidosos, continuaram todos para o salão. Só Alfredo, por confiança na casa, ousou ficar á mesa, a cujo extremo adormeceu. E, suspeitando que fumava, dormiu um longo e pesado somno.
Quando realmente deu por si soavam tres horas nos relogios da casa. Meio adormecido e meio acordado, olhou e viu duas sombras, que, a um recanto do aparador, se agitavam docemente. Aproximando-se mais reconheceu então uma das creadas da casa, conversando airosamente com um garboso gentil homem.
--Ora pois!--regougou elle.--Nem mais nem menos. Tudo corre bem e todos teem rasão...
E sahiu, assobiando a carta adorada da Grã-Duquesa.
Na carta que eu tive, Amelia formosa,
Me disseste amor...