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Meia hora depois, quando João Romão se vio menos occupado, foi ter com o sujeito que o procurava e assentou-se defronte d'elle, cahindo de fadiga, mas sem se queixar, nem se lhe trahir na physionomia o menor symptoma de cansaço.
--Você vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Elle fallou-me de um homem que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lagedo...
--Sou eu.
--Estava empregado n'outra pedreira?
--Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me d'ella e quero passar adiante.
--Quanto lhe dão lá?
--Setenta mil réis.
--Oh! Isso é um disparate!
--Não trabalho por menos...
--Eu, o maior ordenado que faço é de cincoenta.
--Cincoenta ganha um macaqueiro...
--Ora! tenho ahi muitos trabalhadores de lagedo por esse preço!
--Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não encontra por cincoenta mil réis quem dirija a broca, pese a polvora e lasque fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres!
--Sim, mas setenta mil réis é um ordenado impossivel!
--N'esse caso vou como vim... Fica o dito por não dito!
--Setenta mil réis é muito dinheiro!...
--Cá por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um trabalhador bom, do que estar a soffrer desastres, como o que soffreu sua pedreira a semana passada! Não fallando na vida do pobre de Christo que ficou debaixo da pedra!
--Ah! O Machucas fallou-lhe no desastre?
--Contou-m'o, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem soubesse fazer o serviço!
--Mas setenta mil réis é impossivel. Desça um pouco!
--Por menos não me serve... E escusamos de gastar palavras!
--Você conhece a pedreira?
--Nunca a vi de perto, mas quiz me parecer que é boa. De longe cheirou-me a granito.
--Espere um instante.
João Romão deu um pulo á venda, deixou algumas ordens, enterrou um chapéo na cabeça e voltou a ter com o outro.
--Ande a ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se esvaziara de todo.
O cavouqueiro pagou doze vintens pelo seu almoço e acompanhou-o em silencio.
Atravessaram o cortiço.
A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéo de palha, apezar das toldas que se armaram. Um calor de caustico mordia-lhes os toutiços em brasa e scintillantes de suor. Um estado febril apoderava se d'ellas n'aquelle rescaldo; aquella digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona altercava com uma preta que fôra reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito molle sobre a sua taboa de lavar, parecia derreter-se como cebo; a Leocadia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa monologava, resmungando n'uma insistencia de idiota, ao lado da Marcianna que, com o seu typo de mulata velha, um cachimbo ao canto da bocca, cantava toadas monotonas do sertão:
«Maricas tá marimbando.
Maricas tá marimbando,
Na passage do riacho
Maricas tá marimbando.»
A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assobiava os chorados e lundús que se tocavam na estalagem, e junto d'ella, a melancolica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro da tina, automaticamente, como um condemnado a trabalhar no presidio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem lymphatico, batia na taboa um par de calças, no rhythmo cadenciado e miudo de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e elle, de vez em quando, suspendia o lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia-lhe aos labios.
Da casinha numero 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das Dores que principiava o seu serviço; não sabia engommar sem cantar. No numero 7 Nênêm cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo da estalagem sahia de espaço a espaço uma nota aspera de trombone.
O vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apanhava roupa do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais em evidencia.
--Não bula, hein?!... gritou ella, rapido, erguendo-se teza.
E, dando com João Romão:--Eu logo vi! Leva implicando aqui com a gente e depois, vae-se comprar na venda, o safado rouba no peso! Diabo do gallego! Eu não te quero, sabe?
O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugio, porque ella se armára com um regador cheio d'agoa.
--Vem p'ra cá, se és capaz! Diabo da peste!
João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro.
--O senhor tem aqui muita gente!... observou-lhe este.
--Oh! fez o outro, sacudindo os hombros, r disse depois com empafia:--Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é tudo gente séria! Não ha chinfrins n'esta estalagem; se apparece uma rusga, eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos entrou cá a policia, nem nunca la deixaremos entrar! E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muito boa!
Tinham chegado ao fim do pateo do cortiço e, depois de transporem uma porta que se fechava com um pezo amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que havia antes da pedreira.
--Vamos por aqui mesmo que é mais perto, aconselhou o vendeiro.
E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e trescalante.
Meio dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava á luz irreconciliavel de dezembro, n'um dia sem nuvens. A pedreira, em que ella batia de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martyrisar a vista para descobrir as nuances da pedra; nada mais que uma grande mancha branca e luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho miudo, que ao longe produzia o effeito de um betume cinzento, e pela parte de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros tons mais do que nodoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro.
Á proporção que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno ia-se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças, algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras já promptas para seguir, a espera do animal, e outras enfim com os braços para o ar, como se acabassem de ser despejadas n'aquelle instante. Homens labutavam.
Á esquerda, por cima de um vestigio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquelle sol sedento, havia uma ponte de taboas, onde tres pequenos, quasi nús, conversavam assentados, sem fazer sombra, illuminados a prumo pelo sol do meio dia. Para adiante, na mesma direcção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre columnas de pedra tosca; ahi muitos portuguezes trabalhavam de canteiro, ao barulho metallico do picão que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma officina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objectos quebrados, entre os quaes avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nú, banhados de suor e alumiados de vermelho como dous diabos, martellavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto d'elles, a forja escancarava uma guela infernal, d'onde sahiam pequenas linguas de fogo, irrequietas e gulosas.
João Romão parou á entrada da officina e gritou para um dos ferreiros:
--Ó Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão!
Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.
--Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena concertal-o; está todo comido de ferrugem! Faz se-lhe um novo, que é melhor!
--Pois veja lá isso, que a lanterna está a cahir!
E o vendeiro seguio adiante com o outro, emquanto atrás recomeçava o martellar sobre a bigorna.
Em seguida via-se uma miseravel estrebaria, cheia de capim secco e excremento de bestas, com logar para meia duzia de animaes. Estava deserta, mas, no vivo fartum exhalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquella noite. Havia depois um deposito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de officina de carpinteiro, tendo á porta troncos d'arvore, alguns já cerrados, muitas taboas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio.
D'ahi á pedreira restavam apenas uns cincoenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moida que sujava como a cal.
Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afeiçoavam lagedos a ponta de picão; mais adiante faziam parallelepipedos a escopro e macete. E todo aquelle retimtim de ferramentas, e o martellar da forja, e o côro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zuada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a idéa de uma actividade feroz, de uma luta de vingança e de odio. Aquelles homens gottejantes de suor, bebedos de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demonios revoltados na sua impotencia contra o impassivel gigante que os contemplava com desprezo, imperturbavel a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito.
O membrudo cavouqueiro havia chegado á fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, medio-o de alto abaixo, arrogante, n'um desafio surdo.
A pedreira mostrava n'esse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, affrontando o céo, muito ingreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela cyclopica nudez com um effeito de teias de aranha. Em certos logares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipicio, miseraveis taboas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quaes uns atrevidos pigmêos de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante.
O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lastima. O seu gesto desaprovava todo aquelle serviço.
--Veja lá! disse elle, apontando para certo ponto da rocha. Olhe pr'aquillo! Sua gente tem ido ás cegas no trabalho d'esta pedreira! Deviam atacal-a justamente por aquel'outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que elles têm tirado de lá--umas lascas, uns calháos que não servem para nada! É uma dôr de coração ver estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer d'essa cascalhada que ahi está senão macacos? E brada aos céos, creia! ter pedra d'esta ordem para empregal-a em macacos!
O vendeiro escutava-o em silencio, apertando os beiços, aborrecido com a idéa d'aquelle prejuizo.
--Uma porcaria de serviço! continuou o outro. Ali onde está aquelle homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem ahi o senhor capaz de fazer isso? Ninguem; porque é preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a polvora não fôr muito bem medida, nem só não se abre o veio, como ainda succede ao trabalhador o mesmo que succedeu ao outro! É preciso conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso d'esta pedreira! Boa é ella, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é muito em pé! Quem lhe lascar fogo não póde fugir senão para cima pela corda, e se o sujeito não fôr fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz!
E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o proprio cascalho, um parallelipipedo que estava no chão:--Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha!
Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ella dava depois, formando um angulo obtuso, é que se via quanto era grande. Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a matta.
--Que mina de dinheiro!... dizia o homemzarrão, parando enthusiasmado defronte do novo panno de rocha viva que se desdobrava na presença d'elle.
--Toda esta parte que se segue agora, declarou João Romão ainda não é minha.
E continuaram a andar para diante.
D'este lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam á sombra d'ellas, indifferentes áquelles dois. Viam-se panellas ao fogo, sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos paes. De mulher nem signal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de cocaras defronte uns dos outros, uma sardinha na mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa d'agua.
--Sempre o mesmo serviço mal feito e mal dirigido!... resmungou o cavouqueiro.
Entretanto, a mesma actividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam á sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pescoço entumecido de cordoveias grossas como enxarcias de navio, a bocca aberta, a respiração forte e tranquilla de animal sadio, n'um feliz e plethorico resfolgar de besta cansada.
--Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está a reclamar um homem tezo que olhe a sério para o serviço!
--Eu nada tenho que ver com este lado! observou Romão.
--Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olaré!
--Abusam, porque tenho de olhar pelo negocio lá fora...
--Commigo aqui é que elles não fariam cera. Isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida á farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta por ahi quem queira ganhar dinheiro! Auctorise-me a olhar por elles e verá!
--O diabo e que você quer setenta mil réis... suspirou João Romão.
--Ah! nem menos um real!... Mas commigo aqui ha de ver o que lhe faço entrar pr'algibeira! Temos cá muita gente que não precisa de estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo? Aquillo é serviço para descanço; é serviço de criança! Em vez de todas aquellas lesmas, pagas talvez a trinta mil reis...
--É justamente quanto lhes dou.
--... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cincoenta, que fazem o dobro do que fazem aquelles monos e que podem servir para outras coisas! Parece que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquelle que alli está deixa cahir o escopro! Com effeito!
João Romão ficou calado, a scismar, emquanto voltavam. Vinham ambos pensativos.
--E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se cá para estalagem?
--Naturalmente! não hei de ficar lá na cidade nova, tendo o serviço aqui!...
--E a comida, forneço-a eu?...
--Isso é que a mulher é quem a faz; mas as compras sahem-lhe da venda...
--Pois está fechado o negocio! deliberou João Romão, convencido de que não podia, por economia, dispensar um homem d'aquelles. E pensou lá de si para si: «Os meus setenta mil reis voltar-me-hão á gaveta. Tudo me fica em casa!»
--Então estamos entendidos?...
--Estamos entendidos!
--Posso amanhã fazer a mudança?
--Hoje mesmo, se quizer; tenho um commodo que lhe ha de calhar. É o numero 35. Vou mostrar-lh'o.
E, aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direcção ao fundo do cortiço.
--Ah! é verdade! como você se chama?
--Jeronymo, para o servir.
--Servir a Deus. Sua mulher lava?
--É lavadeira, sim senhor.
--Bem, precisamos ver-lhe uma tina.
E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, d'onde escapou, como de uma panella fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria tresandante á fermentação de suores e roupa ensaboada seccando ao sol.