Capítulo 6
É pescar o peixe!
O Gran-Duque bateu na côxa uma palmada triumphal. Está claro! Pescar o peixe! E no gozo d'aquella facecia, tão rara e tão nova, toda a sua colera se sumíra, de novo se tornára o Principe amavel, de magnifica polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir á pesca miraculosa! Elle mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho.
Immediatamente Madame d'Oriol, excitada, offereceu um dos seus ganchos.
Apinhados em volta d'ella, sentindo o seu perfume, o calor da sua pelle, todos exaltamos a amoravel dedicação. E o Psychologo proclamou que nunca se pescára com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um cordel, já o Gran-Duque, radiante, vergára o gancho em anzol. Jacintho, com uma paciencia livida, erguia uma lampada sobre a escuridão do poço fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o director do
Boulevard, o Conde de Treves, o homem de cabeça á Van-Dick, sorriam, amontoados á porta, n'um interesse reverente pela phantasia de S.
Alteza. Madame de Treves, essa, examinava serenamente, com a sua nobre luneta, a installação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço encovado, no tedio sombrio de fera a quem arrancaram a posta.
No emtanto S. Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo, sem presa, bamboleando na extremidade da guita frouxa, não fisgava.
--Oh Jacintho, erga essa luz! gritava elle, inchado e suado. Mais!...
Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o gancho o póde prender.
Agora... Qual! Que diabo! Não vae!
Tirou a face do poço, resfolgando e affrontado. Não era possivel! Só carpinteiros, com alavancas!... E todos, anciosamente, bradamos que se abandonasse o peixe!
O Principe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim «fôra mais divertido pescal-o do que comêl-o!» E o elegante bando refluiu sofregamente para a mesa, ao som d'uma valsa de Strauss, que os Tziganes arremeçaram em arcadas de languido ardôr. Só Madame de Treves se demorou ainda, retendo o meu pobre Jacintho, para lhe assegurar quanto admirava o arranjo da sua copa... Oh perfeita! Que comprehensão da vida, que fina intelligencia do conforto!
S. Alteza, encalmado pelo esforço, esvasiou poderosamente dous copos de
Chateau-Lagrange. Todos o acclamavam como um pescador genial. E os escudeiros serviram o Barão de Pauillac, cordeiro das lezirias marinhas, que, preparado com ritos quasi sagrados, toma este grande nome sonoro e entra no Nobiliario de França.
Eu comi com o appetite d'um heroe de Homero. Sobre o meu copo e o de
Dornan o Champagne scintillou e jorrou ininterrompidamente como uma fonte de inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se derretiam na bocca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime a «Santa Clara». E como, do outro lado, o moço de pennugem loura insistia pela destruição do velho mundo, tambem concordei, e, sorvendo o
Champagne coalhado em sorvete, maldissemos o Seculo, a Civilisação, todos os orgulhos da Sciencia! Através das flôres e das luzes, no emtanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane, que ria como uma bacchante. E nem me apiedava de Jacintho que, com a doçura de S. Jacintho sobre o cêpo, esperava o fim do seu martyrio e da sua festa.
Ella findou. Ainda recordo, ás tres horas da noite, o Gran-Duque na antecamara, muito vermelho, mal firme nos pés pequeninos, sem acertar com as mangas da pelissa que Jacintho e eu lhe ajudamos a enfiar--convidando o meu amigo, n'uma effusão carinhosa, a ir caçar ás suas terras da Dalmacia...
--Devo ao meu Jacintho uma bella pesca, quero que elle me deva uma bella caçada!
E emquanto o acompanhavamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta escada onde o mordomo o precedia erguendo um candelabro de tres lumes,
S. Alteza repisava, pegajoso: --Uma bella caçada... E tambem vae Fernandes! Bom Fernandes, Zé
Fernandes! Ceia superior, meu Jacintho! O Barão de Pauillac, divino!... Creio que o devemos nomear Duque... O Senhor Duque de
Pauillac! Mais um bocado da perna do Senhor Duque de Pauillac. Ah!
Ah!... Não venham fóra! Não se constipem!
E do fundo do coupé, ao rodar, ainda bradou: --O peixe, Jacintho, desencalha o peixe! Excellente, ao almoço, frio, com môlho verde!
Trepando cançadamente os degraus, n'uma molleza de Champagne e somno em que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Principe: --Foi divertido, Jacintho! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o elevador...
E Jacintho, n'um som cavo que era bocejo e rugido: --Uma massada! E tudo falha!
* * * * *
Tres dias depois d'esta festa no 202 recebeu o meu Principe inesperadamente, de Portugal, uma nova consideravel. Sobre a sua quinta e solar de Tormes, por toda a serra, passára uma tormenta devastadora de vento, corisco e agua. Com as grossas chuvas, «ou por outras causas que os peritos dirão» (como exclamava na sua carta angustiada o procurador
Silverio), um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o valle da Carriça, desabára, arrastando a velha egreja, uma egrejinha rustica do seculo XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacintho desde os tempos de el-rei D. Manoel. Os ossos veneraveis d'esses Jacinthos jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silverio já começára com os moços da quinta a desatulhar dos «preciosos restos». Mas esperava anciosamente as ordens de sua exc.^a...
Jacintho empallidecêra, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente ruia! Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro fundo de valle! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma historia, confundidas n'um lixo de ruina!
--Coisa estranha, coisa estranha!...
E toda a noite me interrogou ácerca da serra e de Tormes, que eu conhecia desde pequeno, por que o velho solar, com a sua nobre alameda de faias seculares, se erguia a duas legoas da nossa casa, no antigo caminho de Guiães á estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom
Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha:--e muitas vezes, depois da minha intimidade com Jacintho, eu entrára no robusto casarão de granito, e avaliára o grão espalhado pelas salas sonoras, e provára o vinho novo nas adegas immensas...
--E a egreja, Zé Fernandes?... Entraste na egreja?
--Nunca... Mas era pittoresca, com uma torresinha quadrada, toda negra, onde ha muitos annos vivia uma familia de cegonhas... Terrivel transtorno para as cegonhas!
--Coisa estranha! murmurava ainda o meu Principe, agourado.
E telegraphou ao Silverio que desatulhasse o valle, recolhesse as ossadas, reedificasse a Egreja, e, para esta obra de piedade e reverencia, gastasse o dinheiro, sem contar, como a agua d'um rio largo.