Aa

O Cortiço

por Aluizio Azevedo

19

D'ahi a dias, com effeito, a estalagem mettia-se em obras. Á desordem do desentulho do incendio succedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manhã até á noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engommadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas. Os que ficaram sem casa foram aboletados a troxe-moxe por todos os cantos, á espera dos novos commodos. Ninguem se mudou para o Cabeça de Gato. As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os antigos moradores tinham preferencia e vantagens nos preços. Um dos italianos feridos morreu na Misericordia e o outro, tambem lá, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhêra-se á Ordem de que era irmão, e Leocadia, que não quiz attender áquella carta escripta por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o sou homem no hospital. Que alegirão para o infeliz a volta da mulher, aquella mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem elle, apezar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocadia decidio tornar para o São Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha bregeirices. Piedade, essa é que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jeronymo; emmagrecêra em extremo, perdêra as côres do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguem lhe ouvia fallar no nome do esposo. Esses mezes, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem. O cortiço não dava idéa do seu antigo caracter, tão accentuado e no emtanto tão mixto: aquillo agora parecia uma grande officina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por signaes. As lavadeiras fugiram para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujavam-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo prompto; e, com immenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia tambem entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar d'ella sómente algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas á portugueza; abriria as portas em arco, suspenderia o tecto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para metter o do outro no chinello; quatro janellas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O logar em que elle dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte da taverna, um grande armazem, em que o seu commercio iria fortalecer-se e alargar-se. O Barão e o Botelho appareciam por lá quasi todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do visinho; examinavam os materiaes escolhidos para a construcção, batiam com a biqueira do chapéo de sol no pinho de Riga destinado ao assoalho, e affectando-se bons entendedores, tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os operarios faziam barro. Ás vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, collete e corrente de relogio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das occupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hoteis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do commercio. E a crioula? Como havia de ser? Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam porque lhe dissessem. Sim, porque aquella bôa casa que se estava fazendo, e os ricos moveis encommendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não seriam de certo para os beiços da negra velha! Conserval-a-ia como criada? Impossivel! Todo Botafogo sabia que elles até ahi fizeram vida commum! Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o visinho e contentavam-se em boquejar entre si mysteriosamente, palpitando ambos por ver a sahida que o vendeiro acharia para semelhante situação. Maldita preta dos diabos! Era ella o unico defeito, o senão, de um homem tão importante e tão digno! Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar á casa do Miranda. Iam juntos ao theatro. João Romão dava o braço á Zulmira, e, procurando galanteal-a e mais ao resto da familia, desfazia-se em obsequios brutaes e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, elle fazia vir logo tres, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessario e accumulando compras inuteis de doces, flôres e tudo que apparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar á gente do Miranda, que nunca voltavam para casa sem um homem atraz, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava. E Bertoleza bem que comprehendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Elle ultimamente mal se chegava para ella e, quando o fazia, era com tal repugnancia, que antes o não fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras, e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a misera desejava, era sómente confiança no amparo da sua velhice, quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes silencios durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus paes que a deixaram nascer e crescer no captiveiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si propria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nodoa d'aquella prosperidade brilhante e clara. E, no emtanto, adorava o amigo; tinha por elle o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravisam, d'essas que morrem de ciumes, mas que tambem são capazes de matar-se para poupar ao seu idolo a vergonha do seu amor. O que custava áquelle homem consentir que ella, uma vez por outra, se chegasse para junto d'elle? Todo o dono, nos momentos de bom humor, affaga o seu cão... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estreito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, á noite vendendo-o á porta, para descançar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, immunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham á luz. Afinal, convencendo-se de que ella, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguem, nem tão pouco para si, desabou n'um fundo entorpecimento apathico, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se aspera, desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da bocca. E durante dias inteiros, sem interromper o serviço, que ella fazia agora automaticamente, por um habito de muitos annos, gesticulava e mexia com os labios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indifferente a tudo, a tudo que a cercava. Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho, as lagrimas saltaram dos olhos da infeliz, e ella teve de abandonar a obrigação, porque o pranto e os soluços não lhe deixavam fazer nada. Botelho havia dito ao vendeiro: --Faça o pedido! É occasião. --Hein? --Póde pedir a mão da pequena. Está tudo prompto! --O Barão dá-m'a? --Dá. --Tem certeza d'isso? --Ora! se não tivesse não lh'o diria d'este modo! --Elle prometteu? --Fallei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorisado por você. Fiz mal? --Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada! --Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe fallar, comprehende? --Ou escrever. --Tambem. --E a menina? --Respondo por ella. Você não tem continuado a receber as flôres? --Tenho. --Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando tambem as suas e faça o que lhe disse.--Atire-se, seu João, atire-se emquanto o angú está quente! Por outro lado, Jeronymo empregára-se na pedreira de São Diogo, onde trabalhava d'antes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova. Tiveram de fazer muita despeza para se installarem; foi-lhes preciso comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do São Romão Jeronymo só levou dinheiro, dinheiro que elle já não sabia poupar. Com o asseio da mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama, lençóes de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas de meza, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e uzavam sabonetes finos. Plantaram á porta uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela manhã flôres escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais gostavam; compraram gallinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para elles, porque o da estalagem repugnou á bahiana que, n'esse ponto, era muito escrupulosa. A primeira parte da sua lua de mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto elle como ella, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumíra-se, quasi que exclusivamente, nos oito palmos de colchão novo, que nunca chegava a esfriar de todo. Jámais a existencia pareceu tão boa e corredia para o portuguez; aquelles primeiros dias fugiram-lhe como estrophes seguidas de uma deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos, n'aquelle collo carnudo e doirado da mulata, a que o cavouqueiro se abandonara como um bebedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotavel de vinho gostoso. Estava completamente mudado. Rita apagára-lhe a ultima restea das recordações da patria; seccou, ao calor dos seus labios grossos e vermelhos, a derradeira lagrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou. A guitarra! substituio-a ella pelo violão bahiano, e deu-lhe a elle uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em que ha caboclinhos corropiras que no sertão vêm pitar á beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vae passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai d'elles! o corropira transforma-os em bicho do matto. E deu-lhe do seu de comer da Bahia, temperado como fogoso azeite de dendem, côr de braza; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, e habituou-lhe a carne ao cheiro sensual d'aquelle seu corpo de cobra, lavado tres vezes ao dia e tres vezes perfumado com hervas aromaticas. O portuguez abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagancias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fôra-se-lhe de vez o espirito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, á felicidade de possuir a mulata e ser possuido só por ella, só ella, e mais ninguem. A morte do Firmo não vinha nunca toldar-lhes o goso da vida; quer elle, quer a amiga, achavam a coisa muito natural. «O facinora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia pois acabar como acabou! Nada mais justo! Se não fosse Jeronymo, seria outro! Elle assim o quiz--bem feito!» Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausencia do marido, chorava o seu abandono e ia tambem agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lagrimas bastavam para adoçar as agruras. A principio, ainda a pobre de Christo tentou resistir com coragem áquella viuvez peior que essa outra, em que ha, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem bocca para pedir amores; mas depois começou a afundar sem resistencia na lama do seu desgosto, covardemente, sem forças para illudir-se com uma esperança fatua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus principios, do seu proprio caracter, sem se ter já n'este mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver sómente porque a vida era teimosa e não queria deixal-a ir apodrecer lá em baixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguezas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bolir nas economias que Jeronymo lhe deixára, porque isso devia ser para a filha, aquella probrezita orphanada antes da morte dos paes. Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dôres de cabeça, zoada nos ouvidos e o estomago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de paraty. Ella aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetio a doze; deu-se bem com a perturbação em que a punha o alcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituára-se a beber todos os dias o seu meio martello de aguardente, para enganar os pezares. Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha puzesse os pés no cortiço, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ella. Sahira uma criança forte e bonita; puxara do pae o vigor physico e da mãe a expressão bondosa da physionomia. Já tinha nove annos. Eram esses agora os unicos bons momentos da pobre mulher, esses que ella passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predilecção com que amavam Pombinha, porque em toda aquella gente havia uma necessidade moral de eleger para mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a quem elles privilegiavam respeitosamente, como subditos a um principe. Chrismaram-na logo com o cognome de «Senhorinha». Piedade, apezar do procedimento do marido, ainda no intimo se impressionava com a idéa de que não devia contrarial-o nas suas disposições de pae. «Mas que mal tinha que a pequena fosse ali?... Era uma esmola que fazia á mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já nascêra para a perdição! A outra não se conservára sã e pura? não achára noivo? não casára e não vivia dignamente com o seu marido? Então?!» E Senhorinha continuou a ir á estalagem, a principio nos domingos pela manhã, para voltar á tarde, depois já de vespera, nos sabbados, para só tornar ao collegio na segunda feira. Jeronymo, ao saber disto, por intermedio da professora, revoltou-se no primeiro impeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar á mulher aquelle consolo. «Coitada! devia viver bem aborrecida da sorte!» Tinha ainda por ella um sentimento compassivo, em que a melhor parte nascêra com o remorso. «Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse companhia!» E então, para ver a filha, tinha que ir ao collegio nos dias de semana. Quasi sempre levava-lhe presentes de doce, fructas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas, um bello dia, apresentou-se tão ebrio, que a directora lhe negou a entrada. Desde essa occasião, Jeronymo teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas á filha tornaram-se muito raras. Tempos depois, Senhorinha entregou á mãe uma conta de seis mezes da pensão do collegio, com uma carta em que a directora negava-se a conservar a menina, no caso que não liquidassem promptamente a divida. Piedade levou as mãos á cabeça: «Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse Deus! onde iria ella fazer dinheiro para educar a filha?!» Foi á procura do marido; já sabia onde elle morava. Jeronymo recusou-se, por vexame; mandou dizer que não estava em casa. Ella insistio; declarou que não arredaria d'alli sem lhe fallar; disse em voz bem alta que não ia lá por elle, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do collegio; ia para saber que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser engeitada na roda! Jeronymo appareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que não tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao vel-o, perdeu logo toda a energia com que chegára e com moveu-se tanto, que as lagrimas lhe saltaram dos olhos ás primeiras palavras que lhe dirigio. E elle abaixou os seus e fez-se livido defronte d'aquella figura avelhantada, de pelles vazias, de cabellos sujos e encanecidos. Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quasi a pedir-lhe perdão, a voz muito expremida no aperto da garganta. --Minha pobre velha!... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça. E os dois emmudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentio ancies de atirar-se-lhe nos braços, possuida de imprevista ternura com aquelle simples affago do seu homem. Um subito raio de esperança illuminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes accumulados ultimamente no seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e asperas, ser talvez repellida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridiculo pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontral-o tambem triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jeronymo, cujas lagrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao hombro e depois á cintura da esposa, ella desabou, escondendo o rosto contra o peito d'elle, n'uma explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro. Por algum tempo choraram ambos abraçados. --Consola-te! que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro afinal limpando os olhos. Foi como se eu te tivesse morrido ... mas pódes ficar certa de que te estimo e nunca te quiz mal!... Volta para casa; eu irei pagar o collegio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vae, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdôe os desgostos que te tenho eu dado! E acompanhou-a até ao portão da estalagem. Ella, sem poder pronunciar palavra, sahio cabisbaixa, a enxugar os olhos no chale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado. Entretanto, Jeronymo não mandou saldar a conta do collegio, no dia seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do mez; e elle, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ir buscar dinheiro n'aquella occasião? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada e amiga de gastar á larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer presentes. Elle, receioso de contrarial-a e quebrar o ôvo da sua paz, até ahi tão completo com respeito á bahiana, subordinava-se calado e affectando até satisfação; no intimo, porém, o infeliz soffria deveras. A lembrança constante da filha e da mulher apoquentavam-no com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua consciencia, á proporção que esta ia acordando d'aquella cegueira. O desgraçado sentia e comprehendia perfeitamente todo o mal da sua conducta; mas só a idéa de separar-se da amante, punha-lhe logo o sangue doido e apagava-lhe de novo a luz dos raciocinios. «Não! não! Tudo que quizessem, menos isso!» E então, para fugir áquella voz irrefutavel, que estava sempre a serrazinar dentro delle, bebia em camaradagem com os companheiros e habituára-se, dentro em pouco, á embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o bebendo, n'uma roda de amigos. Jeronymo recebeu-as com grande escarcéo de alegria. Fel-as entrar. Beijou a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamação de enthusiasmo. Com um milhão de raios! Que linda estava a sua morgadinha! Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida! Houve uma scena de constrangimentos, quando a portugueza se vio defronte da bahiana. --Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jeronymo, a empurral-as uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas! As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava escarlate de vergonha. --Ora muito bem! accrescentou o cavouqueiro, agora, para a coisa ser completa, hão de jantar comnosco! A portugueza oppoz-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não aceitou. --Não as deixo sahir! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as saudades? Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela occasião de entender-se com o marido sobre o negocio do collegio. Rita, voluvel como toda a mestiça, não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obzequios com a familia do amigo. As outras visitas sahiram antes do jantar. Puzeram-se á mesa ás quatro horas e principiaram a comer com boa disposição, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de collegio parecia, entre aquella gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pae acabrunhava-a com as suas solicitudes brutaes e com as suas perguntas sobre os estudos. Á excepção d'ella, todos os outros estavam, antes da sobremeza, mais ou menos chumbados pelo vinho. Jeronymo, esse estava de todo. Piedade, instigada por elle, esvasiára frequentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, déra para queixar-se amargamente da vida; foi então que ella, já com azedume na voz, fallou na divida do collegio e nas ameaças da directora. --Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu tambem para ahi com essa mastigação! Deixa as tristezas para outra vez! Não nos amargures o jantar! --Triste sorte a minha! --Ai, ai! que temos lamuria! --Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?! --Sim? Pois se é para isso que aqui vens melhor será não tornares cá!... resmungou Jeronymo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Tambem o sou e não me queixo de Deus! Piedade abrio a soluçar. --Ahi temos! berrou o marido, erguendo-se e dando uma punhada forte sobre a meza. E aturem-na! Por mais que um homem se não queira zangar, ha de estoirar por força! Ora bolas! Senhorinha correu para junto do pae, procurando contel-o. --Sebo! berrou elle, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou disposto a aturar isto! Arre! --Eu não vim cá por passeio!... proseguio Piedade entre lagrimas! Vim cá para saber da conta do collegio!... --Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não tenho nenhum! --Ah! então com que não pagas?! --Não! Com um milhão de raios! --É que és ainda muito peior do que eu suppunha! --Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e despache o becco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira! --Minha pobre filha! Quem olhará por ella, Senhor dos afflictos?! --A pequena já não precisa de collegio! deixe-a cá commigo, que nada lhe faltará! --Separar-me de minha filha? a unica pessoa que me resta?! --Ó mulher! você não está separada d'ella a semana inteira?... Pois a pequena, em vez de ficar no collegio, fica aqui, e aos domingos irá vel-a! Ora ahi tem! --Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade. --Ah! tambem tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os diabos! e não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me! --Vamos d'aqui! gritou a portugueza, travando da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá! E as duas, mãe e filha, desappareceram; emquanto Jeronymo, passeiando de um para outro lado, monologava, furioso sob a fermentação do vinho. Rita não se mettêra na contenda, nem se mostrára a favor de nenhuma das partes. «O homem, se quizesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ella não o prenderia, porque amor não era obrigado!» Depois de fallar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira, despejou sombrio dois dedos de laranginha n'um copo e bebeu-os de um trago. --Arre! Assim tambem não! A mulata então approximou-se d'elle, por detraz; segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na bocca, arredando com os labios a espessura dos bigodes. Jeronymo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio sobre as suas coxas. --Não te rales, meu bem! disse ella, affagando-lhe os cabellos. Já passou! --Tens razão! besta fui eu em deixal-a pôr pé cá dentro de casa! E abraçaram-se com impeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse uma interrupção nos seus amores. Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no hombro da filha, esperava que as lagrimas cedessem um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas.

O que você achou desta história?

Seja o primeiro a avaliar!

Você precisa entrar para avaliar.

Você também pode gostar