Capítulo 6 - Parte 2
Theatrophone, pousado sobre uma mesa entre flôres, e chamou Jacintho: --Em communicação com o Alcazar?... O Theatrophone?
--Certamente, meu senhor.
Excellente! Muito chic! Elle ficára com pena de não ouvir a Gilberte n'uma cançoneta nova, as Casquettes. Onze e meia! Era justamente a essa hora que ella cantava, no ultimo acto da Revista
Electrica...--Collou ás orelhas os dous «receptores» do Theatrophone, e quedou embebido, com uma ruga séria na testa dura. De repente, n'um commando forte: --É ella! Chut! Venham ouvir!... É ella! Venham todos! Princeza de
Carman, para aqui! Todos! É ella! Chut...
Então, como Jacintho installára prodigamente dois Theatrophones, cada um provido de doze fios, as senhoras, todos aquelles cavalheiros, se apressaram a acercar submissamente um receptor do ouvido, e a permanecer immoveis para saborear Les Casquettes. E no salão côr de rosa murcha, na nave da Bibliotheca, onde se espalhára um silencio augusto, só eu fiquei desligado do Theatrophone, com as mãos nas algibeiras e ocioso.
No relogio monumental, que marcava a hora de todas as Capitaes e o movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a mudez e a immobilidade pensativa d'aquelles dorsos, d'aquelles decotes, a Electricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada orelha attenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa.
Dornan, esbroado sobre a mesa, cerrára as palpebras, n'uma meditação de monge obeso. O historiador dos Duques d'Anjou, com o «receptor» na ponta delicada dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria um dever palaciano. Madame d'Oriol sorria, toda languida, como se o fio lhe murmurasse doçuras. Para desentorpecer arrisquei um passo timido.
Mas cahiu logo sobre mim um chut severo do Gran-Duque! Recuei para entre as cortinas da janella, a abrigar a minha ociosidade. O Philologo da Couraça, distante da mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia o beiço, n'um esforço de penetração. A beatitude de S. Alteza, enterrado n'uma vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o collo de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o meu pobre Jacintho, n'uma applicação conscienciosa, pendia sobre o Theatrophone tão tristemente como sobre uma sepultura.
Então, ante aquelles seres de superior civilisação, sorvendo n'um silencio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo do solo de Paris, atravez de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos canos das fezes,--pensei na minha aldeia adormecida. O crescente de lua, que, seguido d'uma estrellinha, corria entre nuvens sobre os telhados e as chaminés negras dos Campos-Elyseos, tambem andava lá fugindo, mais lustrosa e mais dôce, por cima dos pinheiraes. As rãs coaxavam ao longe no Pego da Dona. A ermidinha de S. Joaquim branquejava no cabeço, nuasinha e candida...
Uma das senhoras murmurou: --Mas, não é a Gilberte!...
E um dos homens: --Parece um cornetim...
--Agora são palmas...
--Não, é o Paulin!
O Gran-Duque lançou um chut feroz... No pateo da nossa casa ladravam os cães. D'além do ribeiro respondiam os cães do João Saranda. Como me encontrei descendo por uma quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao hombro? E sentia, entre a sêda das cortinas, n'um fino ar macio, o cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos curraes atravez das sebes altas, e o susurro dormente das levadas...
Despertei a um brado que não sahia nem dos eidos, nem das sombras. Era o
Gran-Duque que se erguera, encolhia furiosamente os hombros: --Não se ouve nada!... Só guinchos! E um zumbido! Que massada!... Pois é uma belleza, a cançoneta:
Oh les casquettes,
Oh les casque-e-e-tes!...
Todos largaram os fios--proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo bemdito, abrindo largamente os dous batentes, annunciou: --Monseigneur est servi!
Na mesa, que pelo esplendor das orchideas mereceu os louvores ruidosos de S. Alteza, fiquei entre o ethereo poeta Dornan e aquelle moço de pennugem loura que balouçava como uma espiga ao vento. Depois de desdobrar o guardanapo, de o accomodar regaladamente sobre os joelhos,
Dornan desenvencilhou da corrente do relogio uma enorme luneta para percorrer o menu--que approvou. E inclinando para mim a sua face de
Apostolo obeso: --Este Porto de 1834, aqui era casa do Jacintho, deve ser authentico...
Hein?
Assegurei ao Mestre dos Rythmos que o «Porto» envelhecêra nas adegas classicas do avô Galião. Elle afastou, n'uma preparação methodica, os longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a bocca grossa. Os escudeiros serviram um consommé frio com trufas. E o moço côr de milho, que espalhára pela mesa o seu olhar azul e dôce, murmurou, com uma desconsolação risonha: --Que pena!... Só falta aqui um general e um bispo!
Com effeito! Todas as Classes Dominantes comiam n'esse momento as trufas do meu Jacintho... Mas defronte Madame d'Oriol lançára um riso mais cantado que um gorgeio. O Gran-Duque, n'uma silva de orchideas que orlava o seu talher, notára uma, sombriamente horrenda, semelhante a um lacrau esverdinhado, de azas lustrosas, gordo e tumido de veneno: e muito delicadamente offertára a flôr monstruosa a Madame d'Oriol, que, com trinado riso, solemnemente, a collocou no seio. Collado áquella carne macia, d'uma brancura de nata fina, o lacrau inchára, mais verde, com as azas frementes. Todos os olhos se accendiam, se cravavam no lindo peito, a que a flôr disforme, de côr venenosa, apimentava o sabor. Ella reluzia, triumphava. Para ageitar melhor a orchidea os seus dedos alargaram o decote, aclararam bellezas, guiando aquellas curiosidades flammejantes que a despiam. A face vincada de Jacintho pendia para o prato vasio. E o alto lyrico do Crepusculo Mystico, passando a mão pelas barbas, rosnou com desdem: --Bella mulher... Mas ancas seccas, e aposto que não tem nadegas!
No emtanto o moço de loura pennugem voltára á sua estranha mágoa. Não possuirmos um general com a sua espada, e um bispo com seu baculo!...
--Para que, meu caro senhor?
Elle atirou um gesto suave em que todos os seus anneis faiscaram: --Para uma bomba de dynamite... Temos aqui um explendido ramalhete de flôres de Civilisacão, com um Gran-Duque no meio. Imagine uma bomba de dynamite, atirada da porta!... Que bello fim de ceia, n'um fim de seculo!
E como eu o considerava assombrado, elle, bebendo golos de
Chateau-Yquem, declarou que hoje a unica emoção, verdadeiramente fina, seria aniquillar a Civilisação. Nem a sciencia, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real ás nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extrahíra de crear estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!
Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros.
Mas eu não attendia o gentil pedante, colhido por outro cuidado--reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacára como no conto do Palacio Petrificado. E o prato agora devido era o peixe famoso da Dalmacia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!
Jacintho, nervoso, esmagava entre os dedos uma flôr. E todos os escudeiros sumidos!
Felizmente o Gran-Duque contava a historia d'uma caçada, nas coutadas de
Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro, saltára bruscamente do cavallo, n'um descampado, sem arvores. Elle e todos os caçadores param--e a galante senhora, livida, com a amazona arregaçada, corre para traz d'uma pedra... Mas nunca soubemos em que se occupava a banqueira, n'esse descampado, agachada atraz da pedra--porque justamente o mordomo appareceu, relusente de suor, e balbuciou uma confidencia a Jacintho, que mordeu o beiço, trespassado. O Gran-Duque emmudecera. Todos se entre-olhavam, n'uma anciedade alegre. Então o meu Principe, com paciencia, com heroicidade, forçando pallidamente o sorriso: --Meus amigos, ha uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira: --Fogo?
Não, não era fogo. Fôra o elevador dos pratos, que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjára, e não se movia, encalhado!
O Gran-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto: --Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E porque o não trouxeram á mão, simplesmente? Encalhado... Quero vêr! Onde é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os hombros, ante esta esmagadora colera de Principe.
Jacintho seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S. Alteza. E eu não me contive, tambem me atirei para a copa, a contemplar o desastre, emquanto Dornan, batendo na côxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Gran-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde mergulhára uma vela que lhe avermelhava mais a face esbraseada.
Espreitei, por sobre o seu hombro real. Em baixo, na treva, sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda fumegando, entre rodellas de limão. Jacintho, branco como a gravata, torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o
Gran-Duque que, com os pulsos cabelludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos em que elle rolava. Debalde! O apparelho enrijára n'uma inercia de bronze eterno.
Sêdas roçagaram á entrada da copa. Era Madame d'Oriol, e atraz Madame
Verghane, com os olhos a faiscar, na curiosidade d'aquelle lance em que o Principe soltára tanta paixão. Marizac, nosso intimo, surgiu tambem, risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o
Psychologo, que se abeirou, psychologou, attribuindo intenções sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Gran-Duque, escarlate, mostrava com dedo tragico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos afundavam a face, murmuravam: «lá está!» Todelle, na sua precipitação, quasi se despenhou. O periquito descendente de Colygny batia as azas, ganindo:--«Que cheiro elle deita, que delicia!» Na copa atulhada os decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó d'arroz metteu o pé n'um balde de gelo, com um berro ferino. E o
Historiador dos Duques d'Anjou movia por cima de todos o seu nariz bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma idéa!
--É muito simples...