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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 1 - Parte 1

Eu cosera essas reliquias dentro do fôrro d'um collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi, por entre a minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella guardava a chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para a titi!

Abri devagarinho o bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da

Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão as cinzas da minha ternura.

N'essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital n'uma maca.

Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.

--Oh, Raposão!

Era o Silverio, por alcunha o Rinchão, meu condiscipulo, e companheiro de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no Alemtejo, com seu tio, ricaço illustre, o barão d'Alconchel. E agora, de volta, ia vêr uma

Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, n'uma casa côr de rosa, com roseirinhas á varanda.

--Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita, a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a

Adelia... É um mulherão!

Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do

Rinchão, enfiando as luvas pretas.

Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira, encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque.

E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos.

Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á Adelia, córando: --Então a menina d'onde é?

Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro, cortezmente, dizendo-me--o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão brancos e macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.

Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis.

Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava

Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu.

--Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto?

disse-me ella, rindo.

O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim uma flôr de madrigal.

--É para não me tirar d'aqui d'ao pé da menina nem um instantinho que seja.

Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi o resto do Madeira que ella deixára no calice.

A Ernestina, poetica, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do

Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a face--e os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.

N'esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma mesa do mogno, d'entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez, horas, fanhoso, ironico, pachorrento.

Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e fuzilando. Ainda balbuciei: --Titi...

Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.

--Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha de estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, emquanto eu fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!

Sob a rajada estridente da indignação da snr.^a D. Patrocinio, padre

Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O dr.

Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como sacerdote, como procurador, influente e suave.

--D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa...

Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no

Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...

Exclamei amargamente: --Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma tia, uma commendadeira... Estivemos á espera, a passear no pateo... A irmã vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ella está... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do rapaz, que é sobrinho do barão d'Alconchel... E elle zás, zás, a fallar da irmã, e do namoro, e das cartas...

A tia Patrocinio uivou de furor.

--Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa para o pateo d'uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão...

Então o dr. Margaride estendeu a mão pacificadora e solemne: --Está tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio onde esteve é respeitavel... E eu conheço o barão d'Alconchel. É um cavalheiro da maior circumspecção, e um dos mais abastados do

Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal...

O mais rico, direi!... Mesmo lá fóra não haverá fortuna territorial que lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça!

Centenares de contos! milhões!

Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras d'ouro. E o bom

Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura: --Tome o seu chásinho, Theodorico, vá tomando o seu chásinho. E creia que a tia não deseja senão o seu bem...

Puxei, com a mão a tremer, a minha chavena de chá: e, remexendo desfallecidamente o fundo d'assucar, pensava em abandonar para sempre a casa d'aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da

Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a nascer, forte, respeitavel e negra.

Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do commendador G.

Godinho. Eu via-as, macissas e resplandecentes, diante de mim: o grande bule terminando em bico de pato; o assucareiro cuja aza tinha a fórma d'uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil em figura de macho trotando sob os seus alforges. E tudo pertencia á titi. Que rica que era a titi!

Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!...

Por isso, mais tarde, quando ella penetrou no oratorio para cumprir o terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martellando o peito, e supplicando ao Christo de ouro que me perdoasse ter offendido a titi.

* * * * *

Um dia emfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor mettidas n'um canudo de lata. A titi examinou-as reverente, achando um sabor ecclesiastico ás linhas em latim, ás paramentosas fitas vermelhas, e ao sêllo dentro do seu relicario.

--Está bom, disse ella, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves, vê não lhe faltes...

Corri logo ao oratorio, com o canudo na mão, agradecer ao Christo de ouro o meu glorioso grau de bacharel.

Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba, que agora tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e a esfregar as mãos.

--Boa nova vos trago aqui, snr. doutor Theodorico!...

E depois de me acariciar, segundo o seu affectuoso costume, com palmadinhas dôces nos rins, o santo procurador revelou-me que a titi, satisfeita commigo, decidira comprar-me um cavallo para eu dar honestos passeios, e espairecer por Lisboa.

--Um cavallo! Oh, padre Casimiro!

Um cavallo. E além d'isso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já letrado, soffresse um vexame, por lhe faltar ás vezes um troco para deitar na salva de Nossa Senhora do Rosario, a titi estabelecia-me uma mezada de tres moedas.

Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amoravel intenção da titi era que eu não tivesse outra occupação além de cavalgar por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.

--Olhe, Theodorico, eu parece-me que a titi não quer que você tenha outro mister senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai passal-a boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e diga-lhe uma coisinha mimosa.

Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarcha

S. José, a titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia, com um chale de Tonkin pelos hombros.

--Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer...

--Está bom, vai com Deus.

Então, devotamente, beijei-lhe a franja do chale. A titi gostou. Eu fui com Deus.

Começou d'ahi, farta e regalada, a minha existencia de sobrinho da snr.^a D. Patrocinio das Neves. Ás oito horas, pontualmente, vestido de preto, ia com a titi á igreja de Sant'Anna, ouvir a missa do padre

Pinheiro. Depois d'almoço, tendo pedido licença á titi, e rezadas no oratorio tres Gloria Patri contra as tentações, sahia a cavallo, de calça clara. Quasi sempre a titi me dava alguma incumbencia beata: passar em S. Domingos, e dizer a oração pelos tres santos martyres do

Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desaggravo pelo

Sagrado Coração de Jesus...

E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos recados que ella mandava a casa do Senhor.

Mas era este o momento desagradavel do meu dia: ás vezes, ao sahir, surrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscipulo republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de procissão, chasqueando o Senhor da Cana Verde.

--Oh, Raposão! pois tu agora...

Eu negava, vexado: --Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual!

entrei aqui por causa d'uma rapariga... Adeus, tenho a egua á espera.

Montava--e de luva preta, a perna bem collada á sella, um botãosinho de camelia no peito, ia caracolando, em ocio e luxo, até ao largo do

Loreto. Outras vezes deixava a egua no Arco do Bandeira, e gozava uma manhã regalada no bilhar do Montanha.

Antes do jantar, em chinelas, no oratorio com a titi, eu fazia a jaculatoria a S. José, aio de Jesus, custodio de Maria e amorosissimo patriarcha. Á mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em torno d'uma travessa d'aletria, eu contava á titi o meu passeio, as igrejas em que me deleitára, e quaes os altares alumiados. A Vicencia escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas janellas, onde um retrato de nosso santo padre Pio IX enchia a tira de parede verde, tendo por baixo, pendente d'um cordão, um velho oculo d'alcance, reliquia do commendador G. Godinho. Depois do café a titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado, na sombra do lenço rôxo.

Eu ia enfiar as botas; e, authorisado agora por ella a recrear-me fóra de casa até ás nove e meia, corria ao fim da rua da Magdalena, ao pé do largo dos Caldas. Ahi, com resguardo, encolhido na gola do meu sobretudo, cosido com o muro, como se o candieiro de gaz que alli havia fosse o olho inexoravel da titi--penetrava sofregamente na escadinha da

Adelia...

Sim, da Adelia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o

Rinchão me levou ao Salitre, o beijo que ella me dera, languida e branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurára mesmo fazer-lhe versos: e esse amor dentro do meu peito foi no ultimo anno de Universidade, no anno de Direito ecclesiastico, como um maravilhoso lirio que ninguem via e que perfumava a minha vida... Apenas a titi me estabeleceu a mezada das tres moedas, corri em triumpho ao Salitre; lá havia as roseirinhas á janella, mas a Adelia já lá não estava. E foi ainda o prestante

Rinchão que me mostrou esse primeiro andar, junto ao largo dos Caldas, onde ella agora vivia patrocinada por Eleuterio Serra, da firma Serra

Brito & C.^a, com loja de fazendas e moelas na Conceição Velha.

Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto: «Minha senhora.» Ella respondeu, com dignidade:--«O cavalheiro póde vir aqui ao meio dia.» Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate, atada com uma fita de sêda azul: pizando commovido a esteira nova da sala, eu antevia, pela engommada brancura das bambinellas, a frescura das suas saias; e o rigido alinho dos moveis revelava-me a rectidão dos seus sentimentos. Ella entrou, um pouco constipada, com um chale vermelho pelos hombros. Reconheceu logo o amigo do Rinchão; fallou da

Ernestina, com severidade, chamando-lhe «porcalhona.» E a sua voz enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus braços, d'um longo dia d'agasalho e somnolencia, sob o peso dos cobertores, na penumbra molle da sua alcova. Depois ella quiz saber se eu era empregado ou estava no commercio... Eu contei-lhe com orgulho a riqueza da titi, os seus predios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas mãos grossas presas nas minhas: --Se a titi agora rebentasse, eu é que lhe punha á menina uma casa chic!

Ella murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar: --Ora! o cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais commigo!

Ajoelhei sobre a esteira, tremulo, esmagando o peito contra os seus joelhos, offertando-me como uma rez; ella abriu o seu chale, aceitou-me misericordiosamente.

Agora, á noitinha (emquanto Eleuterio, no club da rua Nova do Carmo, jogava a manilha) eu tinha alli na alcova da Adelia a radiante festa da minha vida. Levára para lá um par de chinelas--era o eleito do seu seio.

Ás nove e meia, despenteada, envolta á pressa n'um roupão de flanella, com os pés nús, acompanhava-me pela escadinha de traz, colhendo em cada degrau, nos meus labios, um beijo lento e saudoso.

--Adeus, Délinha!

--Agasalha-te, riquinho!

E eu recolhia devagar ao campo de Sant'Anna, ruminando o meu gozo!

O verão passou, languidamente. Os primeiros ventos d'outono levaram as andorinhas e as folhagens do campo de Sant'Anna: e logo n'esse outubro, de repente, a minha vida se tornou mais facil, mais larga. A titi mandára-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão d'ella, indo ouvir a S. Carlos o Poliuto--opera que o dr. Margaride recommendára, como «repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição.» Fui com elle, de luvas brancas, frizado. Depois, no outro dia, ao almoço, contei á titi o devoto enredo, os idolos derrubados, os canticos, as fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo velludo vestia a rainha.

--E sabe quem me veio fallar, titi? O barão d'Alconchel, o ricaço, tio d'aquelle rapaz que foi meu condiscipulo. Veio apertar-me a mão, esteve um bocado commigo no salão... Tratou-me com muita consideração.

A titi gostou d'esta consideração.

Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nedio decote d'uma senhora immodesta, núa nos braços, núa no peito, mostrando toda essa carne, esplendida e irreligiosa, que é a desolação do justo e a angustia da Igreja.

--Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a titi, estava com nojo!

A titi gostou d'este nojo.

E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de chinelas, ao oratorio, a fazer uma curta petição ás chagas do nosso

Christo d'ouro--a titi, já de braços cruzados e somnolenta, disse-me d'entre a sombra do lenço: --Está bom, se queres, volta hoje a S. Carlos... E lá quando te appetecer, não te acanhes, tens licença, pódes ir gozar um bocado de musica... Agora que estás um homem, e que parece que tens proposito, não me importa que fiques fóra, até ás onze ou onze e meia... Em todo o caso a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo prompto, para começarmos o terço.

Ella não viu o triumphante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei, requebrado, a babar-me de gosto devoto: --Lá o terço, titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior divertimento... Nem que el-rei me convidasse para um chásinho no paço!

Corri, delirante, a enfiar a casaca. E este foi o começo d'essa anhelada liberdade que eu conquistára laboriosamente, vergando o espinhaço diante da titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem vinda, agora que Eleuterio Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e deixára a Adelia só, solta, bella, mais jovial, mais fogosa!

Sim, decerto, eu ganhára a confiança da titi com os meus modos pontuaes, sisudos, servis e beatos! Mas o que a levára a alargar assim, com generosidade, as minhas horas de honesto recreio, fôra (como ella disse confidencialmente ao padre Casimiro) a certeza de que eu «me portava com religião e não andava atraz de saias.»

Porque para a tia Patrocinio todas as acções humanas, passadas por fóra dos portaes das igrejas, consistiam em andar atraz de calças ou andar atraz de saias:--e ambos estes dôces impulsos naturaes lhe eram igualmente odiosos!

Donzella, e velha, e resequida como um galho de sarmento; não tendo jámais provado na livida pelle senão os bigodes do commendador G.

Godinho, paternaes e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de

Christo nú, essas jaculatorias das Horas de piedade, soluçantes de amor divino--a titi entranhára-se, pouco a pouco, d'um rancor invejoso e amargo a todas as fórmas e a todas as graças do amor humano.

E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a snr.^a D.

Patrocinio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja.

Um moço grave, amando sériamente, era para ella «uma porcaria!» Quando sabia d'uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava--«que nojo!» E quasi achava a Natureza obscena por ter creado dois sexos.

Rica, apreciando o conforto, nunca quizera em casa um escudeiro--para que não houvesse na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças.

E apesar de irem embranquecendo os cabellos da Vicencia, de ser decrepita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada

Eusebia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos bahús, e até na palha dos enxergões, a vêr se descobria photographia d'homem, carta d'homem, rasto d'homem, cheiro d'homem.

Todas as recreações moças; um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de rosa orvalhado offerecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Paschoa; outras alegrias, ainda mais candidas, pareciam á titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante d'ella já os sisudos amigos da casa não ousavam mencionar d'essas emoventes historias, lidas nas gazetas, e em que transparecem motivos d'amor--porque isso a escandalisava como o desbragamento de uma nudez.

--Padre Pinheiro! gritou ella um dia furiosa, com os oculos chammejantes para o desventuroso ecclesiastico, ao ouvil-o narrar d'uma criada que em

França atirára o filho á sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria!

Mas era ella propria que sem cessar alludia a desvarios e a peccados da

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