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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 5 - Parte 2

No emtanto o bom Justino, repuxando o collarinho, sorria para mim, embevecido. E como passava eu as noites em Alexandria? Havia uma assembléa, onde espairecesse? Conhecia eu alguma familia considerada, com quem tomasse uma chavena de chá?...

--Eu lhe digo, Justino... Conhecia. Mas, a fallar verdade, tinha repugnancia em frequentar casas de turcos... Sempre é gente que não acredita senão em Mafoma!... Olhe, sabe o que fazia á noite? Depois de jantar ia a uma egrejinha cá da nossa bella religião, sem estrangeirices, onde havia sempre um Santissimo d'appetite... Fazia as minhas devoções: depois ia-me encontrar com o allemão, o meu amigo, o lente, n'uma grande praça que dizem lá os de Alexandria que é muito melhor que o Rocio... Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta lindeza do nosso Rocio, o ladrilhinho, as arvores, a estatua, o theatro... Emfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o

Rocio... E lá o disse aos turcos!

--E fica-lhe bem ter levantado assim as coisas portuguezas! observou o dr. Margaride, contente e rufando na tabaqueira. Direi mais... É acto de patriota... Nem d'outra maneira procediam os Gamas e os Albuquerques!

--Pois é verdade... Ia-me encontrar com o allemão; e então para espairecer um bocado, porque emfim uma distracção sempre é necessaria quando se anda a viajar, iamos tomar um café... Que lá isso, sim! Lá café fazem-n'o os turcos que é uma perfeição!

--Bom cafésinho, hein? acudiu padre Pinheiro, chegando a cadeira para mim com interesse sôfrego. E forte, forte? Bom aroma?

--Sim, padre Pinheiro, de consolar!... Pois tomavamos o nosso cafésinho, depois vinhamos para o hotel, e ahi no quarto, com os santos Evangelhos, punhamo-nos a estudar todos aquelles divinos lugares na Judêa onde tinhamos d'ir rezar... E como o allemão era lente e sabia tudo, eu era instruir-me, instruir-me!... Até elle ás vezes dizia: «Vossê, Raposo, com estas noitadas, vai d'aqui um chavão...» E lá isso, o que é de coisas santas e de Christo, sei tudo... Pois, senhores, assim passavamos á luz do candieiro até às dez, onze horas... Depois chásinho, terço, e cama.

--Sim senhor, noites muito bem gozadas, noites muito fructuosas!

declarou, sorrindo para a titi, o estimavel dr. Margaride.

--Ai, isso fez-lhe muita virtude! suspirava a horrenda senhora. Foi como se subisse um bocadinho ao céo... Até o que elle diz cheira bem...

Cheira a santo.

Modestissimamente, baixei a palpebra lenta.

Mas Negrão, com sinuosa perfidia, notou que mais proveitoso seria, e de maior unção repassaria as almas--escutar coisas de festas, de milagres, de penitencias...

--Estou seguindo o meu itinerario, snr. padre Negrão, repliquei asperamente.

--Como fez Chateaubriand, como fazem todos os famosos auctores!

confirmou Margaride, approvando.

E foi com os olhos n'elle, como no mais douto, que eu disse a partida de

Alexandria n'uma tarde de tormenta: o tocante momento em que uma santa irmã da Caridade (que estivera já em Lisboa e que ouvira fallar da virtude da titi) me salvára das aguas salgadas um embrulho em que eu trazia terra do Egypto, da que pisára a Santa Familia: a nossa chegada a

Jaffa, que, por um prodigio, apenas eu subira ao tombadilho, de chapéo alto e pensando na titi, se coroára de raios de sol...

--Magnifico! exclamou o dr. Margaride. E diga, meu Theodorico... Não tinham comsigo um sabio guia, que lhes fosse apontando as ruinas, lhes fosse commentando...

--Ora essa, dr. Margaride! Tinhamos um grande latinista, o padre Potte!

Remolhei o labio. E disse as emoções da gloriosa noite em que acampáramos junto a Ramleh, com a lua no céo alumiando coisas da religião, beduinos velando de lança ao hombro, e em redor leões a rugir...

--Que scena! bradou o dr. Margaride, erguendo-se arrebatadamente. Que enorme scena! Não estar eu lá! Parece uma d'estas coisas grandiosas da

Biblia, do Eurico! É d'inspirar! Eu por mim, se tal visse, não me continha!... Não me continha, fazia uma ode sublime!

O Negrão puxou a aba do casaco ao facundo magistrado: --É melhor deixar fallar o nosso Theodorico, para podermos todos saborear...

Margaride, abespinhado, franziu as sobrancelhas temerosas e mais negras que o ebano: --Ninguem n'esta sala, melhor que eu, snr. padre Negrão, saboreia o grandioso!

E a titi, insaciavel, batendo com o leque: --Está bem, está bem... Conta, filho, não te fartes! Olha, conta assim uma coisa que te acontecesse com Nosso Senhor, que nos faça ternura...

Todos emmudeceram, reverentes. Eu então disse a marcha para Jerusalem com duas estrellas na frente a guiar-nos, como acontece sempre aos peregrinos mais finos e de boa familia: as lagrimas que derramára, ao avistar, n'uma manhã de chuva, as muralhas de Jerusalem: e na minha visita ao Santo Sepulchro, de casaca, com padre Potte, as palavras que balbuciára diante do Tumulo, por entre soluços e no meio d'acolytos--«Oh meu Jesus, oh meu Senhor, aqui estou, aqui venho da parte da titi!...»

E a medonha senhora, suffocada: --Que ternura que faz!... Diante do tumulosinho!...

Então passei o lenço pela face excitada, e disse: --N'essa noite recolhi ao hotel para rezar... E agora, meus senhores, ha aqui um pontosinho desagradavel...

E contritamente confessei que, forçado pela Religião, pelo nome honrado de Raposo, e pela dignidade de Portugal--tivera um conflicto no hotel com um grande inglez de barbas.

--Uma bulha! acudiu com perversidade o vil Negrão, ancioso por empanar o brilho de santidade com que eu deslumbrava a titi. Uma bulha, na cidade de Jesus Christo! Ora essa! Que desacato!

Com os dentes cerrados encarei o torpissimo padre: --Sim senhor! um chinfrim!... Mas fique v. s.^a sabendo que o snr.

patriarcha de Jerusalem me deu toda a razão, até me bateu no hombro e me disse: «Pois Theodorico, parabens, vossê portou-se como um pimpão!» Que tem agora v. s.^a a piar?

Negrão curvou a cabeça, onde a corôa punha uma lividez azulada de lua em tempo de peste: --Se Sua Eminencia approvou...

--Sim senhor! E aqui tem a titi porque foi a bulha!... No quarto ao lado do meu havia uma ingleza, uma hereje, que mal eu me punha a rezar, ahi começava ella a tocar piano, e a cantar fados e tolices e coisas immoraes do Barba-Azul, dos theatros... Ora imagine a titi, estar uma pessoa a dizer com todo o fervor e de joelhos: «Oh Santa Maria do

Patrocinio, faze que a minha boa titi tenha muitos annos de vida»--e vir lá de traz do tabique uma voz d'excommungada a ganir: «Sou o

Barba-Azul, olê! ser viuvo é o meu filé!...» É d'encavacar!... De modo que uma noite, desesperado, não me tenho em mim, sáio do corredor, atiro-lhe um murro á porta, e grito-lhe para dentro: «Faz favor d'estar calada, que está aqui um christão que quer rezar!...» --E com todo o direito, affirmou o dr. Margaride. Vossê tinha por si a lei!

--Assim, me disse o Patriarcha! Pois senhores, como ia contando, grito isto para dentro á mulher, e ia recolher muito sério ao meu quarto, quando me sae de lá o pai, um grande barbaças, de bengalorio na mão...

Eu fui muito prudente: cruzei os braços e, com bons modos, disse-lhe que não queria alli escandalos ao pé do tumulo de Nosso Senhor, e o que desejava era rezar em socego... E vai que me ha de elle responder? Que se estava a... Emfim, nem eu posso repetir! Uma coisa indecente contra o tumulo de Nosso Senhor... E eu, titi, passa-me uma oura pela cabeça, agarro-o pelo cachaço...

--E magoaste-o, filho?

--Escavaquei-o, titi!

Todos acclamaram a minha ferocidade. Padre Pinheiro citou leis canonicas auctorisando a Fé a desancar a Impiedade. Justino, aos pulos, celebrou esse John Bull desmantelado a sólida murraça lusitana. E eu, excitado pelos louvores como por clarins d'ataque, bradava de pé, medonho: --Lá impiedades diante de mim, não! Arrombo tudo, esborracho tudo... Em coisas de religião sou uma fera!

E aproveitei esta santa cólera para brandir, como um aviso, diante do queixo sumido do Negrão, o meu punho cabelludo e pavoroso. O macilento e esgrouviado servo de Deus encolheu. Mas n'esse instante a Vicencia entrava com o chá, nas pratas ricas de G. Godinho.

Então os dilectos amigos, com a torrada na mão, romperam em ardentes encomios: --Que instructiva viagem! É como ter um curso!

--E que bello bocadinho de noite aqui se tem passado!... Qual S. Carlos!

Isto é que é gozar!

--E como elle conta! Que fervor! que memoria!...

Lentamente o bom Justino, com a sua chavena fornecida de bolos, acercára-se da janella, como a espreitar o céo estrellado: e d'entre as franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me confidencialmente. Fui, trauteando o Bem-dito; ambos mergulhámos na sombra dos damascos; e o virtuoso tabellião, roçando o labio pelas minhas barbas: --Oh amiguinho, e de mulheres?

Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu collarinho: --De se deixarem lá os miolos, Justininho!

As suas pupillas faiscaram como as de um gato em janeiro; a chicara ficou-lhe tremelicando na mão.

E eu, pensativo, repenetrando na luz: --Sim, bonita noite... Mas não são aquellas estrellinhas santinhas que nós viamos lá no Jordão!...

Então padre Pinheiro, tomando aos goles cautelosos a sua chalada, veio timidamente bater-me no hombro... Lembrára-me eu, n'essas Santas Terras, com tantas distracções, do seu frasquinho d'agua do Jordão?...

--Oh padre Pinheiro, pois está claro!... Trago tudo! E o raminho do

Monte Olivete para o nosso Justino... E a photographia para o nosso

Margaride... Tudo!

Corri ao quarto, a buscar essas dôces «lembrancinhas» da Palestina. E ao regressar sustentando pelas pontas um lenço repleto de devotas preciosidades, estaquei por traz do reposteiro ao sentir dentro o meu nome... Suave gozo! Era o inestimavel dr. Margaride que afiançava á titi, com a sua tremenda auctoridade: --D. Patrocinio, eu não lh'o quiz dizer diante d'elle... Mas isto agora é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro! Isto é ter, de casa e pucarinho, um amigo intimo de Nosso Senhor Jesus Christo!...

Tossi, entrei. Mas a snr.^a D. Patrocinio ruminava um escrupulo ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ella) que se repartissem estas Reliquias minimas antes de lhe ser entregue a ella, como senhora e como tia, na capella, a Grande Reliquia...

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