REVELAÇÃO
Isabel e Cecilia que voltavão do banho conversando, aproximárão-se da porta, não sem algum susto do animal; susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo, revendo-se na belleza de sua filha. Com effeito, Cecilia estava nesse momento de uma formosura que fascinava. Tinha os cabellos ainda humidos, dos quaes se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perder-se na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão; a pelle fresca como se ondas de leite corressem pelos seus hombros; as faces brilhantes como dous cardos rosas que se abrem ao pôr do sol. As duas meninas fallavão com alguma vivacidade; mas ao aproximarem-se da porta, Cecilia que ia um pouco adiante voltou-se para sua prima na pontinha dos pés, e comum arzinho petulante levou o dedo aos labios recommendando silencio. --Sabes, Celilia, que tua mãi está muito zangada com Pery! disse D. Antonio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijando-a na fronte. --Porque, meu pai? Fez elle alguma cousa? --Umas das suas, e de que já sabes parte. --E eu vou contar-te o resto! atalhou D. Lauriana, tocando com a mão o braço de sua filha. E de facto apresentou com as côres mais negras, e com a emphase mais dramatica, não só o risco imminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavão ainda a paz e o socego da familia. Referio que, se por um milagre a sua caseira não tivesse ha cousa de uma hora chegado á esplanada e visto o indio fazendo partes diabolicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa, todos áquella hora estarião defuntos. Cecilia empallideceu, lembrando-se do descuido e alegria com que atravessára o valle e se banhára; Isabel conservou-se calma, mas seus olhos brilharão. --Assim, concluio peremptoriamente D. Lauriana, não é conceivel que continuemos com semelhante praga em casa. --Que dizeis, minha mãi? exclamou Cecilia assustada: pretendeis manda-lo embora? --Sem duvida: essa casta de gente, que nem gente é, só póde viver bem nos mattos. --Mas elle nos ama tanto! Tem feito tanto por nós não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo: D. Antonio respondeu a sua filha por um sorriso que a socegou: --Vós ralhareis com elle, meu pai: eu ficarei agastada, continuou Cecilia, e elle se emendará e não fará mais outra. --E a de ha pouco? replicou Isabel dirigindo-se a Cecilia. D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças, apezar da repugnancia que sentia por Isabel, conheceu que tinha nella um alliado; e dirigio-lhe a palavra, o que succedia uma vez por semana. --Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido ha pouco? --E tambem um perigo que correu Cecilia. --Qual! minha mãi; foi mais susto de Isabel do que outra cousa. --Susto, sim; mas pelo que vi... --Conta me isto; e tu Cecilia, fica ahi socegada. A menina pelo respeito que tinha a sua mãi não se animou a dizer mais uma palavra; porém aproveitando-se do movimento que fez D. Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça a sua prima pedindo-lhe que nada dissesse. A moça fez que não via o gesto, e respondeu a sua tia: --Cecilia estava se banhando e eu tinha ficado á beira do rio: dahi a algum tempo vejo Pery que passava ao longe pelo galho de uma arvore. Elle sumio-se; e de repente uma setta partida daquelle lugar veio cahir a dous passos de minha prima! --Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as estrepolias do capeta! --No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dous tiros de pistola, que ainda mais nos assustárão, porque de certo forão apontados tambem para nosso lado. --Senhor Deus! É peior do que uma judearia! Mas quem deo pistolas a esse bugio? --Fui eu, minha mãi; respondeu timidamente Cecilia. --Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era bem feito que com ellas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me! D. Antonio tinha ouvido as palavras de Isabel apezar de conservar-se a alguma distancia; o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave. Fez um ligeiro aceno a Cecilia, e afastou-se com ella em ar de quem passeava pela esplanada: --O que diz tua prima é verdade? --É, meu pai; mas estou certa que Pery não o fez por maldade. --Comtudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se, por outro lado tua mãi está atemorisada; assim, o melhor é afasta-lo. --Elle vai sentir muito!! --E eu e tu tambem porque o estimamos; mas não seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão; deixa isto ao meu cuidado. --Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar humido de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis comprehender tudo que é nobre! --Como tu, minha Cecilia! respondeu o fidalgo acariciando-a. --Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas menores acções. D. Antonio abraçou-a. --Ah! tenho uma cousa a pedir-vos! --Dize: ha muito que não me pedes nada, e eu já tenho queixa disto. --Mandareis conservar este animal? Sim! --Desde que o desejas... --Será uma lembrança que teremos de Pery. --Para ti, que para mim a melhor lembrança és tu. Se não fosse elle, podia eu agora apertar-te nos meus braços? --Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que elle se vai? --É natural, minha filha, as lagrimas são um balsamo que Deus deo á fraqueza da mulher, e que negou á força do homem. O fidalgo separou-se de sua filha, e chegou-se á porta onde se achavão ainda sua mulher, Isabel e Ayres Gomes. --Que decidistes, Sr. D. Antonio? perguntou a dama. --Decidi fazer-vos a vontade, para socego vosso e descanço meu. Hoje mesmo ou amanhã Pery deixará esta casa; mas emquanto elle aqui estiver, eu não quero, disse carregando ligeiramente sobre aquelle monosyllabo, que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado. Pery sahe desta casa porque lh'o peço, e não porque isto seja-lhe ordenado por alguem. Entendeis, minha mulher? D. Lauriana, que comprehendia o que havia de energia e resolução naquelle imperceptivel entoação dada pelo fidalgo a uma simples phrase, inclinou a cabeça. --Incumbo-me de fallar eu mesmo a Pery! Dir-lhe-has de minha parte, Ayres Gomes, que venha ter comigo. O escudeiro inclinou-se; o fidalgo que se ia retirando, voltou-se: --Ah! esquecia-me. Mandaras encher este lindo animal que desejo conservar; será uma curiosidade para o meu gabinete d'armas. D. Lauriana fez á sorrelfa uma careta de nojo. --E servirá para que minha mulher se habitue com sua vista, e tenha menos medo de onças. D. Antonio afastou-se. A dama pôde então ir riçar os seus cabellos, e preparar o seu toucado domingueiro; tinha alcançado uma importante victoria. Pery ia finalmente ser expulso desta casa, onde na sua opinião nunca devêra ter entrado. Emquanto isto passava, Cecilia, ao separar-se de seu pai, voltára o canto da casa para entrar no jardim, e encontrára Alvaro que passeava inquieto e pensativo. --D. Cecilia! disse o moço. --Oh! deixai-me, Sr. Alvaro! respondeu Cecilia sem parar. --Em que vos offendi eu para que me trateis assim? --Desculpai-me, estou triste; em nada me offendestes. --É que quando se commetteu uma falta... --Uma falta? perguntou a menina admirada. --Sim! respondeu o moço abaixando os olhos. --E que falta commettestes vós, Sr. Alvaro? --Desobedeci-vos. --Ah! é grave! disse a moça com um meio sorriso. --Não zombeis, D. Cecilia! Se soubesseis que inquietações isto me tem feito passar! Arrependo-me mil vezes do que pratiquei, e comtudo parece-me que era capaz de pratica-lo de novo. --Mas, Sr. Alvaro, esqueceis que fallais de uma cousa que ignoro; sei apenas que se trata de uma desobediencia! --Lembrais-vos que hontem me mandastes guardar um objecto, que... --Sim! atalhou a moça corando; um objecto que... --Que vos pertencia, e que eu contra vontade vossa restitui. --Como! que dizeis! --Oh! perdoai! foi uma ousadia! mas... --Mas emfim eu não entendo nem uma palavra de tudo isto! exclamou a moça com um movimento de impaciencia. Alvaro vencendo emfim o seu acanhamento contou rapidamente o que linha feito na vespera á noite. Cecilia ouvindo-o, ia se tornando séria. --Sr. Alvaro, disse ella n'um tom de exprobração, fizestes mal em praticar semelhante acção, muito mal. Que ninguem o saiba ao menos. --Eu juro pela minha honra! --Não basta; vós mesmo desfareis o que fizestes. Não abrirei aquella janella emquanto houver alli um objecto que não me veio de meu pai, e em que não posso tocar. --Senhora!... balbuciou o moço pallido e abatido. Cecilia levantou os olhos, e viu no rosto de Alvaro tanta amargura e desespero, que sentio-se commovida. --Não me accuseis de que succede, disse ella com a voz meiga, a culpa é vossa. --Eu o sinto; e não me queixo. --Bem vistes que não podendo acceitar, pedi que conservasseis como uma lembrança. --Oh! eu a conservarei ainda; ella me ensinará a expiar a minha falta, e m'a recordará sempre. --Será agora uma triste recordação... --E posso-as eu ter alegres! --Quem sabe! disse Cecilia desentrançando dos seus cabellos louros um jasmim; é tão doce esperar! Voltando-se para esconder o rubor de suas faces, Cecilia viu perto a Isabel que devorava esta scena com um olhar ardente. A menina soltou um grito de susto e entrou rapidamente no jardim. Alvaro apanhou no ar a pequena flôr que se escapára dos dedos de Cecilia e beijou-a julgando que ninguem alli estava. Quando o cavalheiro deo com os olhos na moça, ficou tão perturbado que deixou cahir o jasmim sem sentir. Isabel apanhou-o; e apresentando a Alvaro, disse com um accento de voz inimitavel: --É tambem uma restituição! Alvaro empallideceu. A moça tremula passou diante delle, e entrou no quarto de sua prima. Cecilia vendo chegar Isabel corou, e não se animou a levantar os olhos, lembrando-se do que ella tinha visto e ouvido: pela primeira vez a innocente menina conhecia que havia na sua pura affeição alguma cousa que se escondia aos olhos dos outros. Isabel, entrando no aposento da prima ao qual fôra arrastada por um sentimento irresistivel, arrependera-se immediatamente; a perturbação que sentia era tão grande, que temeu trahir-se; encostou-se no leito defronte de Cecilia, muda e com os olhos cravados no chão. Assim passou-se um longo intervallo; depois as duas moças quasi ao mesmo tempo erguêrão a cabeça e lançárão um olhar para a janella; seus olhos se encontrárão, e ambas corárão ainda mais. Cecilia revoltou-se; a menina alegre e travessa que conservava n'um cantinho do coração, sob os risos e as graças, o germem da firmeza de caracter que distinguia seu pai, sentio-se offendida por se ver obrigada a córar de vergonha diante de outrem, como se tivesse commettido uma falta. Revestio-se de coragem, e tomou uma resolução cuja energia se desenhava em um movimento imperceptivel das sobrancelhas. --Isabel, abre esta janella. A moça estremeceu como se uma faisca electrica tivesse abalado o seu corpo; hesitou, mas por fim atravessou o aposento. Dous olhares avidos, ardentes, cahirão sobre a janella no momento em que se abrio. Nada havia alli. A emoção que teve Isabel foi tão forte, que involuntariamente voltou-se para sua prima soltando uma exclamação de prazer; sua physionomia illuminou-se com um desses reflexos divinos, que parecem descer do céo sobre a cabeça da mulher que ama. Cecilia olhava sua prima sem comprehendê-la; mas a pouco e pouco a admiração e o espanto desenháráo-se no semblante da menina. --Isabel!... A moça cahio de joelhos aos pés de Cecilia. Tinha-se trahido.