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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 2 - Parte 2

El señor D. Topsius, madrugador, já estava em baixo a almoçar pachorrentamente os seus ovos com presunto, a sua vasta caneca de cerveja. Eu tomei apenas um gole de café, no quarto, a um canto da commoda, em mangas de camisa, com os olhos vermelhos sob a nevoa das lagrimas. A minha solida mala de couro atravancava o corredor, fechada e afivelada; mas Alpedrinha estava ainda accommodando, á pressa, a roupa suja dentro do sacco de lona. E Maricoquinhas, sentada desoladamente á borda do leito, com o seu gentil chapéo enfeitado de papoulas e as olheirinhas pisadas--contemplava aquelle enfardelar de flanellas, como se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do sacco, para partirem e não voltarem mais!

--Levas tanta roupa suja, Theodorico!

Balbuciei, dilacerado: --Manda-se lavar em Jerusalem com a ajuda de Nosso Senhor!

Deitei os meus bentinhos ao pescoço. N'esse instante Topsius assomava á porta, cachimbando, com a barraca do seu guardasol fechada sob o braço, de galochas anchas para a humidade do tombadilho--e um volume da Biblia enchumaçando-lhe a rabona d'alpaca. Ao vêr-me sem collete, reprehendeu a minha amorosa preguiça.

--Mas comprehendo, bella dama, comprehendo! acudiu elle, ás cortezias a

Mary, esgrouviado e onduloso, d'oculos na ponta do bico. É doloroso deixar os braços de Cleopatra... Já Antonio por elles perdeu Roma e o mundo... Eu mesmo, todo absorvido na minha missão, com recantos crepusculares da Historia a alumiar, levo gratas memorias d'estes dias de Alexandria... Deliciosissimos os nossos passeios pelo Mamoudieh!...

Permitta-me que apanhe a sua luva, bella dama!... E se voltar jámais a esta terra dos Ptolomeus, não me esquecerá a rua das Duas irmãs...

«Miss Mary, luvas e flôres de cêra.» Perfeitamente. Consentirá que lhe mande, quando completa, a minha Historia dos Lagidas... Ha detalhes muito picantes... Quando Cleopatra se apaixonou por Herodes, o rei da

Judêa...

Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava, alvoroçado: --Cavalheiro! Ainda ha aqui roupa suja!

Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de rendas, com laços de sêda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma saudoso de violeta e d'amor... Ai! era a camisa de dormir da Mary, quente ainda dos meus abraços!

--Pertence á snr.^a D. Mary! É a tua camisinha, amor! gemi eu, cruzando os suspensorios.

A minha luveirinha ergueu-se, tremula, descórada--e teve um poetico rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-m'a para os braços, tão ardentemente, como se entre as dobras viesse tambem o seu coração.

--Dou-t'a, Theodorico! Leva-a, Theodorico! Ainda está amarrotada da nossa ternura!... Leva-a para dormires com ella ao teu lado, como se fosse commigo... Espera, espera ainda, amor! Quero pôr-lhe uma palavra, uma dedicatoria!

Correu á mesa, onde jaziam restos do papel sisudo em que eu escrevia á titi a historia edificativa dos meus jejuns em Alexandria, das noites consumidas a embeber-me do Evangelho... E eu, com a camisinha perfumada nos braços, sentindo duas bagas de pranto rolarem-me pelas barbas, procurava angustiosamente em redor onde guardar aquella preciosa reliquia d'amor. As malas estavam fechadas. O sacco de lona estalava, repleto.

Topsius, impaciente, tirára das profundezas do seio o seu relogio de prata. O nosso Lacedemonio, á porta, rosnava: --D. Theodorico, es tarde, es mui tarde...

Mas a minha bem-amada já sacudia o papel, coberto das letras que ella traçára, largas, impetuosas e francas como o seu amor: «Ao meu

Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que gozámos!» --Oh, riquinha! E onde hei de eu metter isto? Eu não hei de levar a camisa nos braços, assim núa e ao léo!

Já Alpedrinha, de joelhos, desafivelava desesperadamente o sacco. Então

Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel pardo, apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, commodo e gracioso--que eu metti debaixo do braço, apertando-o com avara, inflammada paixão.

Depois foi um murmurio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras...

--Mary, anjo querido!

--Theodorico, amor!...

--Escreve-me para Jerusalem...

--Lembra-te da tua bichaninha bonita...

Rolei pela escada, tonto. E a caleche que tantas vezes me passeára, enlaçado com Mary, por sob os arvoredos aromaticos do Mamoudieh--lá partiu, ao trote da parelha branca, arrancando-me a uma felicidade onde o meu coração deitára raizes, agora despedaçadas e gottejando sangue no silencio do meu peito. O douto Topsius, abarracado sob o seu guardasol verde, recomeçára, impassivel, a murmurar coisas de velha erudição.

Sabia eu por onde iamos rodando? Por sobre a nobre calçada dos

Sete-Stados, que o primeiro dos Lagidas construira para communicar com a ilha de Pharos, louvada nos versos de Homero! Nem o escutava, debruçado para traz, na caleche, agitando o lenço molhado da minha saudade. A dôce

Maricoquinhas, á porta do Hotel, ao lado d'Alpedrinha, linda sob o chapéo florido de papoulas, fazia esvoaçar tambem o seu lenço amoroso e acariciador: e um momento estas duas cambraias brancas sacudiram uma para a outra, no ar quente, o ardor dos nossos corações. Depois eu cahi sobre a almofada de chita como cae um corpo morto...

Apenas embarcado no Caimão, corri a esconder no beliche a minha dôr.

Topsius ainda me agarrou pela manga para me mostrar sitios das grandezas dos Ptolomeus, o porto do Eunotos, a enseada de marmore onde ancoravam as galeras de Cleopatra. Fugi; na escada esbarrei, quasi rolei sobre uma

Irmã da Caridade, que subia timidamente com as suas contas na mão.

Rosnei um «desculpe, minha santinha.» E tombando emfim no catre, deixei escapar o pranto á larga, por cima do embrulho de papel pardo: elle era tudo que me restava d'essa paixão de incomparavel esplendor, passada na terra do Egypto.

Dois dias e duas noites o Caimão arquejou e rolou nos vagalhões do mar de Tyro. Enrodilhado n'um cobertor, sem largar do peito o embrulhinho da

Mary, eu recusava com odio as bolachas que de vez em quando me trazia o humanissimo Topsius; e desattento ás coisas eruditas que elle imperturbavelmente me contava d'estas aguas chamadas pelos egypcios o

Grande Verde, rebuscava debalde na memoria bocados soltos de uma oração que ouvira á titi para amansar as vagas iradas.

Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a rosmaninho: e achei-me incomprehensivelmente a subir uma collina agreste de companhia com a Adelia, e com a minha loura Mary--que sahira de dentro do embrulho, fresca, nitida, sem ter sequer amarrotado as papoulas do seu chapéo! Depois, por traz d'um penedo, surgiu-nos um homem nú, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam, vermelhos como vidros redondos de lanternas; e com o rabo infindavel ia fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas seccas. Sem nos cortejar, impudentemente, poz-se a marchar ao nosso lado. Eu percebi bem que era o Diabo; mas não senti escrupulo, nem terror. A insaciavel Adelia atirava olhadellas obliquas á potencia dos seus musculos. Eu dizia-lhe, indignado: «Porca, até te serve o Diabo?»

Assim marchando, chegámos ao alto do monte--onde uma palmeira se desgrenhava sobre um abysmo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós, muito longe, o céo desdobrava-se como um vasto estofo amarello: e sobre esse fundo vivo, côr de gema d'ovo, destacava um negrissimo outeiro, tendo cravadas no alto tres cruzinhas em linha, finas e d'um só traço. O

Diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: «A do meio é a de Jesus, filho de José, a quem tambem chamam o Christo; e chegamos a tempo para saborear a Ascensão.» Com effeito! A cruz do meio, a do

Christo, desairragada do outeiro, como um arbusto que o vento arranca, começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céo. E logo de todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustel-a, apressados como as pombas quando acodem ao grão; uns puxavam-na de cima, tendo-lhe amarrado ao meio longas cordas de sêda; outros, de baixo, empurravam-na--e nós viamos o esforço entumecido dos seus braços azulados. Por vezes do madeiro desprendia-se, como uma cereja muito madura, uma grossa gotta de sangue: um seraphim recolhia-a nas mãos e ia collocal-a sobre a parte mais alta do céo, onde ella ficava suspensa e brilhando com o resplendor d'uma estrella. Um ancião enorme de tunica branca, a que mal distinguiamos as feições, entre a abundancia da coma revolta e os flocos de barbas nevadas, commandava, estirado entre nuvens, estas manobras da

Ascensão, n'uma lingua semelhante ao latim e forte como o rolar de cem carros de guerra. Subitamente tudo desappareceu. E o Diabo, olhando para mim, pensativo: «Consummatum est, amigo! Mais outro Deus! Mais outra

Religião! E esta vai espalhar em terra e céo um inenarravel tedio.»

E logo, levando-me pela collina abaixo, o Diabo rompeu a contar-me animadamente os Cultos, as Festas, as Religiões que floreciam na sua mocidade. Toda esta costa do Grande Verde, então, desde Byblos até

Carthago, desde Eleusis até Memphis, estava atulhada de deuses. Uns deslumbravam pela perfeição da sua belleza, outros pela complicação da sua ferocidade. Mas todos se misturavam á vida humana, divinisando-a: viajavam em carros triumphaes, respiravam as flôres, bebiam os vinhos, defloravam as virgens adormecidas. Por isso eram amados com um amor que não mais voltará: e os povos, emigrando, podiam abandonar os seus gados ou esquecer os rios onde tinham bebido--mas levavam carinhosamente os seus deuses ao collo. «O amigo, perguntou elle, nunca esteve em

Babylonia?» Ahi todas as mulheres, matronas ou donzellas, se vinham um dia prostituir nos bosques sagrados, em honra da deusa Mylitta. As mais ricas chegavam em carros marchetados de prata, puxados a búfalos, e escoltadas d'escravas; as mais pobres traziam uma corda ao pescoço.

Umas, estendendo um tapete na herva, agachavam-se como rezes pacientes; outras, erguidas, núas, brancas, com a cabeça escondida n'um véo preto, eram como esplendidos marmores entre os troncos dos alamos. E todas assim esperavam que qualquer, atirando-lhe uma moeda de prata, lhes dissesse: «Em nome de Venus!» Seguiam-no então, fosse um principe vindo de Suza com tiara de perolas, ou o mercador que desce o Euphrates no seu barco de couro: e toda a noite rugia na escuridão das ramagens o delirio da Luxuria ritual.

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