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Vénus de Vison

por Leopold von Sacher-Masoch

Venus im Pelz - Parte 1

PrefĂĄcio

A presente narrativa faz parte de um ciclo maior de novelas, inacabado pelo poeta, "O Legado de Caim", que, segundo Sacher-Masoch, "deveria ser uma história natural rica em imagens do ser humano". O conjunto seria dividido em seis partes, cada uma com seis novelas, sob os títulos principais de "O Amor", "A Propriedade", "O Dinheiro", "O Estado", "A Guerra" e "A Morte". Sacher-Masoch estabeleceu, portanto, um objetivo ambicioso: descrever, nessas narrativas planejadas, todo o sofrimento e o destino humano em suas mais diversas possibilidades e formas de expressão, e, na novela final de cada parte, apresentar a resposta e a solução para a questão central.

Da obra completa, apenas as duas primeiras partes, "O Amor" e "A Propriedade", foram concluĂ­das. Das restantes, existem apenas fragmentos. "Venus im Pelz" Ă© a quinta novela do ciclo "O Amor".

O poeta descreve aqui as experiĂȘncias de um idealista e sonhador, cujo destino infeliz o leva ao cĂ­rculo de influĂȘncia de uma mulher cruel e desalmada.

Na época em que Sacher-Masoch escreveu esta sua novela mais famosa, estava profundamente influenciado pelo pessimismo schopenhaueriano. Quanto às suas circunstùncias de vida, é importante notar que ele era, então, professor privado (Privatdozent) habilitado na Universidade de Graz.

Logo apĂłs o lançamento de "Venus im Pelz", os leitores se dividiram em dois grupos. Alguns a rejeitaram pela ousadia inĂ©dita das descriçÔes e se sentiram repelidos pelo tema. Outros, por outro lado, especialmente os maiores nomes da ciĂȘncia e da literatura alemĂŁs, reconheceram imediatamente que ali estava um *document humain* Ășnico, que tambĂ©m testemunhava o gĂȘnio incomum do autor.

Em rĂĄpida sucessĂŁo, surgiram outras obras, cada uma delas de grande valor.

Tanto maior foi a surpresa e a decepção dos amigos do poeta quando, de repente, produtos extremamente superficiais e, em parte, diretamente inferiores de sua pena começaram a aparecer no mercado. Surpresos e desanimados, perguntavam-se como era possĂ­vel que um poeta que havia atingido a excelĂȘncia pudesse arruinar sua prĂłpria reputação dessa maneira. ApĂłs a morte de Sacher-Masoch, esse enigma foi resolvido. A necessidade, a mais amarga das necessidades externas, o forçou a violentar o deus dentro de si mesmo, a fim de garantir o sustento para si e para os seus a qualquer custo. Naquela Ă©poca, surgiram as tĂŁo mencionadas "Messalinas de Viena", "Falso Arminho", etc. Curiosamente, esses trabalhos superficiais tiveram um sucesso inesperado com o pĂșblico, que nĂŁo precisava pensar, mas se sentia estranhamente excitado pela peculiar mistura de perfume de estĂĄbulo e *boudoir* que emanava deles.

Assim, Sacher-Masoch foi rebaixado aos olhos de muitos a um escritor superficial e frĂ­volo, e infelizmente nĂŁo poderia ser de outra forma, pois o mundo sempre julga pelos resultados, mas nĂŁo pelos motivos.

Mesmo no final de sua vida, quando o poeta voltou a se dedicar a tarefas grandes e significativas, nĂŁo conseguiu apagar as antigas e dolorosas lembranças. E — Ă© triste dizer — o grande pĂșblico tambĂ©m nĂŁo queria mais nada de substancial dele, mas exigia diretamente produtos de qualidade inferior.

Apenas uma comunidade relativamente pequena de verdadeiros admiradores permaneceu fiel a ele permanentemente, aqueles que sabiam apreciar o imortal que ele havia criado em todo o seu valor e, apesar de suas falhas posteriores, nunca duvidaram do mestre genial.

Para atender aos desejos destes — jĂĄ que as ediçÔes mais antigas estĂŁo completamente esgotadas —, decidimos lançar algumas de suas melhores obras em novas ediçÔes, entre elas, as novelas "O Amor de PlatĂŁo" e "Venus im Pelz".

Embora essas duas obras pertençam à literatura há mais de 50 anos e sejam apreciadas em todas as histórias da literatura, não lhes foi poupado — e especialmente a "Venus im Pelz" — serem recentemente questionadas pelas autoridades policiais e promotorias sob diversos pretextos.

Deve-se reconhecer, no entanto, que o conhecimento da literatura e a fantasia nĂŁo podem ser esperados de ĂłrgĂŁos policiais e de ĂłrgĂŁos da acusação pĂșblica. Ambos nĂŁo pertencem Ă  sua alçada.

As consequĂȘncias dessas reclamaçÔes nĂŁo tardaram a surgir. Em geral, "PlatĂŁo" e "Venus im Pelz" foram devolvidos ao trĂĄfego pĂșblico pelas autoridades policiais e promotorias sem mais delongas, como obras poĂ©ticas e de arte nĂŁo sujeitas a objeçÔes. No entanto, ocasionalmente acontecia que a "VĂȘnus" se tornava objeto de um processo judicial. Os resultados deste, invariavelmente, terminavam com uma derrota da promotoria.

O mundo dos escritores alemĂŁes nĂŁo esperava nada diferente. Quando se tornou conhecido que uma intervenção contra a "Venus im Pelz" estava em andamento, houve um abalar de cabeça perplexo em todos os lugares. Em uma falange fechada, os luminares da literatura alemĂŁ defenderam regularmente a preservação da obra e, com eles, os homens da ciĂȘncia.

Assim, por exemplo, por ocasiĂŁo de um desses processos, o Conselheiro MĂ©dico Secreto Professor Dr. Albert Eulenberger, em Berlim, declarou: "A 'Venus im Pelz' possui um valor inestimĂĄvel e Ă© um *unicum* na literatura alemĂŁ. Assim como nĂŁo pode ser dispensada nesta, a ciĂȘncia tambĂ©m nĂŁo pode prescindir dela".

Quando o Conselheiro Secreto da Corte Professor Dr. Koester, em Leipzig, foi convidado pelas promotorias de Dresden para emitir um parecer sobre a "Venus im Pelz", ele também chegou ao resultado de que a obra pertence à literatura e que não é apropriado retirå-la da fileira dos vivos.

Acreditamos que as informaçÔes fornecidas devam ser interessantes para mais de um leitor e em mais de um aspecto.

A Editora

Eu tinha uma companhia adorĂĄvel.

À minha frente, na lareira maciça do Renascimento, estava VĂȘnus, mas nĂŁo uma dama do meio mundo que, sob esse nome, travava guerra contra o sexo hostil, como Mademoiselle CleĂłpatra, mas a verdadeira deusa do amor.

[Ilustração]

Ela estava sentada na poltrona e havia acendido um fogo crepitante, cujo reflexo lambia seu rosto pĂĄlido, com os olhos brancos em chamas vermelhas e, de tempos em tempos, seus pĂ©s, quando ela tentava aquecĂȘ-los.

Sua cabeça era maravilhosa, apesar dos olhos de pedra morta, mas isso era tudo que eu via dela. A Nobre havia embrulhado seu corpo de mårmore em um grande casaco de pele e se enrolado, tremendo, como um gato.

— Não entendo, senhora — exclamei —, não está mais frio. Temos a mais bela primavera há duas semanas. A senhora está obviamente nervosa.

— Agradeço a sua primavera — disse ela com uma voz profunda de pedra e espirrou logo em seguida, celestialmente, e duas vezes rapidamente em sucessão; — Eu realmente não aguento e começo a entender...

— O quĂȘ, minha senhora?

— Começo a acreditar no inacreditĂĄvel, a compreender o incompreensĂ­vel. De repente, entendo a virtude feminina germĂąnica e a filosofia alemĂŁ, e tambĂ©m nĂŁo me surpreende mais que vocĂȘs, no norte, nĂŁo consigam amar, nem mesmo ter uma ideia do que Ă© o amor.

— Permita-me, *Madame* — respondi impetuosamente —, eu realmente não lhe dei nenhum motivo.

— Bem, vocĂȘ... — A Divina espirrou pela terceira vez e encolheu os ombros com uma graça inimitĂĄvel — Por isso, sempre fui gentil com vocĂȘ e atĂ© o visito de tempos em tempos, embora eu sempre pegue um resfriado rapidamente, apesar de minhas muitas peles. Lembra-se de como nos conhecemos pela primeira vez?

— Como poderia esquecer? — disse eu — A senhora tinha ricos cachos castanhos e olhos castanhos e uma boca vermelha, mas eu a reconheci imediatamente pelo corte do seu rosto e por essa palidez de mármore... A senhora sempre usava uma jaqueta de veludo azul violeta guarnecida com pele de fuinha.

— Sim, a senhora era completamente apaixonado por essa roupa, e como era obediente!

— A senhora me ensinou o que Ă© o amor. O seu serviço divino alegre me fez esquecer dois milĂȘnios.

— E como eu era incomparavelmente fiel à senhora!

— Bem, no que diz respeito à fidelidade...

— Ingrato!

— NĂŁo quero fazer acusaçÔes Ă  senhora. A senhora Ă© uma mulher divina, mas ainda assim uma mulher, e no amor cruel como toda mulher.

— A senhora chama de cruel — respondeu a deusa do amor vivamente — o que Ă© precisamente o elemento da sensualidade, do amor alegre, a natureza da mulher, entregar-se onde ama e amar tudo o que agrada.

— Existe para o amante alguma crueldade maior do que a infidelidade da amada?

— Ah! — respondeu ela — somos fiĂ©is enquanto amamos, mas vocĂȘs exigem da mulher fidelidade sem amor e devoção sem prazer. Quem Ă© cruel, a mulher ou o homem? VocĂȘs, no norte, levam o amor muito a sĂ©rio e com muita importĂąncia. VocĂȘs falam de deveres, onde sĂł deveria se falar de prazer.

— Sim, *Madame*, nĂłs tambĂ©m temos sentimentos muito respeitĂĄveis e virtuosos e relaçÔes duradouras para isso.

— E ainda esse desejo eternamente ativo, eternamente insaciĂĄvel pelo paganismo nu — interrompeu *Madame* —, mas aquele amor que Ă© a maior alegria, a prĂłpria alegria divina, nĂŁo serve para vocĂȘs modernos, vocĂȘs filhos da reflexĂŁo. Traz infortĂșnio para vocĂȘs. Assim que vocĂȘs querem ser naturais, vocĂȘs se tornam vulgares. A natureza aparece para vocĂȘs como algo hostil. VocĂȘs transformaram nĂłs, deuses sorridentes da GrĂ©cia, em demĂŽnios, a mim em uma demĂŽnia. VocĂȘs sĂł podem me banir e amaldiçoar ou se sacrificar em loucura bacante diante do meu altar, e uma vez que um de vocĂȘs teve a coragem de beijar minha boca vermelha, ele peregrina descalço em camisa de penitente para Roma e espera flores do galho seco, enquanto sob o meu pĂ© rosas, violetas e murtas brotam a cada hora, mas o cheiro delas nĂŁo lhes agrada; permaneçam apenas na sua nĂ©voa nĂłrdica e incenso cristĂŁo; deixem nĂłs, pagĂŁos, descansarmos sob os escombros, sob a lava, nĂŁo nos desenterrem. Pompeia nĂŁo foi construĂ­da para vocĂȘs, nem nossas vilas, nossos banhos, nossos templos. VocĂȘs nĂŁo precisam de deuses! Sentimos frio no seu mundo!

A bela dama de mĂĄrmore tossiu e puxou as peles escuras de zibelina em volta de seus ombros ainda mais firmemente.

— Agradecemos a lição clĂĄssica — respondi —, mas a senhora nĂŁo pode negar que homem e mulher, tanto no seu mundo ensolarado e alegre quanto no nosso nebuloso, sĂŁo inimigos por natureza, que o amor une por um curto perĂ­odo de tempo em um Ășnico ser, que sĂł Ă© capaz de um pensamento, um sentimento, uma vontade, para entĂŁo separĂĄ-los ainda mais, e — bem, a senhora sabe melhor do que eu — quem nĂŁo sabe subjugar, sentirĂĄ muito rapidamente o pĂ© do outro em seu pescoço...

— E geralmente o homem sente o pĂ© da mulher — exclamou Frau Venus com desdĂ©m arrogante —, o que a senhora sabe melhor do que eu.

— Certamente, e Ă© por isso que nĂŁo tenho ilusĂ”es.

— Isso significa que agora vocĂȘ Ă© meu escravo sem ilusĂ”es, e eu o pisarei sem piedade por isso.

— *Madame*!

— A senhora ainda nĂŁo me conhece? Sim, eu sou cruel — jĂĄ que vocĂȘ sente tanto prazer com a palavra — e nĂŁo tenho razĂŁo para sĂȘ-lo? O homem Ă© o desejante, a mulher o desejado. Esta Ă© toda a vantagem, mas decisiva, da mulher. A natureza entregou a ela o homem atravĂ©s de sua paixĂŁo, e a mulher que nĂŁo sabe fazer dele seu sĂșdito, seu escravo, sim, seu brinquedo, e no final traĂ­-lo rindo, nĂŁo Ă© sĂĄbia.

— Seus princípios, minha senhora — interrompi indignado.

— Baseiam-se em milhares de anos de experiĂȘncia — respondeu *Madame* sarcasticamente, enquanto seus dedos brancos brincavam na pele escura —, quanto mais a mulher se mostra dedicada, mais rĂĄpido o homem ficarĂĄ sĂłbrio e autoritĂĄrio; mas quanto mais cruel e infiel ela for, quanto mais ela o maltratar, quanto mais irreverente ela brincar com ele, quanto menos piedade ela mostrar, mais ela despertarĂĄ a luxĂșria do homem, de ser amado, adorado por ele. Assim tem sido em todos os tempos, desde Helena e Dalila, atĂ© a segunda Catarina e Lola Montez.

— NĂŁo posso negar — disse eu —, nĂŁo hĂĄ nada que possa excitar mais o homem do que a imagem de uma dĂ©spota bela, voluptuosa e cruel, que muda seus favoritos de forma arrogante e implacĂĄvel...

— E ainda por cima usa um casaco de pele — exclamou a deusa.

— Como chegou a essa conclusão?

— Eu conheço a sua preferĂȘncia.

— Mas a senhora sabe — interrompi — que a senhora se tornou muito coquete desde que não nos vemos.

— Em que sentido, se me permite perguntar?

— Na medida em que não poderia haver uma folha mais gloriosa para seu corpo branco do que essas peles escuras e para a senhora...

A deusa riu.

— VocĂȘ estĂĄ sonhando — exclamou ela —, acorde! E ela me agarrou pelo braço com sua mĂŁo de mĂĄrmore — Acorde! Sua voz trovejou novamente no tom mais profundo do peito. Eu abri os olhos com dificuldade.

[Ilustração]

Eu vi a mão que me sacudia, mas essa mão de repente estava marrom como bronze, e a voz era a voz pesada de aguardente do meu cossaco, que estava de pé na minha frente em toda a sua altura de quase seis pés.

— Levante-se — continuou o valente —, Ă© uma verdadeira vergonha.

— E por que uma vergonha?

— Uma vergonha adormecer vestido e ainda por cima com um livro — ele apagou as velas queimadas e pegou o volume que havia escapado da minha mĂŁo —, com um livro de... — ele abriu a capa — de Hegel... E alĂ©m disso, Ă© a hora certa de ir atĂ© Herr Severin, que estĂĄ nos esperando para o chĂĄ.

* * *

— Um sonho estranho — disse Severin, quando terminei. Apoiou os braços nos joelhos, o rosto nas mãos finas e de veias delicadas e mergulhou em reflexão.

Eu sabia que ele nĂŁo se moveria por muito tempo agora, nem mesmo respiraria, e assim foi de fato, mas para mim seu comportamento nĂŁo tinha nada de surpreendente, pois eu estava em boa amizade com ele hĂĄ quase trĂȘs anos e me acostumara a todas as suas peculiaridades. Pois peculiar ele era, isso nĂŁo se podia negar, mesmo que nĂŁo fosse de longe o tolo perigoso que nĂŁo sĂł sua vizinhança, mas todo o cĂ­rculo de Kolomea o considerava. Para mim, seu ser nĂŁo era apenas interessante, mas — e Ă© por isso que muitos me consideravam um pouco apaixonado — altamente simpĂĄtico.

Ele mostrava, para um nobre e proprietĂĄrio de terras galego, bem como para sua idade — ele mal tinha trinta anos —, uma sobriedade notĂĄvel de ser, uma certa seriedade, atĂ© mesmo pedantismo. Ele vivia de acordo com um sistema minuciosamente executado, meio filosĂłfico, meio prĂĄtico, como que de acordo com o relĂłgio, e nĂŁo sĂł isso, ao mesmo tempo de acordo com o termĂŽmetro, barĂŽmetro, aerĂŽmetro, hidrĂŽmetro, HipĂłcrates, Hufeland, PlatĂŁo, Kant, Knigge e Lord Chesterfield; mas Ă s vezes ele tinha fortes ataques de paixĂŁo, onde fazia menção de atravessar a parede com a cabeça, e todos gostavam de sair do seu caminho.

Enquanto ele permanecia em silĂȘncio, o fogo na lareira cantava, o grande e venerĂĄvel samovar cantava, e a cadeira ancestral, na qual eu, balançando-me, fumava meu charuto, e o grilo na velha alvenaria tambĂ©m cantava, e eu deixei meu olhar vagar sobre os dispositivos peculiares, os esqueletos de animais, pĂĄssaros empalhados, globos, moldes de gesso amontoados em seu quarto, atĂ© que ele casualmente parou em uma imagem que eu tinha visto vezes suficientes, mas que hoje, no brilho vermelho do fogo da lareira, causou uma impressĂŁo indescritĂ­vel.

Era uma grande pintura a Ăłleo na maneira forte e rica em cores da escola belga, seu assunto estranho o suficiente.

Uma bela mulher, um sorriso ensolarado em seu rosto fino, com cabelos ricos amarrados em um nó antigo, sobre o qual o pó branco repousava como uma leve geada, descansava, apoiada no braço esquerdo, nua em um casaco de pele escuro em uma otomana; sua mão direita brincava com um chicote, enquanto seu pé descalço se apoiava descuidadamente sobre o homem que estava deitado diante dela como um escravo, como um cão, e este homem, com os traços afiados, mas bem formados, sobre os quais repousava uma melancolia incubada e uma paixão dedicada, que olhava para ela com o olho ardente e sonhador de um mårtir, este homem, que formava o escabelo de seus pés, era Severin, mas sem barba, como se fosse dez anos mais jovem.

— Venus im Pelz! — exclamei, apontando para a imagem — Foi assim que eu a vi no sonho.

— Eu tambĂ©m — disse Severin —, sĂł que eu sonhei meu sonho de olhos abertos.

— Como?

— Ah! essa Ă© uma histĂłria tola.

— Sua imagem obviamente deu origem ao meu sonho — continuei —, mas me diga finalmente o que hĂĄ com isso, que desempenhou um papel em sua vida, e talvez um papel muito decisivo, posso imaginar, mas o resto espero de vocĂȘ.

— Veja a contraparte — respondeu meu estranho amigo, sem responder à minha pergunta.

A contraparte era uma excelente cĂłpia da conhecida "VĂȘnus com o Espelho" de Ticiano na Galeria de Dresden.

— Bem, o que vocĂȘ quer com isso?

Severin levantou-se e apontou o dedo para o casaco de pele com o qual Ticiano vestiu sua deusa do amor.

— Aqui tambĂ©m 'Venus im Pelz' — disse ele sorrindo finamente — Eu nĂŁo acho que o velho veneziano tenha conectado uma intenção com isso. Ele simplesmente fez o retrato de alguma Messalina nobre e teve a gentileza de fazer Amor segurar o espelho no qual ela examina seus encantos majestosos com prazer frio, para quem o trabalho parece estar se tornando difĂ­cil o suficiente. A imagem Ă© um elogio pintado. Mais tarde, algum 'conhecedor' da era rococĂł batizou a dama com o nome de VĂȘnus, e o casaco de pele da dĂ©spota, no qual o belo modelo de Ticiano provavelmente se envolveu mais por medo do resfriado do que por castidade, tornou-se um sĂ­mbolo da tirania e crueldade que reside na mulher e em sua beleza.

Mas chega, como a imagem estĂĄ agora, ela nos aparece como a sĂĄtira mais picante sobre nosso amor. VĂȘnus, que no norte abstrato, no mundo cristĂŁo gelado, deve usar um grande casaco de pele pesado para nĂŁo pegar um resfriado.

Severin riu e acendeu um novo cigarro.

Naquele momento, a porta se abriu e uma loira bonita e cheia, com olhos inteligentes e amigĂĄveis, em um vestido de seda preto, entrou e nos trouxe carne fria e ovos para o chĂĄ. Severin pegou um dos Ășltimos e o abriu com a faca.

— Eu nĂŁo lhe disse que eu os quero cozidos moles? — exclamou ele com uma violĂȘncia que fez a jovem mulher tremer.

— Mas, querido Sewtschu... — disse ela ansiosamente.

— O que Sewtschu — gritou ele —, vocĂȘ deve obedecer, obedecer, entende? — E ele arrancou o *kantschuk*[1], que estava pendurado ao lado de suas armas, do prego.

A linda mulher fugiu como uma corça rapidamente e com medo do cÎmodo.

— Espere, eu ainda vou te pegar — gritou ele atrás dela.

— Mas Severin — disse eu, colocando minha mĂŁo em seu braço —, como vocĂȘ pode tratar a linda pequena mulher assim!

— Olhe para a mulher — respondeu ele, piscando os olhos humoristicamente —, se eu a tivesse elogiado, ela teria jogado a corda em volta do meu pescoço, mas assim, porque eu a educo com o *kantschuk*, ela me adora.

— Vá embora!

— VĂĄ vocĂȘ embora, Ă© assim que se treina as mulheres.

— Viva como um paxĂĄ em seu harĂ©m, se quiser, mas nĂŁo me apresente teorias...

— Por que nĂŁo? — exclamou ele vivamente —, em nenhum lugar o 'VocĂȘ deve ser martelo ou bigorna' de Goethe se encaixa tĂŁo perfeitamente quanto na relação entre homem e mulher. Isso a Sra. VĂȘnus em seu sonho tambĂ©m admitiu a vocĂȘ de passagem. Na paixĂŁo do homem reside o poder da mulher, e ela sabe usĂĄ-lo se o homem nĂŁo tomar cuidado. Ele sĂł tem a escolha de ser o tirano ou o escravo da mulher. Assim que ele se entrega, ele jĂĄ tem a cabeça no jugo e sentirĂĄ o chicote.

— Máximas estranhas!

— NĂŁo mĂĄximas, mas experiĂȘncias — respondeu ele acenando com a cabeça —, Eu fui chicoteado a sĂ©rio, eu estou curado, quer ler como?

Ele se levantou e pegou uma pequena escrita manuscrita em sua mesa maciça, que ele colocou na mesa na minha frente.

— VocĂȘ perguntou antes sobre aquela imagem. Eu jĂĄ lhe devo uma explicação hĂĄ muito tempo. Aqui — leia!

Severin sentou-se na lareira, de costas para mim, e parecia estar sonhando de olhos abertos. Novamente ficou em silĂȘncio, e novamente o fogo na lareira cantou e o samovar e o grilo na velha alvenaria, e eu abri a escrita manuscrita e li:

ConfissÔes de um Suprassensível, nas bordas do manuscrito estavam os versos conhecidos de Fausto variados como lema:

VocĂȘ, cortejador suprassensĂ­vel sensual,

Uma mulher o engana!

MefistĂłfeles.

Eu virei a folha de título e li: "O seguinte eu compilei do meu diårio da época, porque nunca se pode representar seu passado de forma imparcial, mas assim tudo tem suas cores frescas, as cores do presente."

* * *

Gogol, o MoliĂšre russo, diz... Sim, onde? Bem, em algum lugar... "A verdadeira musa cĂŽmica Ă© aquela da qual lĂĄgrimas escorrem sob a larva sorridente."

Uma expressĂŁo maravilhosa!

Assim me sinto muito estranho enquanto escrevo isso. O ar me parece cheio de um perfume floral excitante que me entorpece e me då dor de cabeça, a fumaça da lareira se ondula e se junta para mim em figuras, pequenos duendes de barba grisalha, que apontam o dedo zombeteiramente para mim, pequenos Amoretten de bochechas rechonchudas cavalgam nas costas da minha cadeira e nos meus joelhos, e eu devo involuntariamente sorrir, até rir alto, enquanto escrevo minhas aventuras, e ainda assim eu não escrevo com tinta comum, mas com o sangue vermelho que escorre do meu coração, pois todas as suas feridas cicatrizadas hå muito tempo se abriram e ele se contrai e dói, e aqui e ali uma lågrima cai no papel.

* * *

Os dias se arrastam preguiçosamente no pequeno balneĂĄrio dos CĂĄrpatos. NĂŁo se vĂȘ ninguĂ©m e nĂŁo se Ă© visto por ninguĂ©m. É enfadonho escrever idĂ­lios. Eu teria tempo livre aqui para fornecer uma galeria de pinturas, um teatro para uma temporada inteira com novas peças, uma dĂșzia de virtuosos com concertos, trios e duos, mas... o que estou dizendo? No final eu nĂŁo faço muito mais do que estender a tela, alisar os arcos, traçar as folhas de notas, pois eu sou... ah! apenas sem falsa vergonha, amigo Severin, minta para os outros; mas vocĂȘ nĂŁo consegue mais enganar a si mesmo... entĂŁo eu nĂŁo sou nada mais do que um diletante; um diletante na pintura, na poesia, na mĂșsica e ainda em algumas outras daquelas chamadas artes nĂŁo rentĂĄveis, que hoje em dia garantem a seus mestres a renda de um ministro, atĂ© mesmo de um pequeno potentado, e acima de tudo eu sou um diletante na vida.

Eu vivi até agora como pintei e escrevi poemas, ou seja, eu nunca fui muito além da base, do plano, do primeiro ato, da primeira estrofe. Existem pessoas assim, que começam tudo e nunca terminam nada, e eu sou uma dessas pessoas.

Mas o que estou dizendo?

Ao ponto.

Estou deitado na minha janela e acho o ninho no qual eu desespero realmente infinitamente poĂ©tico. Que vista da parede alta azul da montanha, tecida por um perfume dourado de sol, atravĂ©s da qual torrentes se enroscam como fitas de prata, e como o cĂ©u estĂĄ claro e azul, no qual as cĂșpulas nevadas se elevam, e como estĂŁo verdes e frescos as encostas arborizadas, os prados, nos quais pequenos rebanhos pastam, atĂ© as ondas amarelas do grĂŁo, nas quais os ceifeiros estĂŁo de pĂ© e se curvam e submergem novamente.

A casa na qual eu moro estå em uma espécie de parque, ou floresta, ou deserto, como se queira chamar, e é muito solitåria.

NinguĂ©m mora nela alĂ©m de mim, uma viĂșva de Lwow[2], a dona de casa *Madame* Tartakowska, uma pequena velha que fica mais velha e menor a cada dia, um velho cĂŁo que manca em uma perna e uma jovem gata que estĂĄ sempre brincando com um novelo de linha, e o novelo de linha pertence, eu acredito, Ă  bela viĂșva.

Ela deve ser realmente bonita, a viĂșva, e ainda muito jovem, no mĂĄximo vinte e quatro, e muito rica. Ela mora no primeiro andar e eu moro no tĂ©rreo. Ela sempre mantĂ©m as persianas verdes fechadas e tem uma varanda que estĂĄ completamente coberta com plantas trepadeiras verdes; mas eu tenho em troca lĂĄ embaixo meu amado e aconchegante caramanchĂŁo de madressilva, no qual eu leio e escrevo e pinto e canto, como um pĂĄssaro nos galhos. Eu posso olhar para cima para a varanda. Às vezes eu realmente olho para cima e entĂŁo um vestido branco brilha de tempos em tempos entre a densa rede verde.

Na verdade, a bela mulher lĂĄ em cima me interessa muito pouco, pois eu estou apaixonado por outra e, na verdade, apaixonado de forma extremamente infeliz, ainda mais infeliz do que o Cavaleiro Toggenburg e o Chevalier em Manon l’Escault, pois minha amada Ă© de pedra.

No jardim, no pequeno deserto, hĂĄ um pequeno prado gracioso, no qual alguns cervos mansos pastam pacificamente. Neste prado estĂĄ uma imagem de VĂȘnus de pedra, o original, eu acredito, estĂĄ em Florença; esta VĂȘnus Ă© a mulher mais bonita que eu jĂĄ vi na minha vida.

[Ilustração]

Isso certamente não significa muito, pois eu vi poucas mulheres bonitas, sim, poucas mulheres em geral, e também sou apenas um diletante no amor, que nunca foi além da base, do primeiro ato.

Para que também falar em superlativos, como se algo que é bonito ainda pudesse ser superado.

Chega, esta VĂȘnus Ă© bonita e eu a amo, tĂŁo apaixonadamente, tĂŁo mĂłrbida e intimamente, tĂŁo loucamente, como sĂł se pode amar uma mulher que retribui nosso amor com um sorriso de pedra eternamente igual, eternamente calmo. Sim, eu a adoro formalmente.

Frequentemente eu fico deitado, quando o sol choca na mata, sob o dossel de folhas de um jovem faia e leio, frequentemente eu também visito minha fria e cruel amada à noite e então fico de joelhos diante dela, o rosto pressionado contra as pedras frias, sobre as quais seus pés descansam, e rezo para ela.

É indescritível, quando então a lua sobe — ela está justamente crescendo — e flutua entre as árvores e mergulha o prado em um brilho prateado, e a deusa então fica como transfigurada e parece estar se banhando em sua luz suave.

Uma vez, quando eu retornava da minha devoção, através de uma das alamedas que levam à casa, eu vi de repente, apenas separado de mim pela galeria verde, uma figura feminina, branca como pedra, banhada pela luz da lua; então me pareceu como se a bela mulher de mårmore tivesse se compadecido de mim e tivesse se tornado viva e me tivesse seguido... mas fui tomado por um medo indescritível, meu coração ameaçou pular para fora, e em vez de...

Bem, eu sou um diletante. Eu fiquei, como sempre, preso no segundo verso, nĂŁo, pelo contrĂĄrio, eu nĂŁo fiquei preso, eu corri, o mais rĂĄpido que eu pude.

* * *

Que coincidĂȘncia! um judeu que com Photograph

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