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A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 10 - Parte 2

Chefe do Trafico, pelo Secretario da Companhia, occupamos copiosamente o nosso salão. Eu puz o meu bonet de sêda, calcei as minhas chinellas. Um silvo varou a noite. Paris lampejou, fugiu n'um derradeiro clarão de janellas... Para o sorver, Jacintho ainda se arremessou á portinhola.

Mas rolavamos já na treva da Provincia. O meu Principe então recahiu nas almofadas: --Que aventura, Zé Fernandes!

Até Chartres, em silencio, folheamos as Illustrações. Em Orleans, o guarda veio arranjar respeitosamente as nossas camas. Derreado com aquelles quatorze mezes de Civilisação adormeci--e só acordei em Bordeus quando Grillo, zeloso, nos trouxe o nosso chocolate. Fóra, uma chuva miudinha pingava mollemente d'um espesso ceu de algodão sujo. Jacintho não se deitára, desconfiado da aspereza e da humidade dos lençoes. E, mettido n'um roupão de flanella branco, com a face arripiada e estremunhada, ensopando um bolo no chocolate, rosnava sombriamente: --Este horror!... E agora com chuva!

Em Biarritz, ambos observamos com uma certeza indolente: --É Biarritz.

Depois Jacintho, que espreitava pela janella embaciada, reconheceu o lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador Danjon.

Era elle, o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado d'uma dama roliça que levava pela trella uma cadellinha felpuda. Jacintho baixou a vidraça violentamente, berrou pelo Historiador, na ancia de communicar ainda, através d'elle, com a Cidade, com o 202!... Mas o comboio mergulhára na chuva e nevoa.

Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida facil, os abrolhos da Incivilisação, Jacintho suspirou com desalento: --Agora adeus, começa a Hespanha!...

Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra bemdita, saltei para diante do meu Principe, e n'um saracoteio de tremendo salero, castanholando os dedos, entoei uma «petenera» condigna:

A la puerta de mi casa

Ay Soledad, Soleda... á... á... á.

Elle estendeu os braços, supplicante: --Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!

--Irun! Irun!...

N'essa Irun almoçamos com succulencia--por que sobre nós velava, como

Deusa omnipresente, a Companhia do Norte. Depois «el jefe d'Aduana, el jefe d'Estacion», preciosamente nos installaram n'outro salão, novo, com setins côr d'azeitona, mas tão pequeno que uma rica porção dos nossos confortos em mantas, livros, saccos e impermeaveis, passou para o compartimento do Sleeping onde se repoltreavam o Grillo e o Anatole, ambos de bonets escocezes, e fumando gordos charutos.--Buen viaje!

Gracias! Servidores!--E entramos silvando nos Pyreneos.

Sob a influencia da chuva embaciadora, d'aquellas serras sempre eguaes, que se desenrolavam, arripiadas, diluidas na nevoa, resvalei a uma somnolencia dôce;--e, quando descerrava as palpebras, encontrava

Jacintho a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre que cruzára os magros dedos, considerando valles e montes com a melancolia de quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio em que, arremessando o livro, enterrando mais o chapéo molle, se ergueu com tanta decisão, que receei detivesse o comboio para saltar á estrada, correr atravez das Vascongadas e da Navarra, para traz, para o 202!

Sacudi o meu torpôr, exclamei:--«oh menino!...» Não! O pobre amigo ia apenas continuar o seu tedio para outro canto, enterrado n'outra almofada, com outro livro fechado. E á maneira que a escuridão da tarde crescia, e com ella a borrasca de vento e agoa, uma inquietação mais aterrada se apoderava do meu Principe, assim desgarrado da Civilisação, arrastado para a Natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Não cessou então de me interrogar sobre Tormes: --As noites são horriveis, hein, Zé Fernandes? Tudo negro, enorme solidão... E medico?... Ha medico?

Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou as vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e lufava um grande vento solto. A machina apitava, com angustia. Uma lanterna lampejou, correndo. Jacintho batia o pé:--«É medonho! é medonho!»...

Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças surdiam cabeças esticadas, assustadas.--«Que hay? Que hay?»--A uma rajada, que me alagou, recuei:--e esperamos durante lentos, calados minutos, esfregando desesperadamente os vidros embaciados para sondar a escuridão. De repente o comboio recomeçou a rolar, muito sereno.

Em breve appareceram as luzinhas mortas d'uma estação abarracada. Um conductor, com o casacão de oleado todo a escorrer, trepou ao salão:--e por elle soubemos, emquanto carimbava apressadamente os bilhetes, que o trem, muito atrazado, talvez não alcançasse em Medina o comboio de

Salamanca!

--Mas então?...

O casaco de oleado escorregára pela portinhola, fundido na noite, deixando um cheiro de humidade e azeite. E nós encetamos um novo tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até

Medina, desengatava em Medina:--e eis os nossos preciosos corpos, com as nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre vinte e trez malas, n'uma rude confusão hespanhola, sob a tormenta de ventania e d'agua!

--Oh, Zé Fernandes, uma noite em Medina!

Ao meu Principe apparecia como desventura suprema essa noite em Medina, n'uma fonda sordida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos atravez dos lençoes d'estopa encardida!... Não cessei então de fitar, n'um desassocego, os ponteiros do relogio:--emquanto Jacintho, pela vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio paciente fumegando... Depois recahia no divan, limpava os bigodes e os olhos, maldizia a Hespanha. O trem arquejava, rompendo o vasto vento da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! Algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando, emquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam mais soturno. Jacintho esmurrava o joelho:--«Mas por que pára este infame comboio? Não ha trafico, não ha gente! Oh esta Hespanha!...» A sineta badalava, moribunda. De novo fendiamos a noite e a borrasca.

Resignadamente comecei a percorrer um Jornal do Commercio, antigo, trazido de Paris. Jacintho esmagava o espesso tapete do salão com passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim se escoou, ás gottas, uma hora cheia de eternidade.--Um silvo, outro silvo!... Luzes mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos solavancos, os encontros de carris. Emfim, Medina!... Um muro sujo de barracão alvejou--e bruscamente, á portinhola aberta com violencia, apparece um cavalheiro barbudo, de capa á hespanhola, gritando pelo snr.

D. Jacintho!... Depressa! depressa! que parte o comboio de Salamanca!

--«Que no hay un momento, caballeros! Que no hay un momento!»

Agarro estonteadamente o meu paletot, o Jornal do Commercio. Saltamos com ancia:--e, pela plataforma, por sobre os trilhos, através de charcos, tropeçando em fardos, empurrados pelo vento, pelo homem da capa á hespanhola, enfiamos outra portinhola, que se fechou com um estalo tremendo... Ambos arquejavamos. Era um salão forrado de um panno verde que comia a luz escassa. E eu estendia o braço, para receber dos carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros, as nossas mantas--quando, em silencio, sem um apito, o trem despegou e rolou.

Ambos nos atiramos ás vidraças, em brados furiosos: --Pare! As nossas malas, as nossas mantas!... P'ra aqui!... Oh Grillo!

Oh Grillo!

Uma immensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacintho ergueu os punhos, n'um furor que o engasgava: --Oh! Que serviço! Oh que canalhas!... Só em Hespanha!... E agora? As malas perdidas!... Nem uma camisa, nem uma escova!

Calmei o meu desgraçado amigo: --Escuta! eu entrevi dous carregadores arrebanhando as nossas cousas...

Decerto o Grillo fiscalisou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com tudo para o seu compartimento... Foi um erro não trazer o Grillo comnosco, no salão... Até podiamos jogar a manilha!

De resto a sollicitude da Companhia, Deusa omnipresente, velava sobre o nosso conforto--pois que á porta do lavatorio branquejava o cesto da nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com estas doces palavras a lapis--á D. Jacintho y su egregio amigo, que les dè gusto!

Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranquillidade nos penetrou no coração sentindo tambem as nossas malas sob a tutella da Deusa omnipresente.

--Tens fome Jacintho?

--Não. Tenho horror, furor, rancor!... E tenho somno.

Com effeito! depois de tão desencontradas emoções só appeteciamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando cahi sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Principe, que não se despira, apenas embrulhára os pés no meu paletot, nosso unico agasalho, resonava com magestade.

Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um bonet, que murmuravam baixinho com immensa doçura: --V. exc.^as não têem nada a declarar?... Não ha malinhas de mão?...

Era a minha terra! Murmurei baixinho com immensa ternura: --Não temos aqui nada... Pergunte v. exc.^a pelo Grillo... Ahi atraz, n'um compartimento... Elle tem as chaves, tem tudo... É o Grillo.

A fardeta desappareceu, sem rumor, como sombra benefica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicencia, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, de certo já preparava o leitão.

Acordei envolto n'um largo e doce silencio. Era uma Estação muito socegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes--e outras rosas em moitas, n'um jardim, onde um tanquesinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flôr que rescendiam. Um moço pallido, de paletot côr de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente á grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado seccavam aboboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam agoados.

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