Vénus de Casaco de Pele - Parte 2
â EstĂĄs a ficar cada vez mais indecente! â exclamou ela, soltando-se e fugindo rapidamente em direção Ă casa, enquanto o seu adorĂĄvel chinelo permanecia na minha mĂŁo. Seria isto um pressĂĄgio?
* * *
Não me atrevi a aproximar-me dela durante todo o dia. Ao entardecer, enquanto estava sentado no meu mirante, vi de repente a sua cabeça ruiva e provocadora a espreitar por entre os ramos verdes da varanda.
â Por que nĂŁo vens cĂĄ? â gritou ela, impacientemente.
Subi as escadas a correr, mas em cima perdi novamente a coragem e bati muito suavemente Ă porta. Ela nĂŁo disse para entrar, mas abriu-a e apareceu no limiar.
â Onde estĂĄ o meu chinelo?
â EstĂĄ... eu tenho... eu quero... â gaguejei.
â Vai buscĂĄ-lo e depois tomamos chĂĄ juntos e conversamos.
Quando regressei, ela estava ocupada com a måquina de chå. Coloquei o chinelo solenemente sobre a mesa e fiquei num canto, como uma criança à espera do seu castigo.
Notei que ela tinha a testa um pouco franzida e que havia algo de severo e autoritĂĄrio Ă volta da sua boca, o que me encantou.
De repente, ela desatou a rir.
â EntĂŁo... estĂĄs mesmo apaixonado... por mim?
â Sim, e sofro mais com isso do que imaginas.
â Sofres? â ela riu novamente.
Fiquei indignado, envergonhado, aniquilado, mas tudo completamente desnecessĂĄrio.
â PorquĂȘ? â continuou ela â, eu sou boa para ti, genuinamente boa. â Deu-me a mĂŁo e olhou para mim com extrema simpatia.
â E queres que eu seja tua esposa?
Wanda olhou para mim... sim, como Ă© que ela olhou para mim?... creio que, acima de tudo, espantada e depois um pouco trocista.
â De onde te vem tanta coragem de repente? â disse ela.
â Coragem?
â Sim, a coragem de sequer querer casar com uma mulher, e especialmente comigo? â Ela ergueu o chinelo. â Fizeste amizade tĂŁo rapidamente com isto? Mas, brincadeiras Ă parte. Queres mesmo casar comigo?
â Sim.
â Bem, Severin, isso Ă© uma histĂłria sĂ©ria. Acredito que me amas e eu tambĂ©m te amo, e, o que Ă© ainda melhor, interessamo-nos um pelo outro, nĂŁo hĂĄ perigo de nos aborrecermos tĂŁo cedo, mas sabes, sou uma mulher leviana e, precisamente por isso, levo o casamento muito a sĂ©rio, e se assumo deveres, quero tambĂ©m ser capaz de os cumprir. Mas temo... nĂŁo... isto vai magoar-te.
â Peço-te que sejas honesta comigo â respondi.
â EntĂŁo, falando honestamente. NĂŁo creio que consiga amar um homem por mais tempo... do que... â ela inclinou a cabeça graciosamente para o lado e ponderou.
â Um ano.
â Onde Ă© que estĂĄs a pensar... talvez um mĂȘs.
â Nem mesmo a ti?
â Bem, a ti... talvez dois.
â Dois meses! â exclamei eu.
â Dois meses, isso Ă© muito tempo.
â Madame, isso Ă© mais do que antigo.
â VĂȘs, nĂŁo suportas a verdade.
Wanda percorreu o quarto, encostou-se então à lareira e observou-me, com os braços apoiados na cornija.
â EntĂŁo, o que hei de fazer contigo? â começou ela novamente.
â O que quiseres â respondi, resignado â, o que te der prazer.
â Que inconsistente! â exclamou ela â, primeiro queres-me como esposa e depois entregas-te a mim como um brinquedo.
â Wanda... amo-te.
â LĂĄ estamos nĂłs de novo, onde começåmos. Tu amas-me e queres-me como esposa, mas eu nĂŁo quero um novo casamento, porque duvido da duração dos meus e dos teus sentimentos.
â Mas se eu quiser arriscar contigo? â repliquei.
â EntĂŁo, ainda depende de se eu quero arriscar contigo â disse ela calmamente â, imagino perfeitamente pertencer a um homem para a vida, mas teria de ser um homem completo, um homem que me impressionasse, que me subjugasse pela força do seu ser, entendes? E todo o homem... eu sei disso... torna-se, assim que estĂĄ apaixonado... fraco, maleĂĄvel, ridĂculo, entrega-se nas mĂŁos da mulher, ajoelha-se diante dela, enquanto eu sĂł poderia amar permanentemente aquele diante de quem me ajoelharia. Mas tu tornaste-te tĂŁo querido para mim que quero tentar contigo.
Atirei-me aos seus pés.
â Meu Deus! JĂĄ estĂĄs de joelhos â disse ela, trocista â, estĂĄs a começar bem â e quando me levantei novamente, continuou: â Dou-te um ano para me conquistares, para me convenceres de que somos adequados um para o outro, de que podemos viver juntos. Se conseguires isto, entĂŁo serei tua esposa e entĂŁo, Severin, uma esposa que cumprirĂĄ os seus deveres rigorosa e conscienciosamente. Durante este ano, viveremos como num casamento...
O sangue subiu-me à cabeça.
Os olhos dela também brilharam de repente.
â Viveremos juntos â continuou ela â, partilharemos todos os nossos hĂĄbitos, para ver se nos encontramos um no outro. Concedo-te todos os direitos de um marido, de um adorador, de um amigo. EstĂĄs satisfeito com isso?
â Tenho de estar.
â NĂŁo tens de estar.
â EntĂŁo eu quero...
â Excelente. Assim fala um homem. Aqui tens a minha mĂŁo.
* * *
HĂĄ dez dias que nĂŁo passo uma hora sem ela, exceto as noites. Podia olhar continuamente nos seus olhos, segurar as suas mĂŁos, ouvir as suas palavras, acompanhĂĄ-la para todo o lado.
O meu amor parece-me um abismo profundo e insondĂĄvel, no qual me afundo cada vez mais, do qual jĂĄ nada me pode salvar.
HavĂamos-nos deitado hoje Ă tarde no prado, aos pĂ©s da estĂĄtua de VĂ©nus. Eu apanhava flores e atirava-as para o seu colo e ela fazia coroas com elas, com as quais adornĂĄvamos a nossa deusa.
De repente, Wanda olhou para mim de forma tĂŁo peculiar, tĂŁo confusa para os sentidos, que a minha paixĂŁo se abateu sobre mim como chamas. JĂĄ nĂŁo me controlando, abracei-a e agarrei-me aos seus lĂĄbios e ela... ela apertou-me contra o seu peito ondulante.
â EstĂĄs zangada? â perguntei entĂŁo.
â Nunca fico zangada com algo que Ă© natural... â respondeu ela â, temo apenas que estejas a sofrer.
â Oh, sofro terrivelmente.
â Pobre amigo â ela afastou-me o cabelo desgrenhado da testa â, espero, no entanto, que nĂŁo seja por minha culpa.
â NĂŁo... â respondi eu... â, e, no entanto, o meu amor por ti tornou-se uma espĂ©cie de loucura. A ideia de que te posso perder, sim, talvez deva mesmo perder-te, atormenta-me dia e noite.
â Mas ainda nem sequer me possuis â disse Wanda e olhou para mim novamente com aquele olhar vibrante, hĂșmido e consumidor, que jĂĄ me tinha arrebatado uma vez. Depois, levantou-se e colocou com as suas pequenas mĂŁos transparentes uma coroa de anĂ©monas azuis sobre a cabeça de caracĂłis brancos de VĂ©nus. Quase contra a minha vontade, passei o braço Ă volta da sua cintura.
â JĂĄ nĂŁo posso viver sem ti, mulher bela â disse eu â, acredita-me, apenas desta vez acredita-me, nĂŁo Ă© uma frase, nĂŁo Ă© uma fantasia, sinto profundamente no meu Ăntimo como a minha vida estĂĄ ligada Ă tua; se te separares de mim, definharei, perecerei.
â Mas isso nem sequer serĂĄ necessĂĄrio, pois eu amo-te, homem â ela pegou-me no queixo â, homem tolo!
â Mas sĂł queres ser minha sob condiçÔes, enquanto eu te pertenço incondicionalmente...
â Isso nĂŁo Ă© bom, Severin â respondeu ela, quase assustada â, ainda nĂŁo me conheces, nĂŁo queres mesmo conhecer-me? Sou boa, quando me tratam com seriedade e sensatez, mas quando se entregam demasiado a mim, torno-me presunçosa...
â Que seja entĂŁo, sĂȘ presunçosa, sĂȘ despĂłtica â exclamei em plena exaltação â, apenas sĂȘ minha, sĂȘ minha para sempre. â Estava aos seus pĂ©s e abraçava os seus joelhos.
â Isto nĂŁo vai acabar bem, meu amigo â disse ela seriamente, sem se mexer.
â Oh! Que nunca tenha fim â exclamei excitado, sim, veementemente â, sĂł a morte nos separarĂĄ. Se nĂŁo podes ser minha, completamente minha e para sempre, entĂŁo quero ser teu escravo, servir-te, suportar tudo de ti, apenas nĂŁo me afastes de ti.
â Controla-te â disse ela, inclinou-se para mim e beijou-me na testa. â Sou genuinamente boa para ti, mas esse nĂŁo Ă© o caminho para me conquistares, para me manteres.
â Quero fazer tudo, tudo o que quiseres, apenas nunca te perder â exclamei eu â, apenas isso nĂŁo, jĂĄ nĂŁo consigo conceber essa ideia.
â Levanta-te.
Obedeci.
â Ăs realmente uma pessoa estranha â continuou Wanda â, queres, portanto, possuir-me a todo o custo?
â Sim, a todo o custo.
â Mas que valor teria, por exemplo, a minha posse para ti? â Ela ponderou, o seu olhar tornou-se um pouco Ă espreita, sinistro â se eu jĂĄ nĂŁo te amasse, se pertencesse a outro? -
Um arrepio percorreu-me o corpo. Olhei para ela, ela estava tĂŁo firme e autoconfiante Ă minha frente, e o seu olhar mostrava um brilho frio.
â VĂȘs â continuou ela â, assustas-te com a ideia. â Um sorriso adorĂĄvel iluminou de repente o seu rosto.
â Sim, sou tomado por um horror, quando imagino vividamente que uma mulher que eu amo, que retribuiu o meu amor, se entrega sem piedade a outro; mas terei entĂŁo ainda uma escolha? Se eu amo esta mulher, loucamente amo, devo orgulhosamente virar-lhe as costas e perecer com a minha força jactanciosa, devo dar um tiro na cabeça? Tenho dois ideais de mulher. Se eu nĂŁo consigo encontrar a minha mulher nobre, ensolarada, uma mulher que partilha fiel e bondosamente o meu destino, entĂŁo nada de meio termo ou morno! EntĂŁo prefiro estar entregue a uma mulher sem virtude, sem fidelidade, sem piedade. Uma tal mulher na sua grandeza egoĂsta Ă© tambĂ©m um ideal. Se nĂŁo posso desfrutar da felicidade do amor plena e completamente, entĂŁo quero saborear as suas dores, os seus tormentos atĂ© ao fim; entĂŁo quero ser maltratado, traĂdo pela mulher que amo, e quanto mais cruel, melhor. Isso tambĂ©m Ă© um prazer!
â EstĂĄs no teu perfeito juĂzo! â exclamou Wanda.
â Amo-te tanto com toda a minha alma â continuei eu â, tanto com todos os meus sentidos, que a tua proximidade, a tua atmosfera me sĂŁo indispensĂĄveis, se eu ainda quiser viver. Escolhe, portanto, entre os meus ideais. Faz de mim o que quiseres, o teu marido ou o teu escravo.
â Bem, entĂŁo â disse Wanda, franzindo as pequenas mas energicamente arqueadas sobrancelhas â, acho muito divertido ter um homem que me interessa, que me ama, tĂŁo completamente na minha mĂŁo; pelo menos nĂŁo me faltarĂĄ entretenimento. Foste tĂŁo descuidado em deixar-me a escolha. Escolho, portanto, quero que sejas meu escravo, farei de ti o meu brinquedo!
â Oh! Faz isso â exclamei eu meio arrepiado, meio encantado â, se um casamento sĂł pode ser fundado na igualdade, na concordĂąncia, entĂŁo as maiores paixĂ”es surgem, em contrapartida, atravĂ©s de contrastes. NĂłs somos tais contrastes, que se opĂ”em quase hostilmente, daĂ este amor em mim, que Ă© em parte Ăłdio, em parte medo. Numa tal relação, porĂ©m, sĂł pode haver um martelo, o outro bigorna. Eu quero ser bigorna. NĂŁo posso ser feliz, se desprezar a amada. Quero poder adorar uma mulher, e sĂł o posso fazer, quando ela Ă© cruel para comigo.
â Mas, Severin â respondeu Wanda quase zangada â, consideras-me, portanto, capaz de maltratar um homem, que me ama tanto como tu, que eu amo?
â Por que nĂŁo, se eu te adorar ainda mais por isso? SĂł se pode amar verdadeiramente o que estĂĄ acima de nĂłs, uma mulher, que nos subjuga atravĂ©s da beleza, do temperamento, do espĂrito, da força de vontade, que se torna a nossa dĂ©spota.
â EntĂŁo, o que repele os outros, atrai-te?
â Ă assim. Ă precisamente a minha estranheza.
â Bem, no fim, nĂŁo hĂĄ nada de tĂŁo extraordinĂĄrio ou estranho em todas as tuas paixĂ”es, pois quem Ă© que nĂŁo gosta de um belo casaco de pele? E todos sabem e sentem como a luxĂșria e a crueldade estĂŁo intimamente relacionadas.
â Em mim, porĂ©m, tudo isto Ă© elevado ao mais alto grau â respondi eu.
â Isso significa que a razĂŁo tem pouco poder sobre ti, e que Ă©s uma natureza mole, entregue e sensual.
â Os mĂĄrtires tambĂ©m eram naturezas moles e sensuais?
â Os mĂĄrtires?
â Pelo contrĂĄrio, eram pessoas suprassensĂveis, que encontravam um prazer no sofrimento, que procuravam as torturas mais terrĂveis, sim, a morte, como outros procuram a alegria, e eu sou um tal suprassensĂvel, Madame.
â Tem apenas cuidado para que, ao fazeres isso, nĂŁo te tornes tambĂ©m um mĂĄrtir do amor, um mĂĄrtir de uma mulher.
* * *
Estamos sentados na pequena varanda de Wanda na noite de verĂŁo amena e perfumada, um telhado duplo sobre nĂłs, primeiro o plafon verde de plantas trepadeiras, depois o cĂ©u coberto de inĂșmeras estrelas. Do parque ecoa o tom de chamada suave, choroso e apaixonado de um gato, e eu estou sentado num banquinho aos pĂ©s da minha deusa e conto-lhe sobre a minha infĂąncia.
â E jĂĄ nessa altura todas estas estranhezas estavam vincadas em ti? â perguntou Wanda.
â Com certeza, nĂŁo me lembro de uma Ă©poca em que nĂŁo as tivesse. Sim, jĂĄ no berço, assim me contou a minha mĂŁe mais tarde, eu era suprassensĂvel, desprezava o seio saudĂĄvel da ama, e tinham de me alimentar com leite de cabra. Quando era um rapazinho, mostrava uma timidez enigmĂĄtica perante as mulheres, na qual se expressava, na verdade, apenas um interesse sinistro por elas. A abĂłbada cinzenta, a penumbra de uma igreja angustiavam-me, e perante os altares cintilantes e as imagens de santos era tomado por um medo formal. Em contrapartida, esgueirava-me secretamente, como para uma alegria proibida, atĂ© uma VĂ©nus de gesso, que estava na pequena sala da biblioteca do meu pai, ajoelhava-me e dizia-lhe as oraçÔes que me tinham ensinado, o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo.
Uma vez saà da minha cama à noite para a visitar, o quarto crescente iluminava-me e fazia a deusa aparecer numa luz fria e azul pålida. Atirei-me diante dela, beijei os seus pés frios, como tinha visto os nossos camponeses fazerem, quando beijavam os pés do Salvador morto.
Um anseio invencĂvel apoderou-se de mim.
Subi e abracei o belo corpo frio e beijei os låbios frios, então um profundo arrepio desceu sobre mim e eu fugi, e no sonho pareceu-me que a deusa estava diante da minha cama e me ameaçava com o braço erguido.
Mandaram-me cedo para a escola e assim cheguei rapidamente ao liceu e agarrei-me com paixĂŁo a tudo o que prometia desvendar-me o mundo antigo. Depressa fiquei mais familiarizado com os deuses da GrĂ©cia do que com a religiĂŁo de Jesus, dei com PĂĄris a VĂ©nus a maçã fatĂdica, vi Troia a arder e segui Ulisses nas suas viagens errantes. Os arquĂ©tipos de tudo o que Ă© belo penetraram profundamente na minha alma, e assim mostrei, naquela Ă©poca em que outros rapazes se comportavam de forma rude e indecente, uma aversĂŁo invencĂvel a tudo o que Ă© baixo, vulgar, feio.
No entanto, como algo de particularmente baixo e feio apareceu ao jovem amadurecido o amor pela mulher, tal como ele se mostrou primeiro na sua plena vulgaridade. Evitava qualquer contacto com o belo sexo, em suma, eu era suprassensĂvel atĂ© Ă loucura.
A minha mĂŁe arranjou... eu tinha na altura cerca de catorze anos... uma adorĂĄvel empregada domĂ©stica, jovem, bonita, com formas exuberantes. Uma manhĂŁ, eu estava a estudar o meu TĂĄcito e a entusiasmar-me com as virtudes dos antigos germanos, a pequena estava a limpar o meu quarto; de repente, parou, inclinou-se, com a vassoura na mĂŁo, para mim, e dois lĂĄbios cheios, frescos e deliciosos tocaram os meus. O beijo da pequena gata apaixonada trespassou-me, mas eu ergo a minha âGermĂąniaâ como um escudo contra a sedutora e saĂ indignado do quarto."
Wanda desatou a rir alto.
â Ăs, de facto, um homem que procura o seu semelhante, mas continua.
â Outra cena dessa Ă©poca permanece inesquecĂvel para mim â continuei eu â, a condessa Sobol, uma tia distante minha, veio visitar os meus pais, uma mulher majestosa e bonita com um sorriso adorĂĄvel; mas eu odiava-a, pois ela era considerada na famĂlia como uma Messalina, e comportava-me de forma tĂŁo indelicada, maliciosa e desajeitada quanto possĂvel para com ela.
Um dia, os meus pais foram Ă cidade do distrito. A minha tia decidiu aproveitar a sua ausĂȘncia e julgar-me. Inesperadamente, entrou na sua Kazabaika[3] forrada a pele, seguida pela cozinheira, pela criada de cozinha e pela pequena gata, que eu tinha desprezado. Sem perguntar muito, agarraram-me e amarraram-me, apesar da minha forte resistĂȘncia, pelas mĂŁos e pelos pĂ©s. Depois, a minha tia arregaçou a manga com um sorriso malicioso e começou a bater-me com uma vara grande, e bateu tĂŁo bem que o sangue correu e eu, por fim, apesar da minha bravura, gritei e chorei e pedi misericĂłrdia. Ela mandou entĂŁo desamarrar-me, mas eu tive de lhe agradecer de joelhos pelo castigo e beijar-lhe a mĂŁo.
Agora vejam o tolo suprassensĂvel! Sob a vara da bela e exuberante mulher, que me apareceu no seu casaco de pele como uma monarca zangada, despertou primeiro em mim o sentido da mulher e a minha tia apareceu-me a partir de entĂŁo como a mulher mais adorĂĄvel na terra de Deus.
A minha severidade catoniana, a minha timidez perante a mulher nĂŁo eram, portanto, nada mais do que um sentido de beleza elevado ao mais alto grau; a sensualidade tornou-se agora na minha fantasia uma espĂ©cie de cultura, e eu jurei a mim mesmo nĂŁo desperdiçar as suas sagradas emoçÔes num ser vulgar, mas sim guardĂĄ-las para uma mulher ideal, se possĂvel para a prĂłpria deusa do amor.
Cheguei muito jovem Ă universidade e Ă capital, onde a minha tia morava. O meu quarto assemelhava-se entĂŁo ao do doutor Fausto. Tudo estava nele confuso e complicado, armĂĄrios altos cheios de livros, que eu comprava por preços irrisĂłrios a um antiquĂĄrio judeu na Servanica[4], globos, atlas, frascos, mapas celestes, esqueletos de animais, caveiras, bustos de grandes espĂritos. AtrĂĄs do grande fogĂŁo verde, MefistĂłfeles podia aparecer a qualquer momento como um escolĂĄstico itinerante.
Estudava tudo misturado, sem sistema, sem escolha, quĂmica, alquimia, histĂłria, astronomia, filosofia, direito, anatomia e literatura; lia Homero, VirgĂlio, Ossian, Schiller, Goethe, Shakespeare, Cervantes, Voltaire, MoliĂšre, o CorĂŁo, o Cosmos, as memĂłrias de Casanova. Tornava-me cada dia mais confuso, fantĂĄstico e suprassensĂvel. E tinha sempre uma bela mulher ideal na cabeça, que de vez em quando me aparecia como uma visĂŁo, reclinada sobre rosas, rodeada de cupidos, entre as minhas encadernaçÔes de couro e ossos de mortos, ora em toilette olĂmpica, com o rosto branco e severo da VĂ©nus de gesso, ora com as tranças castanhas exuberantes, os olhos azuis risonhos e na Kazabaika de veludo vermelho com guarniçÔes de arminho da minha bela tia.
Uma manhĂŁ, depois de ela me ter surgido novamente em pleno encanto risonho da nĂ©voa dourada da minha fantasia, fui Ă condessa Sobol, que me recebeu amigavelmente, sim, cordialmente, e me deu como boas-vindas um beijo, que confundiu todos os meus sentidos. Ela tinha agora provavelmente perto de quarenta anos, mas como a maioria daquelas mulheres invencĂveis da vida, ainda desejĂĄvel, usava tambĂ©m agora sempre um casaco forrado a pele, e desta vez de veludo verde com marta nobre castanha, mas daquela severidade, que me tinha encantado entĂŁo nela, nĂŁo se encontrava nada.
Pelo contrĂĄrio, ela era tĂŁo pouco cruel para comigo, que me deu sem muitas circunstĂąncias a permissĂŁo para a adorar.
Tinha descoberto cedo demais a minha loucura suprassensĂvel e a minha inocĂȘncia, e dava-lhe prazer fazer-me feliz. E eu... eu estava, de facto, feliz como um jovem deus. Que prazer era para mim, quando, de joelhos diante dela, podia beijar as suas mĂŁos, com as quais ela me tinha castigado entĂŁo. Ah! Que mĂŁos maravilhosas! De uma formação tĂŁo bela, tĂŁo finas e cheias e brancas, e com covinhas tĂŁo adorĂĄveis. Na verdade, eu estava apenas apaixonado por estas mĂŁos. Brincava com elas, deixava-as emergir e submergir na pele escura, segurava-as contra a chama e nĂŁo me cansava de as ver."
Wanda observou involuntariamente as suas mĂŁos, eu notei e tive de sorrir.
â Como em todas as Ă©pocas o suprassensĂvel predominava em mim, vejam por isso que eu, na minha tia, sĂł estava apaixonado pelas varas cruĂ©is, que tinha recebido dela, e numa jovem atriz, a quem fiz corte durante cerca de dois anos mais tarde, apenas nos seus papĂ©is. Depois tambĂ©m me entusiasmei por uma mulher muito respeitĂĄvel, que representava a virtude inacessĂvel, para finalmente me trair a um judeu rico. Vejam, porque fui enganado, vendido por uma mulher, que fingia os princĂpios mais rigorosos, os sentimentos mais ideais: por isso odeio tanto esta espĂ©cie de virtudes poĂ©ticas, sentimentais; deem-me uma mulher, que seja honesta o suficiente para me dizer: eu sou uma Pompadour, uma LucrĂ©cia BĂłrgia, e eu quero adorĂĄ-la.
Wanda levantou-se e abriu a janela.
â Tens uma maneira peculiar de aquecer a fantasia, de excitar todos os nervos, de fazer todos os pulsos baterem mais depressa. DĂĄs ao vĂcio uma aurĂ©ola, quando ele Ă© honesto. O teu ideal Ă© uma cortesĂŁ audaciosa e genial; oh! Ăs o homem certo para corromper uma mulher desde a raiz!
* * *
No meio da noite, bateram Ă minha janela, levantei-me, abri e assustei-me. LĂĄ fora estava Wanda com pele, exatamente como ela me tinha aparecido da primeira vez.
â Excitaste-me com as tuas histĂłrias, revolvo-me na minha cama e nĂŁo consigo dormir â disse ela â, vem agora fazer-me companhia.
â Num instante.
Quando entrei, Wanda estava agachada diante da lareira, na qual tinha acendido um pequeno fogo.
â O outono anuncia-se â começou ela â, as noites jĂĄ estĂŁo bastante frias. Temo desagradar-te, mas nĂŁo posso tirar o meu casaco de pele, antes que o quarto esteja suficientemente quente.
â Desagradar... Brincadeira! Sabes bem... â passei o braço Ă volta dela e beijei-a.
â Claro que sei, mas de onde te vem esta grande predileção pela pele?
â Ă-me inata â respondi eu â, jĂĄ a mostrava quando era criança. AliĂĄs, o trabalho em pele exerce sobre todas as naturezas nervosas um efeito excitante, que se baseia em leis tĂŁo gerais como naturais. Ă um estĂmulo fĂsico, que Ă©, pelo menos, tĂŁo estranhamente picante, e do qual ninguĂ©m se pode subtrair completamente. A ciĂȘncia provou recentemente uma certa afinidade entre eletricidade e calor, em todo o caso, os seus efeitos sobre o organismo humano sĂŁo afins. A zona quente produz pessoas mais apaixonadas, uma atmosfera quente excitação. Exatamente como a eletricidade. DaĂ a influĂȘncia feiticeiramente benĂ©fica, que a companhia de gatos exerce sobre pessoas intelectuais irritĂĄveis e que fez destas graciosidades de cauda longa do mundo animal, destas baterias elĂ©tricas bonitas, cintilantes, os favoritos de um MaomĂ©, cardeal Richelieu, Crebillon, Rousseau, Wieland.
â Uma mulher que usa, portanto, um casaco de pele â exclamou Wanda â, nĂŁo Ă©, portanto, nada mais do que uma grande gata, uma bateria elĂ©trica amplificada?
â Com certeza â respondi eu â, e assim explico tambĂ©m o significado simbĂłlico, que a pele recebeu como atributo do poder e da beleza. Neste sentido, tomaram-na em tempos anteriores os monarcas e uma nobreza impositiva atravĂ©s de regulamentos de vestuĂĄrio exclusivamente para si e grandes pintores para as rainhas da beleza. Assim, um Rafael nĂŁo encontrou para as formas divinas da Fornarina, Ticiano para o corpo rosado da sua amada uma moldura mais deliciosa do que pele escura.
â Agradeço-te o tratado erudito erĂłtico â disse Wanda â, mas nĂŁo me disseste tudo, ainda associas algo de muito extraordinĂĄrio Ă pele.
â Na verdade â exclamei eu â, jĂĄ te disse repetidamente que no sofrimento reside um encanto estranho para mim, que nada Ă© tĂŁo capaz de atiçar a minha paixĂŁo como a tirania, a crueldade, e sobretudo a infidelidade de uma bela mulher. E esta mulher, este ideal estranho da estĂ©tica do feio, a alma de um Nero no corpo de uma FrinĂ©ia, nĂŁo a consigo imaginar sem pele.
â Compreendo â interrompeu Wanda â, dĂĄ a uma mulher algo de autoritĂĄrio, imponente.
â NĂŁo Ă© sĂł isso â continuei eu â, sabes que eu sou um suprassensĂvel, que em mim tudo tem mais raĂzes na fantasia e de lĂĄ recebe o seu alimento. Fui desenvolvido e sobreexcitado cedo, quando, com dez anos de idade, tive em mĂŁos as lendas dos mĂĄrtires; lembro-me de que li com um horror, que na verdade era deleite, como eles definhavam na prisĂŁo, colocados na grelha, atravessados com flechas, cozidos em pez, atirados a animais selvagens, pregados na cruz, e sofriam o mais terrĂvel com uma espĂ©cie de alegria. Sofrer, suportar tormentos cruĂ©is, apareceu-me a partir de entĂŁo como um prazer, e muito especialmente atravĂ©s de uma bela mulher, pois em mim sempre toda a poesia, como tudo o que Ă© demonĂaco, se concentrou na mulher. Fiz com ela um culto formal.
Via na sensualidade algo de sagrado, sim, o Ășnico sagrado, na mulher e na sua beleza algo de divino, uma vez que a tarefa mais importante da existĂȘncia: a propagação da espĂ©cie Ă© sobretudo a sua vocação; via na mulher a personificação da natureza, a Ăsis, e no homem o seu sacerdote, o seu escravo e via-a em frente a ele cruel como a natureza, que, o que lhe serviu, rejeita, assim que jĂĄ nĂŁo precisa dele, enquanto que os seus maus tratos, sim, a morte atravĂ©s dela se tornam para ele a voluptuosa felicidade.
Invejava o rei Gunther, que a poderosa Brunilde amarrou na noite de nĂșpcias; o pobre trovador, que a sua caprichosa senhora mandou costurar em peles de lobo, para depois o caçar como um animal selvagem; invejava o cavaleiro Ctirad, que a audaciosa amazona Scharka capturou astutamente na floresta perto de Praga, arrastou para o castelo Divin, e depois de ela se ter divertido algum tempo com ele, mandou trançar na roda...
â AbominĂĄvel! â exclamou Wanda â, desejar-te-ia que caĂsses nas mĂŁos de uma mulher desta raça selvagem, na pele de lobo, sob os dentes dos cĂŁes ou na roda jĂĄ te passaria a poesia.
â Acreditas? Eu nĂŁo acredito.
â NĂŁo estĂĄs mesmo no teu perfeito juĂzo.
â Possivelmente. Mas ouve mais, li a partir de entĂŁo com uma verdadeira avidez histĂłrias, nas quais as crueldades mais terrĂveis sĂŁo descritas, e via com um prazer especial imagens, gravuras, nas quais elas eram representadas, e todos os tiranos sangrentos, que alguma vez se sentaram num trono, os inquisidores, que mandavam torturar, assar, massacrar os hereges, todas aquelas mulheres, que nos jornais da histĂłria mundial estĂŁo registadas como voluptuosas, bonitas e violentas, como Libussa, LucrĂ©cia BĂłrgia, Agnes da Hungria, rainha Margot, Isabel, a sultana Roxolane, as czares russas do sĂ©culo anterior, todas via em peles ou vestes guarnecidas de arminho.
â E assim a pele desperta agora as tuas fantasias estranhas â exclamou Wanda, e começou ao mesmo tempo a adornar-se coquetemente com o seu magnĂfico casaco de pele, de modo que as peles de zibelina escuras e brilhantes brincavam encantadoramente Ă volta do seu busto, dos seus braços. â Bem, como te sentes agora, jĂĄ te sentes meio esmagado na roda?
Os seus olhos verdes e penetrantes pousaram com um prazer estranho e zombeteiro sobre mim, enquanto eu me atirava diante dela dominado pelas paixÔes e passava os braços à volta dela.
â Sim... despertaste em mim a minha fantasia favorita â exclamei eu â, que dormiu durante tempo suficiente.
â E esta seria? â ela colocou a mĂŁo no meu pescoço.
Sob esta pequena mĂŁo quente, sob o seu olhar, que caĂa sobre mim terna e inquisitivamente atravĂ©s das pĂĄlpebras meio fechadas, uma doce embriaguez apoderou-se de mim.
â Ser o escravo de uma mulher, de uma bela mulher, que eu amo, que eu adoro!
â E que te maltrata por isso! â interrompeu-me Wanda a rir.
â Sim, que me amarra e açoita, que me dĂĄ pontapĂ©s, enquanto pertence a outro.
â E que, quando tu, enlouquecido pelo ciĂșme, enfrentas o feliz rival, no seu excesso de confiança vai tĂŁo longe, que te oferece a ele e te expĂ”e Ă sua brutalidade. Por que nĂŁo? Agrad-te menos o quadro final?
Olhei para Wanda assustado.
â Excedes os meus sonhos.
â Sim, nĂłs, mulheres, somos inventivas â disse ela â, tem cuidado, quando encontrares o teu ideal, pode facilmente acontecer que ele te trate mais cruelmente do que te agrada.
â Temo jĂĄ ter encontrado o meu ideal! â exclamei eu, e pressionei o meu rosto incandescente no seu colo.
â Mas nĂŁo em mim? â exclamou Wanda, atirou o casaco de pele e saltou a rir pelo quarto; ela ainda ria, quando eu desci as escadas, e quando eu estava pensativo no pĂĄtio, ainda ouvi em cima o seu riso caprichoso e desenfreado.
* * *
â Devo, portanto, corporizar para ti o teu ideal? â disse Wanda maliciosamente, quando nos encontrĂĄmos hoje no parque.
Inicialmente nĂŁo encontrei resposta. Em mim lutavam os sentimentos mais contraditĂłrios. Ela sentou-se entretanto num dos bancos de pedra e brincava com uma flor.
â Bem... devo?
Ajoelhei-me e peguei na sua