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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 9

VIII

De passagem

Entre um bom jantar e um bom espirito existe, ao que parece, uma profunda analogia. Tous les gens d'esprit sont gastronomes--dizia

Balzac. De todos os animaes, o unico, que sabe comer, é o homem--escrevia um outro auctor francez. D'este modo o jantar entre amigos é uma quasi necessidade da nossa existencia e um salutar incentivo a duas ou tres horas de boa e franca jovialidade.

Em Portugal dão-se jantares, mais como ostentação vã, do que verdadeiramente como meio de melhor expandirmos os nossos affectos, as nossas ideias, os nossos desejos, as nossas ambições. A nossa mesa distingue-se das mesas estrangeiras, não só pela má escolha das comidas, senão tambem pela exaggerada seriedade com que costumamos assistir a taes solemnidades. Dir-se-hia que, em taes momentos, estamos presenciando o enterro de nossos paes.

Ora o jantar, o bom jantar, sadio e leve, deve sobretudo correr alegre, isento de malquerenças, semeado de phrases espirituosas e de anecdotas interessantes. O jantar é, por via de regra, um pretexto para solidificar velhas relações de amisade; um pretexto para nos rirmos á vontade, um pretexto para conversarmos intimamente.

Os estrangeiros, comprehendem de ordinario estas festas, tirando os casacos, bebendo bem e comendo melhor. Nós outros, os portuguezes que, não obstante sermos uma caricatura viva de tudo quanto vem de fóra, tanto queremos primar pela gravidade que comprehendemos perfeitamente o contrario. Mal nos rimos, porque nem mesmo rir sabemos. O espirito nem sempre se amolda com todas as modulações de linguagem. Parece que á lingua portugueza foi vedado o dizer ligeiro, amavel, faceto, que tanto distingue a França moderna. Nós somos um povo, naturalmente indolente, um povo de apaixonados, como tão bem nos definiu M.^me de Sevigné.

Voltemos, porém, á cosinha.

Tem um grande defeito: falta-lhe como em geral ao nosso viver, a boa elegancia, o sabor, a pimenta, que torna as comidas mais gostosas e mais facilmente digestivas. Não temos originalidade, e por isso imitamos. O unico prato que a meu vêr existe classicamente portuguez, mas soberanamente enjoativo, é o leitão. Na provincia, sobretudo, assa-se um leitão a proposito de qualquer festa. São nossos, exclusivamente nossos, o leitão e os foguetes.

Depois note-se--na nossa mesa não ha aquelle aceio que tanto seria para desejar, e que tão proverbial é entre os ingleses. Uma toalha, perfeitamente branca, aromatica, transparente, é já de si um notavel passo para um bom jantar. As indigestões nascem quasi sempre do mau tempero das comidas: parece que se odeia a agua e lavam-se os mantimentos como em baptismo de mouros.

Entre as classes mais altas da sociedade são despresadas as comidas vegetaes. Só o povo as aprecia; e porisso tambem é elle em geral mais robusto, mais fortemente organisado, e mais naturalmente atreito á espontaneidade e ás alegrias da vida.

O temperamento depende das condições alimenticias em que nos encontramos. O bom e o mau humor tambem d'ellas provêm. No modo, porque nos alimentamos reside, pois, uma grande parte da nossa felicidade.

As comidas, demasiadamente gordas, geram a obesidade tão peculiar aos nossos provincianos; ao passo que o alimento vegetal torna o homem ligeiro, amavel e espirituoso.

Á mesa da viscondessa respirava-se um invejavel aceio e uma limpesa pouco vulgar entre nós. A propria toalha attrahia, não só pela sua extrema brancura, senão tambem por uma deliciosa fresquidão, que de ordinario exhalava.

Grave era a viscondessa, mas espirituosa. Ninguem sabia tratar melhor os seus hospedes, nem com mais liberdade. Como aphorismo passava já em julgado que eram bons, substanciosos e alegres os jantares da viscondessa.

É que, á parte os seus caprichos, a viscondessa comprehendeu a vida moderna, tal qual ella deve ser: commoda, aceiada e elegante.

Nem porisso lhe queiramos mal, mas antes façamos por imital-a.

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