Capítulo 3 - Parte 2
E mostrou-me ainda, para além da Antonia, o velho burgo de David. Era um tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras brancas para um valle ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria entre arcarias: depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a collina fronteira d'Acra, rica, com palacios, e cisternas redondas que luziam á luz semelhantes a broqueis d'aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocados era o bairro novo de Bezetha, em construcção; o Circo de Herodes arredondava ahi as suas arcarias; e os jardins d'Antipas estiravam-se por um ultimo outeiro, até junto ao tumulo de Helena, assoalhados, frescos, regados pelas aguas dôces de Enrogel.
--Ah Topsius, que cidade! murmurei maravilhado.
--Rabbi Eliezer diz que não viu jámais cidade bella quem não viu
Jerusalem!
Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo, para os lados da verde estrada que sobe de Bethania: e um velho que puxava á pressa a arreata do seu burro, carregado de mólhos de palmas, gritou-nos que se avistára e vinha chegando a caravana da Galilêa! Então, curiosos, trotámos até um comoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os filhos ao collo, sacudindo véos claros, soltando palavras de benção e de boa acolhida:--e logo vimos, n'uma poeirada lenta que o sol dourava, a densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalem, vindos de longe, da alta Galilêa, desde Gescala e dos montes. Um rumor de canticos enchia a estrada festiva: em torno a um estandarte verde agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos, carregando o dorso dos camêlos, balanceavam em cadencia por entre os turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.
Seis cavalleiros da guarda Babylonica d'Antipas Herodes, tetrarca de
Galilêa, escoltavam a caravana desde Tiberiade: traziam mitras de felpo, as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de couro amarello: e caracolavam á frente, fazendo estalar n'uma das mãos açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanges que faiscavam. Logo atraz era uma collegiada de Levitas, em côro, a passos largos, apoiados a bordões enfeitados de flôres, com os rôlos da Lei apertados sobre o peito, psalmodiando rijo os louvores de Sião. E em torno moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o céo furiosamente em trompas recurvas de bronze.
Mas, d'entre a gente apertada á beira da estrada, rompeu uma acclamação.
Era um velho, sem turbante, de cabellos soltos, recuando e dançando freneticamente: das mãos cabelludas que elle agitava no ar sahia um repique de castanholas: ora arremessava uma perna, ora outra: e toda a sua face barbuda de Rei David ardia com um fulgôr inspirado. Atraz d'elle, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das sandalias, feriam com dolencia harpas leves; outras, rodando sobre si, batiam d'alto os tamborinos--e as suas manilhas de prata brilhavam no pó que os seus pés levantavam, sob a roda das tunicas enfunadas... Então, arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituaes e os psalmos de Peregrinação.
--Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalem! Tu és perfeita! Quem te ama conhece a abundancia!
E eu bradava tambem, transportado: --Tu és o palacio do Senhor, ó Jerusalem, e o repouso do meu coração!
Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros, veladas e rebuçadas, semelhavam grandes saccos molles: as mais pobres, a pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os previdentes, já com a sua offrenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto um cordeiro branco; os mais fortes seguravam ás costas, presos pelos braços, os doentes--cujos olhos dilatados, nas faces maceradas, procuravam anciosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se cura.
Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bençãos cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos visinhos, pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldêa á sombra da sua vinha: e ouvindo que lhe fôra roubada a pedra do seu moinho, um velho, ao meu lado, com as barbas d'um Abrahão, arremessou-se a terra a arrepellar-se e a esfarrapar a tunica. Mas já, fechando a marcha, passavam as mulas com guisos carregadas de lenha e de ôdres d'azeite: e atraz uma turba de fanaticos que nos arredores, em Betphagé e em
Rephrain, se tinham juntado á caravana, appareceu, atirando para os lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos
Samaritanos e ameaçando a gente pagã...
Então seguindo Topsius trotei de novo através do monte para junto dos cedros cobertos do vôo alvo das pombas: e n'esse instante tambem os peregrinos, emergindo da estrada, avistavam emfim Jerusalem que resplandecia lá em baixo formosa, toda branca na luz... Então foi um santo, tumultuoso, inflammado delirio! Prostrada, a turba batia as faces na terra dura: um clamor de orações subia ao céo puro por entre o estridor das tubas: as mulheres erguiam os filhos nos braços offertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam immoveis, como assombrados, ante os esplendores de Sião: e quentes lagrimas de fé, de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos mostravam com o dedo os terraços do Templo, as ruas antigas, os sacros lugares da historia de Israel: «alli é a porta d'Ephrain, acolá era a torre das Fornalhas; aquellas pedras brancas, além, são do tumulo de
Rachel...» E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos, gritavam: «Bemdita sejas, Sião!» Outros, estonteados, com o cinto desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da offerta. Por vezes, d'entre as arvores, um canto subia, claro, fino, candido, e que ficava tremendo no ar: a terra um momento parecia escutar, como o céo: serenamente, Sião rebrilhava, do Templo os dois fumos lentos ascendiam, com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria: de novo as bençãos rompiam, clamorosas: a alma inteira de Judá abysmava-se no resplendor do santuario: e braços magros erguiam-se phreneticamente para estreitar Jehovah.
De repente Topsius colheu-me as redeas da egoa: e quasi ao meu lado um homem com uma tunica côr d'açafrão, surgindo esgazeado de traz de uma oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima d'uma pedra e gritou desesperadamente: --Homens de Galilêa, acudi, e vós, homens de Nephtali!...
Peregrinos correram, erguendo os bastões: e as mulheres sahiam das tendas, pallidas, apertando os filhos ao collo. O homem fazia tremer a espada no ar, todo elle tremia tambem: e outra vez bradou, desoladamente: --Homens de Galilêa, Rabbi Jeschoua foi preso! Rabbi Jeschoua foi levado a casa de Hannan, homens de Nephtali!
--D. Raposo, disse Topsius então, com os olhos faiscantes, o Homem foi preso, e compareceu já diante do Sanhedrin!... Depressa, depressa, amigo, a Jerusalem, a casa de Gamaliel!
* * * * *
E á hora em que no Templo se fazia a offerta do Perfume, quando o sol já ia alto sobre o Hebron, Topsius e eu penetrámos, pela porta do Pescado, a passo, n'uma rua da antiga Jerusalem. Era ingreme, tortuosa, poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas, fechadas por uma corrêa, sobre as janellas esguias como fendas gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de
Paschoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam lampadas de barro em festões para as illuminações rituaes.
Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egypcio, com uma pluma escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa ás costas, recurva como uma foice e lavrada em flôres de lotus. Topsius perguntou-lhe se elle vinha d'Alexandria. E ainda se cantavam nas tabernas do Eunotos as cantigas da batalha d'Accio? O homem logo, mostrando n'um riso triste os dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picámos as egoas: e assustámos duas mulheres cobertas de véos amarellos, com casaes de pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o
Templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guisos das suas sandalias.
Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes, caçarolas, d'onde sahia um cheiro acre d'alho: crianças de ventre enorme que rolavam núas pela poeira, roendo vorazmente cascas d'abobora crua, ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramellosos onde fervilhavam moscas. Diante d'uma forja um bando hirsuto de pastores de Moab esperavam emquanto dentro, martellando n'um nimbo de chispas, os ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um pente em fórma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, n'um grito lugubre, bolos de centeio de feitios obscenos.
Calados, atravessámos uma praça, clara e lageada, que andava em obras.
Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma Therma romana, estendia com ar de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu portico de granito: no pateo interior, por entre os platanos que o refrescavam, cujos ramos suspendiam velarios de linho alvo, corriam escravos nús, reluzentes de suor, levando vasos d'essencias e braçadas de flôres; das aberturas gradeadas, ao rez das lages, sahia um bafo molle d'estufa que cheirava a rosa. E sob uma das columnas vestibulares, onde uma lapide d'onyx indicava a entrada das mulheres, estava de pé, immovel, offertando-se aos votos como um idolo, uma creatura maravilhosa: sobre a sua face redonda, d'uma brancura de lua cheia, com labios grossos, rubros de sangue, erguia-se a mitra amarella das prostitutas de Babylonia; dos hombros fortes, por cima da tumida rijeza dos seios direitos, cahia em pregas duras de brocado uma dalmatica negra radiantemente recamada de ramagens côr de ouro. Na mão tinha uma flôr de cactus; e as suas palpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em rythmo, ao mover onduloso d'um leque que uma escrava preta, agachada a seus pés, balançava cantando. Quando os seus olhos se cerravam, tudo em redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas pestanas, vinha d'essa larga pupilla um clarão, uma influencia, como a do sol do meio dia no deserto que abraza e vagamente entristece.