TRANSTORNO
Enquanto todas estas coisas se passavam, um triste sucesso, e da mais alta importância, veio alterar a vida de Leonardo, ou transtorná-la mesmo: o compadre caiu gravemente enfermo. A princípio a moléstia pareceu coisa de pouca monta, e a comadre, que foi a primeira chamada, pretendeu que todo o incômodo desapareceria dentro de dois dias, tomando o doente alguns banhos de alecrim. Nada porém se conseguiu com a receita; o mal continuou. Recorreram então a um boticário conhecido da comadre, que juntara ao seu mister, não sabemos se com permissão das leis ou sem ela, o mister de médico. Era um velho, filho do Porto, que aqui se viera estabelecer há muitos anos, e que ajuntara no oficio boas patacas. Apenas chegou e viu o doente declarou que em poucos dias o poria de pé; bastava que ele tomasse umas pílulas que lhe ia mandar da sua botica: eram um santo remédio, segundo dizia, mas custavam um bocadinho caro, porém valia a vida de um homem. A comadre quando ouviu falar em pílulas franziu a testa.
— Pirolas, disse consigo; então o negócio é sério; e eu, que tenho má-fé com pirolas; ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse. E avermelharam-se-lhe imediatamente os olhos.
O boticário retirou-se levando consigo o Leonardo, que trouxe as pílulas. A comadre, olhando para elas, abanou a cabeça.
— Ora, disse, eu pensei que ele lhe mandasse dar alguns banhos; cá por mim com alecrim havia de pô-lo bom.
A comadre tinha razão até certo ponto, pois que no fim de três dias, depois de feitos todos os preparos religiosos, o compadre deu a alma a Deus. D. Maria tinha sido chamada nesse mesmo dia, e compareceu com Luizinha e com todo o seu batalhão de crias; tinham vindo também algumas outras pessoas da vizinhança. Estavam todos sentados em um grande canapé, na varanda, e conversavam muito entretidos sobre os objetos mais diversos; algumas achavam mesmo na conversação motivo para boas risadas; de repente abriu-se a porta do quarto, e a comadre saiu de dentro com o lenço nos olhos, soluçando desabridamente e repetindo em altos gritos:
— Bem dizia eu que tinha pouca fé nas pirolas; está para ser o primeiro que eu as veja tomar e que escape... Coitado do compadre... tão boa criatura... nunca me constou que fizesse mal a ninguém...
Estas palavras da comadre foram o sinal de rebate dado à dor dos que se achavam presentes; desatou tudo a chorar, e cada qual o mais alto que podia. O Leonardo sofreu um grande choque, e no meio do seu atordoamento encolheu-se em cima do canapé com a cabeça sobre os joelhos, chegando-se, naturalmente sem o querer, porque a dor o perturbava, o mais perto possível de Luizinha. Continuaram as mais no seu coro de pranto dirigido pela comadre; mas não se contentavam só com o pranto, soltavam também algumas vezes exclamações em honra do defunto.
— Sempre foi muito bom vizinho, nunca tive escândalos dele, dizia uma. Era a vizinha que augurava mau fim ao Leonardo, e com quem o compadre brigara por este motivo umas poucas de vezes.
— Boa alma, dizia D. Maria, boa alma; havia de ser como ele quem quisesse ter boa alma.
— Eu que lidei com ele, dizia a comadre, é que sei o que ele valia; era uma alma de santo num corpo de pecador.
— Bom amigo...
— E muito temente a Deus...
Prolongada esta cena por algum tempo, despediram-se algumas pessoas, outras ficaram ainda. Foi serenando o pranto, e daí a pouco D. Maria, enxugando ainda os olhos, explicava detalhadamente a uma outra senhora que se achava junto dela a história genealógica de cada uma de suas crias que se achavam presentes. Finalmente retiraram-se todos, exceto D. Maria, a sua gente e a comadre, que estava desde que o compadre adoecera tomando conta da casa. Aproximou-se a noite; acenderam-se velas junto do defunto; fizeram-se todos os mais arranjos do costume. D. Maria e a comadre começaram a conversar, porém baixinho.
— Então, senhora, principiou D. Maria, este homem não havia morrer assim sem ter feito seu testamento; pois ele não havia de querer deixar no mundo o afilhado ao desamparo para os ausentes se gozarem do que a ele lhe custou tanto trabalho.
— A mim, respondeu a comadre, nunca me falou em semelhante coisa; mas enfim, como isso são lá negócios de segredo... talvez.
— Seria bom procurar-se; talvez em alguma gaveta por aí se ache; é impossível que o defunto não dispusesse sua vida; bem vezes lhe aconselhei eu semelhante coisa.
— Tem razão, D. Maria, eu acho também que deve haver alguma coisa.
E foram as duas tratar de procurar o testamento nas gavetas de uma grande cômoda que havia no quarto do defunto. Enquanto nisso se ocupavam, Luizinha e Leonardo conversavam, ou antes cochichavam, como se diz vulgarmente. O que eles se diziam não posso dizê-lo ao leitor, porque o não sei; sem dúvida a rapariga consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa do seu amado padrinho. Finalmente as duas acharam com efeito um testamento, e ficaram com isso muito satisfeitas. Voltaram à varanda e surpreenderam os dois no melhor da sua conversa. A comadre vendo-os sorriu-se, e D. Maria, fazendo sem dúvida a respeito do que estavam eles falando o mesmo juízo que nós, disse enternecida:
— Ela tem muito bom coração!
— E o dele não é pior, respondeu a comadre. E acrescentou com intenção:
— Estava um bom casal.
— Oh! senhora, disse D. Maria com ingenuidade, deixe a menina, que ainda é muito cedo...
— Também não digo já, mas a seu tempo.
D. Maria sorriu-se com um sorriso de que a comadre não desgostou. Mudaram de conversa. Passou-se a noite; no outro dia saiu o enterro com todas as formalidades do estilo. Depois disso tratou-se de resolver uma importante questão: para a companhia de quem iria o Leonardo? A abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a questão. O compadre havia instituído a Leonardo por seu universal herdeiro. A comadre informou de semelhante coisa ao Leonardo-Pataca, e este apresentou-se para tomar conta de seu filho. Não pareceu o rapaz muito satisfeito com a graça: não sei como veio-lhe à idéia aquele terrível pontapé que o fizera fugir de casa; além disso raríssimas vezes vira depois disso a seu pai, e estava completamente desacostumado dele. Não havia porém outro remédio; foi preciso obedecer e acompanhá-lo para casa, onde encontrou sua pequena irmã, e quem a pusera no mundo. O Leonardo-Pataca começou a cuidar no testamento como homem entendido na matéria, e em pouco tempo deu volta a tudo aquilo. Cumpre notar que, se em vida do compadre corriam boatos que pareciam exagerados a respeito do que ele possuía, quando morreu pôde ver-se que esses boatos tinham ainda ficado muito aquém da verdade, pois deixara ele um bom par de mil cruzados em espécie. Entregues alguns legados de pouca monta, etc. tudo o mais veio a cair nas mãos do Leonardo-Pataca como herança de seu filho. Nos primeiros dias tudo foram flores por casa de Leonardo-Pataca, ainda que, para falar a verdade, desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo com a cara do objeto dos novos e últimos cuidados de seu pai. A comadre assentou que devia substituir ao compadre no amor pelo afilhado, e determinou-se a vir morar com ele em casa de Leonardo-Pataca; assim ficava também reunida à sua filha, e à sua neta. O Leonardo-Pataca, que era condescendente, esteve pelo caso, e reuniu-se desse modo à família toda. Tudo foram flores a princípio, como dissemos; o moço Leonardo e a comadre continuaram as suas visitas por casa de D. Maria; e digamo-lo já, o rapaz e a rapariga iam pondo as mangas de fora; verdade seja que José Manuel trabalhava ajudado do seu cego mestre-de-reza, e não perdia também as esperanças. Pouco tempo durou o sossego em casa de Leonardo-Pataca; Chiquinha (tal era o nome da filha da comadre) começou a embirrar com o seu filho adotivo; este que, como dissemos, não simpatizara muito com ela, começou uma balbúrdia de todos os pecados. Todos os dias travavam-se por qualquer ponta, e lá ia tudo pelos ares. O Leonardo-Pataca e a comadre faziam o papel de conciliadores, mas os dois eram ambos altanadíssimos, e muitas vezes o conciliador saía mal servido, porque aquele a quem não dava razão se revoltava contra ele. Se era por exemplo a comadre, e dava razão a Leonardo, acudia a filha queixando-se de que sua mãe a abandonava para tomar o partido do afilhado: se pelo contrário dava razão a Chiquinha, acudia o Leonardo queixando-se de que desgraçado era o filho sem mãe, pois nunca achava quem lhe desse razão. Outro tanto acontecia ao Leonardo-Pataca quando se metia a apaziguar os dois. Os negócios assim iam mal, pois mais dia menos dia haveria grande barulho em casa.