Capítulo 1
--Não só para si, segundo tenho ouvido dizer, acrescentou o instruido ecclesiastico, mas para uma pessoa querida de familia, piedosa, e comprovadamente impedida de fazer a jornada... Pagando, já se vê, emolumentos dobrados.
--Por exemplo! exclamou o dr. Margaride inspirado, batendo-me com força nas costas. Assim para uma boa titi, uma titi adorada, uma titi que tem sido um anjo, toda virtude, toda generosidade!...
--Pagando, já se vê, insistiu padre Pinheiro, os emolumentos dobrados!
A titi não dizia nada; os seus oculos, girando do Sacerdote para o
Magistrado, pareciam estranhamente dilatados, e brilhando mais com o clarão interior d'uma idéa: um pouco de sangue subira á sua face esverdinhada. A Vicencia offereceu o arroz dôce. Nós rezamos as graças.
Mais tarde no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente.
Nunca a titi me deixaria visitar a terra immunda de França: e aqui ficaria enclausurado n'esta Lisboa onde tudo me era tortura, e as mais rumorosas ruas me aggravavam o ermo do meu coração, e até a pureza do fino céo de estio me recordava a torva perfidia d'essa que fôra para mim estrella e Rainha da Graça... Depois, n'esse dia, ao jantar, a titi parecera-me mais rija, solida ainda, duradoura, e por longos annos dona da bolsa de sêda verde, dos predios e dos contos do commendador G.
Godinho... Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de tanta bocca fidalga, de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante do corpo d'um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de
Jesus, os macios braços da Adelia...
* * * * *
De manhã, apparelhada a egoa, e já d'esporas, fui saber se minha titi tinha algum pio recado para S. Roque, por ser esse seu milagroso dia. Na saleta votada ás glorias de S. José, a titi, ao canto do sofá, com o chale de Tonkin cahido dos hombros, examinava o seu grande caderno de contas, aberto sobre os joelhos; e, defronte, calado, com as mãos cruzadas atraz das costas, o bom Casimiro sorria pensativamente ás flôres do tapete.
--Ora venha cá, venha cá! disse elle, mal eu assomei curvando o espinhaço. Ouça lá a novidade! Que você é uma joia, respeitador de velhos, e tudo merece de Deus e da senhora sua tia. Chegue-se cá, venha de lá esse abraço!
Sorri, inquieto. A titi enrolava o seu caderno.
--Theodorico! começou ella, cruzando os braços, impertigada. Theodorico!
tenho estado aqui a consultar com o snr. padre Casimiro. E estou decidida a que alguem que me pertença, e que seja do meu sangue, vá fazer por minha intenção uma peregrinação á Terra Santa...
--Hein, felizão! murmurou Casimiro, resplandecendo.
--Assim, proseguiu a titi, está entendido e ficas sabendo que vaes a
Jerusalem e a todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer, é para meu gosto, e para honrar o tumulo de Jesus Christo, já que eu lá não posso ir... Como, louvado seja Nosso Senhor, não me faltam os meios, has de fazer a viagem com todas as commodidades; e para não estar com mais duvidas, e pela pressa d'agradar a Nosso Senhor, ainda has de partir n'este mez... Bem, agora vai, que eu preciso conversar com o snr. padre
Casimiro. Obrigado, não quero nada para o snr. S. Roque: já me entendi com elle.
Balbuciei: «Muito agradecido, titi; adeusinho, padre Casimiro.» E segui pelo corredor, atordoado.
No meu quarto corri ao espelho a contemplar, pasmado, este rosto e estas barbas, onde em breve pousaria o pó do Jerusalem... Depois, cahi sobre o leito.
--Olha que tremenda espiga!
Ir a Jerusalem! E onde era Jerusalem? Recorri ao bahú que continha os meus compendios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com elle aberto sobre a commoda, diante da Senhora do Patrocinio, comecei a procurar
Jerusalem lá para o lado onde vivem os Infieis, ondulam as escuras caravanas, e uma pouca d'agua n'um poço é como um dom precioso do
Senhor.
O meu dedo errante sentia já o cansaço d'uma longa jornada: e parei á beira tortuosa d'um rio que devia ser o devoto Jordão. Era o Danubio. E de repente o nome de Jerusalem surgiu, negro, n'uma vasta solidão branca, sem nomes, sem linhas, toda de arêas, nua, junto ao mar. Alli estava Jerusalem. Meu Deus! Que remoto, que ermo, que triste!
Mas então comecei a considerar que, para chegar a esse sólo de penitencia, tinha d'atravessar regiões amaveis, femininas e cheias de festa. Era primeiro essa bella Andaluzia, terra de Maria Santissima, perfumada de flôr de laranjeira, onde as mulheres só com metter dois cravos no cabello, e traçando um chale escarlate, amansam o coração mais rebelde, bendita sêa su gracia! Era adiante Napoles--e as suas ruas escuras, quentes, com retabulos da Virgem, e cheirando a mulher, como os corredores d'um lupanar. Era depois mais longe ainda a Grecia: desde a aula de Rhetorica ella apparecera-me sempre como um bosque sacro de loureiros onde alvejam frontões de templos, e, nos lugares de sombra em que arrulham as pombas, Venus de repente surge, côr de luz e côr de rosa, offerecendo a todo o labio, ou bestial ou divino, o mimo dos seus seios immortaes. Venus já não vivia na Grecia; mas as mulheres tinham conservado lá o esplendor da sua fórma e o encanto do seu impudor...
Jesus! o que eu podia gozar! Um clarão sulcou-me a alma. E gritei, com um murro sobre o Atlas, que fez estremecer a castissima Senhora do
Patrocinio e todas as estrellas da sua corôa: --Caramba, vou fartar o bandulho!
Sim, fartal-o! E mesmo, receando que a titi, por avareza do seu ouro ou desconfiança da minha piedade, renunciasse á idéa d'esta peregrinação tão promettedora de gozos--resolvi ligal-a supernaturalmente por uma ordem divina. Fui ao oratorio; desmanchei o cabello, como se por entre elle tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi, esgazeado, com os braços a tremer no ar.
--Ó titi! pois não quer saber? Estava agora no oratorio, a rezar de satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: «Fazes bem, Theodorico, fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulchro... E estou muito contente com tua tia... Tua tia é das minhas!...»
Ella juntou as mãos, n'um fogoso transporte d'amor: --Louvado seja o seu santissimo nome!... Pois disse isso? Ai, era bem capaz, que Nosso Senhor sabe que é para o honrar que eu lá te mando...
Louvado seja outra vez o seu santissimo nome! Louvado seja em Terra e
Céo! Anda, filho, vai, reza-lhe... Não te fartes, não te fartes!
Eu ia, murmurando uma Ave-Maria. Ella correu ainda á porta, n'uma effusão de sympathia: --E olha, Theodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te sejam necessarias mais ceroulas... Encommenda, filho, encommenda, que graças a Nossa Senhora do Rosario tenho posses, e quero que vás com decencia e te apresentes bem lá na sepulturasinha de Deus!...
Encommendei: e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalem, com Benjamim Sarrosa & C.^a, judeu sagaz, que ia todos os annos, de turbante, comprar bois a Marrocos. Benjamim marcou-me, miudamente, n'um papel, o meu grandioso itinerario. Embarcaria no Malaga, vapor da casa
Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, n'um mar sempre azul, á velha terra do Egypto. Ahi um repouso sensual na festiva
Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da
Syria, aportaria a Jaffa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo uma estrada macadamisada, ao chouto d'uma egoa dôce, veria, ao fim d'um dia e ao fim d'uma noite, surgirem, negras entre collinas tristes, as muralhas de Jerusalem!
--Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um bocadinho de Hespanha? Ó menino, olhe que eu quero refastelar-me.
--Refastela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipoia, tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se refastela!
No emtanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se fallava da minha santa empresa. Uma manhã, li, escarlate d'orgulho, no Jornal das
Novidades estas linhas honorificas: «Parte brevemente a visitar
Jerusalem, e todos os sacros lugares em que padeceu por nós o Redemptor, o nosso amigo Theodorico Raposo, sobrinho da exc.^{ma} D. Patrocinio das
Neves, opulenla proprietaria, e modelo de virtudes christãs. Boa viagem!» A titi, desvanecida, guardou o jornal no oratorio, debaixo da peanha de S. José: e eu jubilei, por imaginar o despeito da Adelia (leitora fiel do Jornal) ao vêr-me assim abalar desprendido d'ella, atestado d'ouro, para essas terras musulmanas--onde a cada passo se topa um serralho, mudo e cheirando a rosa entre sycomoros...
A vespera da partida, na sala dos damascos, teve elevação e solemnidade.
O Justino contemplava-me--como se contempla uma figura historica.
--O nosso Theodorico... Que viagem!... O que se vai fallar n'isto!
E padre Pinheiro murmurava com unção: --Foi uma inspiração do Senhor! E que bem que lhe ha de fazer á saude!
Depois mostrei o meu capacete de cortiça. Todos o admiraram. O nosso
Casimiro, todavia, depois de coçar pensativamente o queixo, observou que me daria talvez mais seriedade um chapéo alto...
A titi acudiu, afflicta: --É o que eu lhe disse! Acho de pouca ceremonia, para a cidade em que morreu Nosso Senhor...
--Ó titi, mas já lhe expliquei! Isto é só para o deserto!... Em
Jerusalem, está claro, e em todos aquelles santos lugares, ando de chapéo alto...
--Sempre é mais de cavalheiro, affirmou o dr. Margaride.
Padre Pinheiro quiz saber, solicitamente, se eu ia prevenido com remedios para o caso d'um contratempo intestinal n'esses descampados biblicos...
--Levo tudo. O Benjamim deu-me a lista... Até linhaça, até arnica!...
O pachorrento relogio do corredor começou a gemer as dez; eu devia madrugar; e o dr. Margaride, commovido, agasalhava já o pescoço no seu lenço de sêda. Então, antes dos abraços, perguntei aos meus leaes amigos que «lembrançasinha» desejavam d'essas terras remotas onde vivera o
Senhor. Padre Pinheiro queria um frasquinho d'agua do Jordão. Justino (que já me pedira no vão da janella um pacote de tabaco turco) diante da titi só appetecia um raminho de oliveira, do monte Olivete. O dr.
Margaride contentava-se com uma boa photographia do sepulchro de Jesus
Christo, para encaxilhar...
Com a carteira aberta, depois de alistar estas piedosas imcumbencias--voltei-me para a titi, risonho, carinhoso, humilde...
--Cá por mim, disse ella do meio do sofá como d'um altar, tesa nos seus setins de domingo, o que desejo é que faças essa viagem com toda a devoção, sem deixar pedra por beijar, nem perder novena, nem ficar lugarzinho em que não rezes ou o terço ou a corôa... Além d'isso, tambem estimo que tenhas saude.
Eu ia depôr na sua mão, brilhante de anneis, um beijo gratissimo. Ella deteve-me--mais aprumada e secca: --Até aqui tens sido apropositado, não tens faltado aos preceitos, nem te tens dado a relaxações... Por isso te vaes regalar de vêr as oliveiras onde Nosso Senhor suou sangue, e de beber no Jordãosinho...
Mas se eu soubesse que n'esta passeata tinhas tido maus pensamentos, e praticado uma relaxação, ou andado atraz de saias, fica certo que, apesar de ser a unica pessoa do meu sangue, e teres visitado Jerusalem, e gozar indulgencias, havias de ir para a rua, sem uma côdea, como um cão!
Curvei a cabeça, apavorado. E a titi, depois de roçar o lenço de rendas pelos beiços sumidos, proseguiu com mais authoridade, e uma emoção crescente que lhe punha, sob o corpete raso, como o fugitivo arfar d'um peito humano: --E agora quero dizer-te para teu governo uma só coisa!...
Todos de pé, e reverentes, logo percebemos que a titi se preparava a proferir uma palavra suprema. N'essa hora de separação, rodeada dos seus sacerdotes, rodeada dos seus magistrados, D. Patrocinio das Neves ia decerto revelar qual fôra o seu intimo motivo, em me mandar, como sobrinho e como romeiro, á cidade de Jerusalem. Eu ia saber emfim, e tão indubitavelmente como se ella m'o escrevesse n'um pergaminho, qual deveria ser o mais precioso dos meus cuidados, velando ou dormindo, nas terras do Evangelho!
--Aqui está! declarou a titi. Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti desde que morreu tua mãi, já educando-te, já vestindo-te, já dando-te egoa para passeares, já cuidando da tua alma, então traze-me d'esses santos lugares uma santa reliquia, uma reliquia milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas afflicções e que cure as minhas doenças.
E pela vez primeira, depois de cincoenta annos de aridez, uma lagrima breve escorregou no carão da titi, por sob os seus oculos sombrios.
O dr. Margaride rompeu para mim, arrebatadamente: --Theodorico, que amor que lhe tem a titi! Rebusque essas ruinas, esquadrinhe esses sepulcros! Traga uma reliquia á titi!
Eu bradei, exaltado: --Titi, palavra de Raposão que lhe hei de trazer uma tremenda reliquia!
Pela severa sala de damascos transbordou, ruidosa e tocante, a commoção dos nossos corações. Eu achei me com os beiços do Justino, ainda molles da torrada, collados á minha barba...
Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libania, fui bater, devagar, ao quarto da titi, ainda adormecida no seu leito castissimo. Senti, por sobre o tapete, aproximar-se o som molle dos seus chinelos. Entreabriu pudicamente a porta; e, decerto em camisa, estendeu-me, através da fenda, a sua mão escarnada, livida, cheirando a rapé. Appeteceu-me mordel-a; depuz n'ella um beijo baboso; a titi murmurou: --Adeus, menino... Dá muitas saudades ao Senhor!
Desci a escadaria, já de capacete, sobraçando o meu Guia do Oriente.
Atraz a Vicencia soluçava.
A minha mala nova de couro, o meu repleto sacco de lona enchiam o coupé do Pingalho. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos telhados; na capella de Sant'Anna tocava para a missa. E um raio de sol, vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a face, acolhedor e risonho, como uma caricia do Senhor.
Fechei a tipoia, estirei-me, gritei: «Larga, Pingalho!»
E, romeiro abastado, soprando á brisa o fumo do meu cigarro--assim deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalem!