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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

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No dia seguinte, com effeito, ali pelas sete da manhã, quando o cortiço fervia já na costumada labutação, Jeronymo apresentou-se junto com a mulher, para tomarem conta da casinha alugada na vespera. A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta annos, boa estatura, carne ampla e rija, cabellos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas solidos e perfeitos, cara cheia, physionomia aberta; um todo de bonhomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela bocca numa sympathica expressão de honestidade simples e natural. Vieram ambos á boléa da andorinha que lhes carregou os trens. Ella trazia uma saia de sarja roxa, cabeção branco de panninho de algodão e na cabeça um lenço vermelho de alcobaça; o marido a mesma roupa do dia anterior. E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objectos que não confiaram dos homens da carroça; Jeronymo abraçado a duas formidaveis mangas de vidro, das primitivas, d'essas em que se podia á vontade enfiar uma perna; e a Piedade atracada com um velho relogio de parede e com uma grande trouxa de santos e palmas bentas. E assim atravessaram o pateo da estalagem, entre os commentarios e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam sem uma pontinha de desconfiança os inquilinos novos que surgiam. --O que será este pedaço d'homem? indagou a Machona da sua visinha de tina, a Augusta Carne-molle. --A modos, respondeu esta, que vem pr'a trabalhar na pedreira. Elle hontem andou por lá um rôr de tempo com o João Romão. --Aquella mulher que entrou junto será casada com elle? --E de crer. --Ella me parece gente das ilhas. --Elles o que têm é muito bons trastes de seu! interveio a Leocadia. Uma cama que deve de ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que aquella peneira! --E a commoda, você vio, nhá Leocadia? perguntou Florinda, gritando para ser ouvida, porque entre ella e a outra estavam a Bruxa e a velha Marcianna. --Vi. Rico traste! --E o oratorio, então? Muito bonito!... --Vi tambem. E obra de capricho. Não! elles, sejam lá quem fôr, são gente arranjada... Isso não se lhes póde negar! --Se são bons ou máos só com o tempo se saberá!... arriscou Dona Isabel. --Quem vê cara não vê corações ... sentenciou o triste Albino, suspirando. --Mas o numero 35 não estava occupado por aquelle homem muito amarello que fazia charutos?... inquirio Augusta. --Estava, confirmou a mulher do ferreiro, a Leocadia, porém creio que arribou, devendo não sei quanto, e o João Romão então esvaziou-lhe hontem a casa e tomou conta do que era d'elle. É! accudio a Machona; hontem, pelo cahir das duas da tarde, o Romão andava ahi as voltas com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre homem não levou a breca, como succedeu aquel'outro que trabalhava de ourives? --Não! Este creio que está vivo... --O que lhe digo é que aquelle numero 35 tem máo agouro! Eu cá por mim não o queria nem de graça! Foi lá que morreu a Maricas do Farjão! Tres horas depois, Jeronymo e Piedade achavam-se installados e dispunham-se a comer o almoço, que a mulher preparara o melhor e o mais depressa que poude. Elle contava aviar até á noite uma infinidade de coisas, para poder começar a trabalhar logo no dia seguinte. Era tão methodico e tão bom como trabalhador quanto o era como homem. Jeronymo viéra da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena, tentar a vida no Brazil, na qualidade de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda moirejou durante dois annos, sem nunca levantar a cabeça, e donde afinal se retirou de mãos vazias e com grande birra pela lavoura brasileira. Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com elles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente para outro. Não quiz. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se para a côrte, onde, diziam-lhe patricios, todo o homem bem disposto encontrava furo. E, com effeito, mal chegou, devorado de necessidades e privações, metteu-se a quebrar pedra n'uma pedreira, mediante um miseravel salario. A sua existencia continuava dura e precaria; a mulher já então lavava e engommava, mas com pequena freguezia e mal paga. O que os dois faziam chegava-lhes apenas para não morrer de fome e pagar o quarto da estalagem. Jeronymo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade. Em poucos mezes se apoderava do seu novo officio e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer parallelepipedos; e depois foi se ageitando com o prumo e com a esquadria e metteu-se a fazer lagedos; e finalmente, á força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores de pedreira e a ter salario igual ao d'elles. Dentro de dois annos, distinguia-se tanto entre os companheiros, que o patrão o converteu n'uma especie de contra-mestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil réis. Mas não foram só o seu zelo e a sua habilidade o que o pôz assim para a frente; duas outras coisas contribuiram muito para isso: a força de touro que o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como ainda, e talvez principalmente, a grande seriedade do seu caracter e a pureza austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda a prova e de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver. Sahia de casa para o serviço e do serviço para a casa, onde nunca ninguem o vira com a mulher senão em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um como o outro, eram sempre os primeiros á hora do trabalho. Aos domingos iam ás vezes á missa ou, á tarde, ao passeio publico; n'essas occasiões, elle punha uma camisa engommada, calçava sapatos e enfiava um paletó; ella o seu vestido de ver a Deus, os seus oiros trazidos da terra, que nunca tinham ido ao monte de soccorro, máo grado as difficuldades com que os dois lutaram a principio no Brazil. Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta, forte, bem acommodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando sempre tão boas contas da obrigação, que os seus freguezes de roupa, apezar d'aquella mudança para Botafogo, não a deixaram quasi todos. Jeronymo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor, fizéra-se irmão de uma ordem terceira e tratára de ir pondo alguma coisinha de parte. Metteu a filha num collegio, «que a queria com outro saber que não elle, a quem os paes não mandaram ensinar nada.» Por ultimo, no cortiço em que então moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais confortavel; porém, com a morte do seu patrão e com uma reforma estupida que os successores d'este realisaram em todo o serviço da pedreira, o colono desgostou-se d'ella e resolveu passar para outra. Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois do desastre do seu melhor empregado, andava justamente á procura de um homem nas condições de Jeronymo. Tomou conta da direcção de todo o serviço, e em boa hora o fez, porque dia a dia a sua influencia se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu exemplo os companheiros tornavam-se igualmente serios e zelosos. Elle não admittia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso se demorasse ali tomando o logar de quem precisava ganhar o pão. E alterou o pessoal da pedreira, despedio alguns trabalhadores, admittio novos, augmentou o ordenado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando tudo para melhor. No fim de dois mezes já o vendeiro esfregava as mãos de contente e via, radiante, quanto lucrara com a acquisição de Jeronymo; tanto assim que estava disposto a augmentar-lhe o ordenado para conserval-o em sua companhia, «Valia a pena! Aquelle homem era um achado precioso! Abençoado fosse o Machucas que lh'o enviára!» E começou a distinguil-o e respeital-o como não fazia a ninguem. O prestigio e a consideração que Jeronymo gosava entre os moradores da outra estalagem d'onde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consultado e ouvido, quando qualquer questão difficil os preoccupava. Descobriam-se defronte d'elle, como defronte de um superior; até o proprio Alexandre abrira uma excepção nos seus habitos e fazia-lhe uma ligeira continencia com a mão no boné, ao atravessar o pateo, todo fardado, por occasião de vir ou de ir para o serviço. Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manoel, tinham enthusiasmo por elle. «Aquelle é que devia ser o patrão, diziam. É um homem sério e destemido! Com aquelle ninguem brinca!» E, sempre que a Piedade de Jesus ia lá a taverna fazer as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem escolhida, bem medida ou bem pezada. Muitas lavadeiras tomavam inveja d'ella, mas Piedade era de natural tão bom e bemfazejo que não dava por isso e a maledicencia murchava antes de amadurecer. Jeronymo acordava todos os dias ás quatro horas da manhã, fazia antes dos outros a sua lavagem á bica do pateo, soccava-se depois com uma boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias mettidos em um formidavel par de chinellos de couro crú, seguia para a pedreira. A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquella ferramenta movida por um pulso de Hercules valia bem os clarins de um regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do chaos opalino das neblinas vultos côr de cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha, para cavar na pedra o pão-nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o pincaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se contra o gigante de granito, aquelle misero grupo de obscuros batalhadores. Jeronymo só voltava á casa ao descahir da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra d'elles. E ali, n'aquella estreita salinha, socegada e humilde, gosavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canceiras ao sol. E, defronte do candieiro de kerosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no collegio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, até ás horas de dormir, que nunca passavam das nove, elle tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era n'esses momentos que dava plena expansão ás saudades da patria, com aquellas cantigas melancolicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrazadas da America para as aldeias tristes da sua infancia. E o canto d'aquella guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto mar, quando a tempestade agita as negras azas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos presagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abobada de chumbo.

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