Aa

A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 3 - Parte 1

Os soldados da Torre Antonia que fazem a ronda passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quasi sempre de guarda pela Paschoa, nos dizia:--«está bem, ficai, comtanto que não apregoeis alto.» Porque todos sabiam que eramos pobres, não podiamos pagar o covado de lage, e tinhamos nas nossas moradas crianças com fome... Na Paschoa e nos Tabernaculos vêm da terra distante peregrinos a Jerusalem; e todos me compravam uma imagem do Templo para mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o demonio... Ás vezes, ao fim do dia, tinha feito tres drachmas; enchia o saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores do Senhor!...

Eu, d'enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo queixume: --Mas eis que ha dias esse Rabbi de Galilêa apparece no Templo, cheio de palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando que aquella «era a casa de seu pai, e que nós a polluiamos!...» E dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão!

Quebrou nas lages os vasos d'oleo d'Eboim, de Joppé, que nem gritava, espantado. Acudiram os guardas do Templo. Menahem acudiu tambem; até, indignado, disse ao Rabbi:--«És bem duro com os pobres. Que auctoridade tens tu?» E o Rabbi fallou «de seu pai», e reclamou contra nós a lei severa do Templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir, apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de

Babylonia, e com o seu lagedo bem pago, batiam palmas ao Rabbi... Ah!

contra esses o Rabbi nada podia dizer: eram ricos, tinham pago!... E agora aqui ando! Minha filha, viuva e doente, não póde trabalhar, embrulhada a um canto nos seus trapos: e os filhos de minha filha, pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem-me tão triste e nem choram. E que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o Sabbat, vou á synagoga de Naim que é a minha, e as raras migalhas que sobravam do meu pão juntava-as para aquelles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu vendendo? Em que offendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira, beijava as lages do Templo: cada pedra era purificada pelas aguas lustraes... Em verdade Jehovah é grande, e sabe... Mas eu fui expulso pelo Rabbi, sómente porque sou pobre!

Calou-se--e as suas mãos magras, tatuadas de linhas magicas, tremiam, limpando as longas lagrimas que o alagavam.

Bati no peito, desesperado. E a minha angustia toda era por Jesus ignorar esta desgraça, que, na violencia do seu espiritualismo, suas mãos misericordiosas tinham involuntariamente creado, como a chuva benefica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flôr isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem d'ella ficasse uma queixa na terra--paguei a divida de Jesus (assim seu

Pai perdôe a minha!) atirando para o saião do velho moedas consideraveis, drachmas, crysos gregos de Philippe, aureos romanos d'Augusto, até uma grossa peça da Cyrenaica que eu estimava por ter uma cabeça de Zeus Amnon que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este thesouro um lepta de cobre--que tem em Judêa o valor d'um grão de milho...

O velho pedreiro de Naim empallidecia, suffocado. Depois, com o dinheiro n'uma dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou timida e religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas: --Pai, que estás nos céos, lembra-te da face d'este homem, que me deu o pão de longos dias!...

E soluçando sumiu-se entre a turba--que agora de todo o atrio rumorosamente affluia, se apinhava em torno aos mastros altos do velario. O escriba apparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao lado do Rabbi e dos guardas do Templo, Sarêas viera perfilar-se encostado ao seu baculo. Depois, entre um brilho d'armas, surgiram as varas brancas dos lictores: e novamente Poncius, pallido e pesado, na sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o o Assento Curul.

Um silencio cahiu, tão attento, que se ouviam as bozinas tocando ao longe na Torre Marianna. Sarêas desenrolou o seu escuro pergaminho, estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabularios: e eu vi as mãos gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um sêllo sob as linhas vermelhas que condemnavam á morte Jesus de Galilêa, meu

Senhor... Depois Poncius Pilatus, com uma dignidade indolente, erguendo apenas de leve o braço nú, confirmou em nome de Cesar a «sentença do

Sanhedrin, que julga em Jerusalem...»

Immediatamente Sarêas atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou orando, com as mãos abertas para o céo. E os Phariseus triumphavam: junto a nós, dois muito velhos beijavam-se em silencio nas barbas brancas: outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a acclamação forense dos romanos: «Bene et belle! Non potest melius!»

Mas de subito o Interprete appareceu em cima d'um escabello, alteando sobre o peito o seu papagaio flammante. A turba emmudecera, surprehendida. E o phenicio, depois de ter consultado com o escriba, sorriu, gritou em chaldaico, alargando os braços cercados de manilhas de coral: --Escutai! N'esta vossa festa de Paschoa, o Pretor de Jerusalem costuma, desde que Valerius Gratus assim o determinou, e com assenso de Cesar, perdoar a um criminoso... O Pretor propõe-vos o perdão d'este... Escutai ainda! Vós tendes tambem o direito de escolher, vós mesmos, entre os condemnados... O Pretor tem em seu poder, nos ergastulos de Herodes, outro sentenciado á morte...

Hesitou,--e debruçado do escabello interrogava de novo o escriba que remexia n'uma atarantação os papyros e os tabularios. Sarêas, sacudindo a ponta do manto que escondia a sua oração, ficára assombrado para o

Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o Interprete bradava, erguendo mais a face risonha: --Um dos condemnados é Rabbi Jeschoua, que ahi tendes, e que se disse filho de David... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no mal, foi preso por ter morto um legionario traiçoeiramente, n'uma rixa, ao pé do Xistus. O seu nome é Bar-Abbás... Escolhei!

Um grito brusco e roufenho partiu d'entre os Phariseus: --Bar-Abbás!

Aqui e além, pelo atrio, confusamente resoou o nome de Bar-Abbás. E um escravo do Templo, de saião amarello, pulando até aos degraus do sólio, rompeu a berrar, em face de Poncius, com palmadas furiosas nas côxas: --Bar-Abbás! Ouve bem! Bar-Abbás! O povo só quer Bar-Abbás!

A haste d'um legionario fel-o rolar nas lages. Mas já toda a multidão, mais leve e facil d'inflammar do que a palha na meda, clamava por

Bar-Abbás: uns com furor, batendo as sandalias e os cajados ferrados como para aluir o Pretorio; outros de longe, encruzados ao sol, indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do Templo, rancorosos, sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre maldições ao Rabbi: «Bar-Abbás é o melhor!» E até as prostitutas de

Tiberiade, pintadas de vermelhão como idolos, feriam o ar de gritos silvantes: --Bar-Abbás! Bar-Abbás!

Raros alli conheciam Bar-Abbás; muitos, de certo, não odiavam o

Rabbi--mas todos engrossavam o tumulto promptamente, sentindo, n'essa reclamação do preso que atacára Legionarios, um ultraje ao Pretor romano, togado e augusto no seu tribunal. Poncius no entanto, indifferente, traçava letras n'uma vasta lauda de pergaminho pousada sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em cadencia, como malhos n'uma eira: --Bar-Abbás! Bar-Abbás! Bar-Abbás!

Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquelle mundo duro e revoltoso que o condemnava: e nos seus refulgentes olhos humedecidos, no fugitivo tremor dos seus labios, só transpareceu n'esse instante uma mágua misericordiosa pela opaca inconsciencia dos homens, que assim empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos presos, limpou uma gotta de suor: depois ficou diante do Pretor, tão imperturbado e quêdo, como se já não pertencesse á terra.

O escriba, batendo com uma regra de ferro na pedra da mesa, tres vezes bradára o nome de Cesar. O tumulto ardente esmorecia. Poncius ergueu-se: e grave, sem trahir impaciencia ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o mandado final: --Ide e crucificai-o!

Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.

Oito soldados da cohorte Syriaca appareceram, apetrechados em marcha, com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo cantil da posca. Sarêas, vogal do Sanhedrin, tocando no hombro de

Jesus, entregou-o ao decurião: um soldado desapertou-lhe as cordas, outro tirou-lhe o albornoz de lã: e eu vi o dôce Rabbi de Galilêa dar o seu primeiro passo para a morte.

Apressados, enrolando o cigarro, deixámos logo o palacio de Herodes por uma passagem que o douto Topsius conhecia, lobrega e humida, com fendas gradeadas d'onde vinha um canto triste de escravos encarcerados...

Sahimos a um terreiro, abrigado pelo muro d'um jardim todo plantado de cyprestes. Dois dromedarios deitados no pó ruminavam, junto d'um montão d'hervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do Templo, quando, sob as ruinas d'um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado em torno d'um Essenio, cujas mangas d'alvo linho batiam o ar como as azas d'um passaro irritado.

Era Gad, rouco d'indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia e balbuciava: --Não fui eu, não fui eu...

--Foste tu! bradava o Essenio, estampando a sandalia na terra.

Conheço-te bem. Tua mãi é cardadeira em Capárnaum, e maldita seja pelo leite que te deu!...

O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado á força: --Não fui eu! Eu sou Rephrahim, filho de Eliesar, de Ramah! Sempre todos me conheceram são e forte como a palmeira nova!

--Torto e inutil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho d'um cão! gritou Gad. Vi-te bem... Foi em Capárnaum, na viella onde está a fonte, ao pé da Synagoga, que tu appareceste a Jesus, Rabbi de

Nazareth! Beijavas-lhe as sandalias, dizias «Rabbi, cura-me! Rabbi, vê esta mão que não póde trabalhar!» E mostravas-lhe a mão, essa, a direita, secca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o tronco! Era no Sabbath: estavam os tres chefes da Synagoga, e Elzear, e

Simeon. E todos olhavam Jesus para vêr se elle ousaria curar no dia do

Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabbi repelliu-te?

Mandou-te procurar a raiz do baraz? Ah cão, filho d'um cão! O Rabbi, indifferente ás accusações da Synagoga, e só escutando a sua misericordia, disse-te: «estende a mão!» Tocou-a, e ella reverdeceu logo como a planta regada pelo orvalho do céo! Estava sã, forte, firme; e tu movias ora um dedo, ora outro, espantado e tremendo.

Um murmurio d'enlevo correu entre a multidão, maravilhada pelo dôce milagre. E o Essenio exclamava, com os braços tremulos no ar: --Assim foi a caridade do Rabbi! E estendeu-te elle a ponta do manto, como fazem os Rabbis de Jerusalem, para que lhe deitasses dentro um siclo de prata? Não. Disse aos seus amigos que te dessem da provisão de lentilha... E tu largaste a correr pelo caminho, refeito e agil, gritando para o lado da tua casa: «Oh mãi, oh mãi, estou curado!...» E foste tu, porco e filho de porco, que ha pouco no Pretorio pedias a cruz para o Rabbi e gritavas por Bar-Abbás! Não negues, bocca immunda; eu ouvi-te; estava por traz de ti, e via incharem-te as cordoveias do pescoço com o furor da tua ingratidão!

Alguns, escandalisados, gritavam: «maldito! maldito!» Um velho, com justiceira gravidade, apanhára duas grossas pedras. E o homem de

Capárnaum, encolhido, esmagado, ainda rosnou surdamente: --Não fui eu, não fui eu... Eu sou de Ramah!

Gad, furioso, agarrou-o pelas barbas: --N'esse braço, quando o arregaçaste diante do Rabbi, todos te viram duas cicatrizes curvas como de dois golpes de foice!... E tu vaes mostral-as agora, cão e filho d'um cão!

Despedaçou-lhe a manga da tunica nova; arrastou-o em redor, apertado nas suas mãos de bronze, como um bode teimoso; mostrou bem as duas cicatrizes, lividas no pêllo ruivo; e assim o arremessou desprezivelmente para entre o povo--que, levantando o pó do caminho, perseguiu o homem de Capárnaum com apupos e com pedradas...

Acercamo-nos de Gad sorrindo, louvando a sua fidelidade a Jesus. Elle, acalmado, estendera as mãos a um vendedor d'agua, que lh'as purificava com um largo jorro do seu ôdre felpudo: depois limpando-as á toalha de linho que lhe pendia do cinto: --Escutai! José de Ramatha reclamou o corpo do Rabbi, o Pretor concedeu-lh'o... Esperai-me á nona hora romana no pateo de Gamaliel...

Onde ides?

Topsius confessou que iamos ao Templo, por motivos intellectuaes d'arte, d'archeologia...

--Vão é aquelle que admira pedras! rosnou o altivo idealista.

E afastou-se puxando o capuz sobre a face, por entre as bençãos do povo que crê e ama os Essenios.

* * * * *

Para poupar, até ao Templo, a rude caminhada pelo Tyropêo e pela ponte do Xistus, tomámos duas liteiras--das que um liberto de Poncius ultimamente alugava, junto ao Pretorio, «á moda de Roma».

Cançado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas seccas que cheirava a murta: e lentamente começou a invadir-me a alma uma inquietação estranha, temerosa, que já no Pretorio me roçára de leve como a aza arripiada d'uma ave agourenta... Ia eu ficar para sempre n'esta cidade forte dos Judeus? Perdera eu irremediavelmente a minha individualidade de Raposo, de catholico, de bacharel, contemporaneo do

Times e do Gaz--para me tornar um homem da Antiguidade classica, coevo de Tiberio? E, dado este mirifico retrogresso nos tempos, se voltasse á minha patria, que iria eu encontrar á beira do rio claro?...

Decerto encontraria uma colonia romana: na encosta da collina mais fresca uma edificação de pedra onde vive o proconsul; ao lado um templo pequeno de Apollo ou de Marte coberto de lousa; nos altos um campo entrincheirado onde estão os legionarios; e em redor a villa lusitana, esparsa, com os seus caminhos agrestes, cabanas de pedra solta, alpendres para recolher o gado, e estacadas no lodo onde se amarram jangadas... Assim encontraria a minha patria. E que faria lá, pobre, solitario? Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do Templo, racharia a lenha das cohortes para ganhar um salario romano?... Miseria incomparavel!

Mas se ficasse em Jerusalem? Que carreira tomaria n'esta sombria, devota cidade da Asia? Tornar-me-hia um Judeu, resando o Schema, cumprindo o

Sabbath, perfumando a barba de nardo, indo preguiçar nos atrios do

Templo, seguindo as lições d'um Rabbi, e passeando ás tardes, com um bastão dourado, nos jardins de Gareb entre os tumulos?... E esta existencia igualmente me parecia pavorosa!... Não! a ficar encarcerado no mundo antigo com o doutissimo Topsius, então deveriamos galopar n'essa mesma noite, ao erguer da lua, para Joppé; de lá embarcar em qualquer trirema phenicia que partisse para Italia; e ir habitar Roma, ainda que fosse n'uma das escuras viellas do Velabro, n'uma d'essas altas, fumarentas trapeiras, com duzentas escadas a subir, empestadas pelos guisados d'alho e tripa, que escassamente atravessam duas calendas sem desabar ou arder.

Assim me inquietava quando a liteira parou; descerrei as cortinas; vi ante mim os vastos granitos da muralha do Templo. Penetrámos sob a abobada da porta de Huldah; e fômos logo detidos emquanto os guardas do

Templo arrancavam a um pegureiro, teimoso e rude, a clava armada de prégos com que elle queria atravessar o Santuario. O rolante rumor que vinha de longe, dos Atrios, já me atemorisava, semelhante ao d'uma selva ou d'um grande mar irritado...

E ao emergir emfim da abobada estreita agarrei o braço magro do

Historiador dos Herodes, no deslumbramento que me tornou, intenso e repassado de terror! Um brilho de neve e ouro vibrava profusamente no ar molle, irradiado dos claros marmores, dos granitos brunidos, dos recamos preciosos banhados pelo divino sol de Nizam. Os lisos pateos que eu de manhã vira desertos, alvejando como a agua quieta d'um lago, desappareciam agora sob o povo que os atulhava, adornado e festivo. Os cheiros estonteavam, acres, emanados dos estofos tingidos, das resinas aromaticas, da gordura frigindo em brazas. Sobre o denso ruido passavam roucos mugidos de bois. E perennemente os fumos votivos se sumiam na refulgencia do céo...

--Caramba! murmurei, enfiado. Isto são magnificencias de entupir!

Fômos penetrando sob os Porticos de Salomão, onde resoava o profano tumulto d'um mercado. Por traz de grossas caixas gradeadas encruzavam-se os Cambistas, com uma moeda d'ouro pendente da orelha entre as melenas sordidas, trocando o dinheiro sacerdotal do Templo pelas moedas pagãs de todas as regiões, de todas as idades, desde as macissas rodellas do velho Lacio mais pesadas que broqueis, até aos tijolos gravados que circulam, como «notas» nas feiras da Assyria. Adiante, brilhava a frescura e abundancia d'um pomar: as romãs, estaladas de maduras, trasbordavam dos gigos: hortelões com um ramo d'amendoeira preso ao carapuço apregoavam grinaldas d'anemonas ou hervas amargas de Paschoa: jarras de leite puro pousavam sobre saccos de lentilha; e os cordeiros, deitados nas lages, amarrados pelas patas ás columnas, balavam tristemente de sêde.

Mas a multidão sobretudo apinhava-se, com suspiros de cubiça, em torno aos tecidos e ás joias. Mercadores das colonias phenicias, das Ilhas gregas, de Tardis, da Mesopotamia, de Tadmor, uns com soberbas simarras de lã bordada, outros com toscos tabardos de couro pintado, desdobravam os panos azues de Tyro que reproduzem o brilho ardente dos céos do

Oriente, as sêdas impudicas de Sheba d'uma transparencia verde que vôa na aragem, e esses estofos solemnes de Babylonia que sempre me extasiavam, negros com largas flôres côr de sangue... Dentro de cofres de cedro, espalhados sobre tapetes da Galacia, reluziam espelhos de prata simulando a lua e os seus raios, sinetes de turmalina que os hebreus usam ao peito, manilhas de pedrarias enfiadas em cornos d'antilopes, diademas de sal-gema com que se enfeitam os noivos; e, resguardadas mais preciosamente, talismans e amuletos que me pareciam pueris, pedaços de raizes, pedregulhos negros, couros tisnados e ossos com letras.

Topsius ainda parou entre as tendas dos perfumistas apreçando um esplendido bastão de Tylos, d'uma rara madeira mosqueada como a pelle do tigre, mas logo fugimos ao ardente cheiro que alli suffocava, vindo das resinas, das gommas dos paizes dos Negros, dos mólhos de plumas de abestruz, da mirrha d'Oronte, das ceras de Cirenaica, dos oleos rosados de Cysico, e das grandes coifas de pelle d'hyppopotamo cheias de violetas seccas e de folhas de baccaris...

Entrámos então na galeria chamada Real, toda votada á Doutrina e á

Lei. Ahi, cada dia, tumultuam rancorosamente as controversias entre

Sadduceus, Escribas, Sophorins, Phariseus, sectarios de Schemaia, sectarios de Hillel, Juristas, Grammaticos, fanaticos de toda a terra judaica. Junto ás columnas de marmore installavam-se os Mestres da Lei, sobre altos escabellos, tendo ao lado um prato de metal onde cahiam os óbolos dos fieis: e em torno, encruzados no chão, com as sandalias ao pescoço, as pellicas cobertas de letras vermelhas desdobradas nos joelhos, os discipulos, imberbes ou decrepitos, resmoneavam os dictames balançando os hombros lentos. Aqui e além, no meio de devotos embebidos, dois doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos pontos da Doutrina. «Póde-se comer um ovo de gallinha posto no dia de

Sabbath? Por que osso da espinha dorsal começa a Resurreição?» O philosophico Topsius ria, disfarçado n'uma préga da capa: mas eu tremia quando os doutores, escaveirados e barbudos, se ameaçavam, gritavam racca! racca! mergulhando a mão no seio da tunica á procura d'um ferro escondido.

O que você achou desta história?

Seja o primeiro a avaliar!

Você precisa entrar para avaliar.

Você também pode gostar