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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

23

A porta de uma confeitaria da rua do Ouvidor, João Romão, apurado n'um fato novo de casimira clara, esperava pela familia do Miranda, que n'esse dia andava em compras.

Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo estava magnifico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e sahia, a passo frouxo, da casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos charutos, á espera que desoccupassem uma das mezinhas de marmore preto; grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto. Respirava-se um cheiro agradavel de essencias e vinagres aromaticos; havia um rumor quente e garrido, mas bem educado; namorava-se forte, mas com disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto ás estufas; algumas pessoas liam já os primeiros jornaes da tarde; serventes, muito atarefados, despachavam compras de doce e biscoitos e faziam sem descançar, pacotes de papel de côr, que os compradores levavam pendurados n'um dedo. Ao fundo, de um dos lados do salão, aviavam-se grandes encommendas de banquetes para essa noite, traziam-se lá de dentro, já promptas, torres e castellos de balas e trouxas d'ovos e imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados desciam das prateleiras as enormes baixellas de metal branco, que os companheiros iam embalando em caixões com papel fino picado. Os empregados das secretarias publicas vinham tomar o seu vermuth com siphão; reporteres insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos politicos, com o chapéo á ré, avidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão sem deixar a porta, apoiado no seu guarda chuva de cabo de marfim, recebia cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe fallar. Elle tinha sorrisos e offerecimentos para todos os lados; e consultava o relogio de vez em quando.

Mas a familia do Barão surgio afinal. Zulmira vinha na frente, com um vestido côr de palha justo ao corpo, muito elegante no seu typo de fluminense pallida e nervosa; logo depois Dona Estella, grave, toda de negro, passo firme e ar severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus deveres. O Miranda acompanhava-as, de sobrecasaca, fitinha ao peito, o collarinho até ao queixo, botas de verniz, chapéo alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao darem com João Romão, elle sorrio e Zulmira tambem; só Dona Estella conservou inalteravel a sua fria mascara de mulher que não dá verdadeira importancia senão a si mesma.

O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro d'elles, cheio de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que tomassem alguma coisa.

Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira meza que se esvaziou. Um criado acudio logo e João Romão, depois de consultar Dona Estella, pedio sandwichs doces e moscatel de Setubal. Mas Zulmira reclamou sorvete e licor. E só esta fallava; os outros estavam ainda á procura de um assumpto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo considerava o tecto e as paredes, fez algumas considerações sobre as reformas e novos adornos do salão da confeitaria. Dona Estella dirigio, de má, a João Romão varias perguntas sobre a companhia lyrica, o que confundio por tal modo ao pobre homem, que o poz vermelho e o desnorteou de todo. Felizmente, n'esse instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte de um sargento no quartel; questão entre inferior e superior. O sargento, insultado por um official do seu batalhão, levantara a mão contra elle, e o official então arrancára da espada e atravessára-o de lado a lado. Estava direito! Ah! elle era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantar a mão para um official superior!... devia ficar estendido ali mesmo, que duvida!

E faiscavam-lhe os olhos no seu inverterado enthusiasmo por tudo que cheirasse á farda. Vieram logo as anecdotas analogas; o Miranda contou um facto identico que se dera vinte annos atraz e Botelho citou uma enfiada d'elles interminavel.

Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão á mulher, e seguiram todos para o largo de São Francisco, lentamente, em andar de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados Miranda queria que o visinho acceitasse um logar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer na cidade e pedio dispensado obsequio. Botelho tambem ficou; e, mal a carroagem partio, este disse ao ouvido do outro, sem tomar folego:

--O homem vae hoje, sabe? Está tudo combinado!

--Ah! vae? perguntou João Romão com interesse, estacando no meio do largo. Ora graças! Já não é sem tempo!

--Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma campanha!

--Ha que tempo já tratamos d'isto!...

--Mas que quer você, se o homem não apparecia?... Estava fóra! Escrevi-lhe varias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhal-o. Fui tambem á policia duas vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo prompto! mas você deve estar em casa para entregar a crioula quando elles lá se apresentarem ...

--Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar presente...

--Ora essa! Então com quem se entendem elles?.... Não! tenha paciencia! é preciso que você lá esteja!

--Você podia fazer as minhas vezes...

--Peior! Assim não arranjamos nada! Qualquer duvida póde entornar o caldo! E melhor fazer as coisas bem feitas Que diabo lhe custa isto?... Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega--prompto! Fica livre d'ella para sempre, e d'aqui a dias estoira o champanha do casorio! Hein, não lhe parece?

--Mas...

--Ella ha de choramigar, lazer lamurias e coisas, mas você pôe-se duro e deixe-a seguir lá o seu destino!

Bolas! não foi você que a fez negra!...

--Pois vamos lá! creio que são horas.

--Que horas são!

--Tres e vinte.

--Vamos indo.

E desceram de novo a rua do Ouvidor até ao ponto dos bondes de Gonçalves Dias.

--O de São Clemente não está agora, observou o velho. Vou tomar um copo d'agoa emquanto o esperamos.

Entraram no botequim do logar e, para conversar assentados, pediram dois calices de cognac.

--Olhe, acrescentou Botelho; você nem precisa dizer palavra ... faça como coisa que não tem nada com isso, comprehende?

--E se o homem quizer os ordenados de todo o tempo em que ella esteve em minha companhia?...

--Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguem?!... Você não sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora apparece o dono, reclama-a, e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não pertence! Ella sim, póde pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe dará qualquer coisa...

--Quanto devo dar-lhe?

--Ahi uns quinhentos mil reis, para fazer a coisa á fidalga.

--Pois dou-lh'os.

--E feito isso--acabou-se! O proprio Miranda vae logo, logo, ter com você! Verá!

Iam fallar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assaltado por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram logar muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar durante a viagem.

No largo da Carioca uma victoria passou por elles, a todo o trote. Botelho vergou-se logo para traz, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com intenção. Dentro de carro ia Pombinha, coberta de joias, ao lado de Henrique; ambos muito alegres, em pandega. O estudante, agora no seu quarto anno de medicina, vivia á solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.

Ao chegarem á casa, João Romão pedio ao cumplice que entrasse e levou-o para o seu escriptorio.

--Descance um pouco ... disse-lhe.

--É, se eu soubesse que elles se não demoravam muito, ficava para ajudal-o.

--Talvez só venham depois do jantar, tornou aquelle, assentando-se á carteira.

Um caixeiro approximou-se d'elle respeitosamente e fez-lhe varias perguntas relativas ao serviço do armazem, ao que João Romão respondia por monosyllabos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia novidade, tomou Botelho pelo braço e convidou-o a sahir.

--Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada.

Já não era preciso prevenir lá defronte, porque agora o velho parazita comia muitas vezes em casa do visinho.

O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente dominados por um vago sobresalto. João Romão foi pouco além da sôpa e quiz logo a sobremeza.

Tomavam café, quando um empregado subio para dizer que lá em baixo estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava fallar ao dono da casa.

--Vou já! respondeu este.

E accrescentou para o Botelho:--São elles!

--Deve ser, confirmou o velho.

--E desceram logo.

--Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao armazem.

Um homem alto, com ar de estroina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de papel.

João Romão, um pouco tremulo, abrio-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um silencio formou-se em torno d'elle; os caixeiros pararam em meio do serviço, intimidados por aquella scena em que entrava a policia.

--Está aqui com effeito ... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...

--É minha escrava, affirmou o outro. Quer entregar-m'a?...

--Mas immediatamente.

--Onde está ella?

--Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...

O sujeito fez signal aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, á frente d'elles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atraz, pallido, com as mãos crusadas nas costas.

Atravessaram o armazem, depois um pequeno corredor que dava para um pateo calçado, e chegaram finalmente á cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cocaras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando vio parar defronte d'ella aquelle grupo sinistro.

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. N'um relance de grande perigo comprehendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matal-a, restituia-a ao captiveiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir, Mal, porém, circumvagou os olhos em torno de si, procurando escapúla, o senhor adiantou-se d'ella e segurou-lhe o hombro.

--É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a seguil-os.--Prendam-na! É escrava minha!

A negra, immovel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para elles, sem pestanejar:

Os policias, vendo que ella se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com impeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguem conseguisse alcançal-a, já de um só golpe certeiro e fundo rasgára o ventre de lado a lado.

E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazem, tapando o rosto com as mãos.

N'esse momento parava á porta da rua uma carruagem. Era uma commissão de abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de socio benemerito.

Elle mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

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